Dialética dos Bestiais, ou A Lógica Vampírica da Política Nacional

Publiquei este texto em 2015, no blogue Esquerda Livre, que mantinha então. Nele, eu apontava as contradições que acreditava serem parte dos motivos que levariam à emergência fascista no Brasil. À época, a figura de Bolsonaro ainda não havia despontado no horizonte das disputas políticas nacionais, ele ainda não passava do que sempre tinha sido: um deputado escroque do baixo clero da Câmara Federal. Mas o ambiente de conciliação de classe (ainda mais sobre o rebaixamento da organização e mobilização popular promovido justamente por quem não deveria: o Partido dos Trabalhadores e outros organismos que sofrem sua direta influência) deixa claro que a ascensão fascista era uma questão de tempo. Infelizmente, a história recente demonstrou que essa análise era correta.

Diante da forma pela qual se compôs algo que recebeu o nome de “frente ampla” e, ainda pior, a maneira com que se tem debatido e arranjado o novo governo, creio que o texto ainda expressa uma reflexão válida e atualizada. Mas, sobretudo, creio ser necessário recuperar a memória e as reflexões daquele tempo e cotejá-las com as decisões, escolhas e acordos que formam o processo de transição e formação do novo governo. 

Dialética dos Bestiais, ou A Lógica Vampírica da Política Nacional

A cada dia aumentam as matérias sobre agressões, algumas delas resultando em morte, provocadas por intolerância religiosa e em sua totalidade promovidas por integrantes de igrejas neopentecostais. Ao mesmo tempo, do Congresso Nacional chegam notícias escabrosas anunciando leis que fazem retroceder conquistas históricas da classe trabalhadora, bem como os direitos e proteção à infância, à comunidade LGBT, às mulheres, às religiões de matrizes africanas e a outros grupos não hegemônicos. Enquanto isso, vemos que os setores mais retrógrados da sociedade, sobretudo nos grandes centros urbanos, descobriram as ruas como espaço de manifestação. Vestidos com camisetas da seleção brasileira, batem panelas, exibem faixas com demandas confusas, frases ofensivas, clamores por um golpe militar, fazendo tremer todos e todas que sabem o valor da democracia, ainda que a nossa seja tão limitada pelos interesses das classes dominantes. Parece-nos que houve um alinhamento de planeta maldito, que mergulhou o Brasil numa noite sem estrelas em sua política e economia, uma Idade Média cujos senhores feudais são lideranças de partidos de direita, pastores neopentecostais, empresários, profissionais liberais e proprietários dos grandes veículos de comunicação, dentre alguns outros barões. De um momento para outro temos a impressão de que caiu sobre nós uma grande onda, um verdadeiro vagalhão conservador que varreu todas as relações democráticas que construímos desde o fim da ditadura civil-militar de 1964 a 1985.

Enquanto assistíamos à confusa passagem da faixa presidencial entre o presidente que saía, Fernando Henrique Cardoso, e o que assumia, Luiz Inácio Lula da Silva, as ruas do Brasil eram inundadas por uma imensa onda de esperança – acreditava-se que este deixaria de ser o “país para os ricos” e se tornaria o “país para o povo”, ainda que a noção de “povo” seja ainda tão imprecisa. A intensidade do sentimento de conquista era de tal grandeza que fazia sombra aos indícios de que a transformação esperada não seria tão fácil nem tão ampla. E foram diversos os indícios. Depois de tentativas frustradas de eleger Lula presidente do país, a direção nacional do Partido dos Trabalhadores decidiu mudar suas estratégias eleitorais. Para isso, foi necessário tomar medidas de duas ordens, algumas de caráter interno ao partido e outras de caráter externo. Internamente, houve o abrandamento do radicalismo de seu programa político, o isolamento de seus agrupamentos mais esquerdistas e o fortalecimento de quadros ligados direta ou indiretamente ao agrupamento partidário hegemônico. Medidas de caráter exterior ao partido, por sua vez, foram: buscar a aproximação com setores burgueses inimagináveis para a grande maioria que assinou o documento de fundação do partido e o alinhamento com líderes políticos de centro e de direita, sobretudo com suas frações mais tacanhas, retrógradas e fisiológicas. Essas novas estratégias foram exitosas, pois garantiram quatro eleições presidenciais seguidas para o Partido dos Trabalhadores e a criação de programas que permitiram o acesso de milhares de pessoas a bens de consumo antes inatingíveis, a eletrificação de regiões do país ainda mergulhadas na Idade Média, o acesso à água potável de populações historicamente flageladas pela seca endêmica, sistemas de proteção e incentivo a famílias antes completamente abandonadas pelos poderes públicos.

Contudo, quem janta com o diabo sai com os bigodes chamuscados. Os acordos firmados com a direita não foram meras ações táticas, pois constituíram uma nova orientação partidária e de governo, ao menos para o Partido dos Trabalhadores. Já a direita tacanha, retrógrada e fisiológica percebeu nos acordos a possibilidade de alimentar-se política e financeiramente por meio de cargos, benesses, incentivos e corrupção, e o fez; a serpente pôs seus ovos, seria uma questão de tempo para que eclodissem. Enquanto Lula, e depois Dilma, atendiam aos interesses dos brasileiros mais pobres, seus aliados os arrebanhavam em suas igrejas, em seus partidecos, em suas ONGs e em diversas outras possibilidades de construção de grupelhos políticos: na mesa dos governos petistas alimentavam-se seus algozes. Tais acordos foram o caminho escolhido pelo Partido dos Trabalhadores para garantir a chamada “governabilidade” no Congresso Nacional, garantindo os votos necessários no legislativo ou amenizando as reclamações dos deputados com o uso de medidas provisórias para acelerar processos políticos. Mas a governabilidade foi o primeiro naco da carne petista arrancada pelas presas afiadas das pequenas serpentes enquanto saíam das cascas quebradas dos ovos em que foram geradas; e a data das primeiras mordidas foi o dia 01 de fevereiro de 2015, dia em que Eduardo Cunha foi eleito presidente da Câmara dos Deputados. É um equívoco achar que Eduardo Cunha é o “grande mal” da política brasileira: ele é apenas parte de um processo que ocorreria com ou sem sua presença – seu estilo pessoal confere certa personalidade ao processo, mas não é, em si, o processo. A eleição de Cunha representa bem mais que apenas a chegada de um sacripanta ao terceiro cargo mais importante da República brasileira. É a chegada de um todo orgânico formado pelo chamado baixo clero do Congresso, que, por sua vez, é formado por lideranças tacanhas, velhos coronéis da pequena política, chefes de grupos políticos que se mantêm por força da troca de votos por favores, de esquemas locais, da fé como capital político, enfim, o que há de mais podre na política brasileira, quase todos parte da “base aliada” do governo petista. A eleição de Cunha significou, ainda, uma mudança qualitativa nos caminhos traçados pelo PMDB, uma legenda nacional, mas formada por lideranças locais, sem organicidade interna e sem um verdadeiro programa nacional, apenas uma máquina eleitoral que, até então, se satisfez sendo base aliada de quem quer que estivesse no governo federal, mas agora fecha um triângulo de força cujos vértices são as presidências da Câmara Federal e do Senado e a vice-presidência da República – esta com status de articulador político da presidência. Essa nova condição do PMDB o obriga a sair das sombras do poder em que esteve até agora e o força a avançar sobre o caminho do PT: para o PMDB não é possível caminhar sem devorar a mão que o alimentou. Quando o vampiro peemedebista se levanta de seu esquife, com ele vem toda sorte de parasitas antes aliados ao governo petista – daí a tomarem de assalto o Congresso Nacional foi preciso apenas um pequeno esforço. Desta feita, iniciou-se a fase em que os aliados do governo, sem deixarem de sê-lo, jogam contra ele. Passamos a assistir a cenas que, de tão inverossímeis, fazem-nos crer que vivemos num cenário surrealista: as piores derrotas do governo federal no Congresso são infligidas por seu principal aliado, ou melhor, pelo partido que está junto a ele no gabinete da presidência. Nenhum tucano faria estrago maior.

Assim, o governo do Partido dos Trabalhadores vê-se trancado num labirinto de espelhos: estende a mão direita à população pensando ser a esquerda. Caminha pelos corredores espelhados, vendo-se em cada imagem refletida, mas não percebe que os donos do labirinto são os mesmos de sempre e que seus porteiros hoje dominam o Congresso Nacional e a vice-presidência da República. Mas não são apenas esses aliados a mordiscar-lhe as carnes: o PSDB, ainda o principal partido de oposição ao governo federal, mas até então todo estropiado, sentando num banquinho desgastado no canto do ringue e sem a mínima noção de como poderia aguentar a luta (que mal se iniciara) até o gongo final, passa a encontrar no principal aliado do governo e em todos os parasitas que o cercam seu principal apoio no Congresso. É por isso que, mesmo derrotado nas urnas em 2014, o partido tucano consegue manter o resultado das eleições em suspenso: Dilma venceu, mas não levou, sendo obrigada a governar com o programa de governo de Aécio. Apenas a direção nacional do Partido dos Trabalhadores não viu que a aproximação entre o PMDB, o PSDB e todo o baixo clero do Congresso era uma questão de tempo. Não apenas os agrupamentos de esquerda do próprio PT, mas também diversos outros agrupamentos e partidos de esquerda, perceberam o que vinha pela frente e alertaram o risco iminente, mas os moucos ouvidos da direção nacional do PT nada ouviram. A aproximação entre aqueles partidos se efetivou e recebeu um reforço de peso, a grande mídia – verdadeiros baronatos de poucas famílias abastadas. Essa mídia, formada pelos grandes jornalecos e emissoras de TV e rádio, até então combatendo as posições do governo federal sem muito sucesso, pois lhe faltava capilaridade nas camadas mais populares da sociedade, percebeu a nova conjuntura política e soube se aproveitar dela. Foi nas lideranças do baixo clero que a grande imprensa encontrou o caminho que a levaria até a população; lideranças políticas dos diversos grupelhos – denominações neopentecostais, partidecos, ajuntamentos políticos baseados nos pequenos favores etc. – formaram um discurso único contra o governo federal, embora muitos continuem a constituir sua base aliada, e dos púlpitos passaram a reproduzi-lo nas TVs, rádios, páginas e páginas dos jornais, na internet e em qualquer lugar que sirva de palanque de grande alcance.

Mas a maior característica dessa nova conjugação dos mesmos é o fato de que suas principais lideranças são religiosos, conservadores, defensores de um insuficiente e empobrecido discurso liberal, mesquinhos, machistas, racistas e que, paradoxalmente, professam um cristianismo que se baseia no deus do Velho Testamento: intolerante, vingativo, opressor, xenófobo e irracional, ao invés de nas palavras de amor ao próximo da simbólica figura do Cristo. Por isso, mesmo os políticos de direita que defendem bandeiras liberais, social-democratas, progressistas (pois é possível ser progressista sem sequer arranhar os limites do capitalismo) hoje reproduzem o monodiscurso fascista e neopentecostal dessa nova força. Não seria diferente: são os únicos que conseguem ir para as ruas imolar seus semelhantes sem qualquer constrangimento e em nome de deus e da pátria. Era a componente fascista que faltava à direita nacional para derrubar os poucos direitos reservados à população brasileira e que faziam frente aos privilégios das classes dominantes. Bertolt Brecht disse que a cadela do fascismo está sempre no cio: é verdade, e ela pariu sua maior ninhada em terras brasileiras. Por isso, enganam-se os analistas que veem em todo esse processo o emergir de uma “nova direita”. Trata-se, de fato, da mesma direita de sempre, das mesmas lideranças; o que aconteceu foi o fortalecimento de várias dessas lideranças via acordos pela governabilidade e o realinhamento entre essas mesmas lideranças, já fortalecidas, formando um único movimento visando ao poder. Foi esse realinhamento que permitiu a formação de um novo senso comum baseado num pastiche que mistura discursos antipetista, antiesquerda, homofóbico, racista, machista e classista. Um senso comum tão poderoso e tão capilarizado que consegue mobilizar amplos setores da baixa classe média, trabalhadores e precarizados, todos entoando palavras de ordem que, ao fim e ao cabo, apenas beneficiam as classes dominantes.

É preciso destacar que essa ampla mobilização alcançada pela direita surge no vácuo ideológico que os governos petistas deixaram: ao apostarem na conciliação entre as classes e suas frações, passaram a despolitizar programas e projetos e, consequentemente, as conquistas sociais. Assim, o direito à moradia virou sonho da casa própria e o que antes era fruto da organização social e política da população passou a ser conquista individual ou, no máximo, familiar. Assim, desconstruiu-se um conjunto de significados coletivos sobre lutas populares forjado ao longo de décadas de lutas. Mas na política não há “espaços vazios”: o vácuo ideológico deixado pelos governos do PT tornou-se solo fértil para a direita plantar seu senso comum e construir novos paradigmas, bem ao gosto das classes dominantes, tão fortes e, ao mesmo tempo, tão vazios, que hoje é comum ver pessoas vítimas da economia defendendo balelas como meritocracia ou economia livre. Logo haverá em alguma novela televisiva uma personagem baseada em Felipe Pondé ou Olavo de Carvalho…

Uma das mais clássicas advertências às donzelas que aparecem nos filmes de terror é “o vampiro só entra em suas casas se vocês o convidarem”. Assim como tais donzelas, o Partido dos Trabalhadores esqueceu-se da advertência e, encantado pelo brilho sedutor dos olhos do vampiro, convidou-o para seu lar, para seu quarto, para sua cama. Hoje, o sangue petista escorre pelos furos da mordida e alimenta não apenas quem lhe mordeu, mas também os parasitas que os acompanham e, ainda, seu maior inimigo, o PSDB, que de longe estica um canudinho para aproveitar as gotas que caem ao chão. Pensando melhor, parece que o PT convidou o vampiro para sua cama, mas o pescoço oferecido foi o do povo brasileiro.

No entanto, o até aqui exposto parece explicar toda a questão, mas não é assim, pois, como já advertia Marx, a luta política não é toda a luta. Devemos lembrar que o dinheiro que abastece a campanha petista é o mesmo dinheiro que abastece as campanhas dos demais grandes partidos, incluindo o PSDB e o PMDB: todo o problema é tão somente um problema entre gestores do capital e isso nunca pode ser esquecido. Nas histórias de super-heróis é comum que estes se batam contra seus poderosos inimigos nas ruas das cidades, derrubando prédios, explodindo automóveis, destruindo o que estiver pelo caminho. A luta entre os titãs é de tal intensidade que pouco nos lembramos dos pobres transeuntes que têm suas cabeças atingidas pelos escombros dos prédios derrubados, não pensamos em quem estava nos carros que explodiram, nem nos preocupamos com os desabrigados que não terão mais onde morar com a destruição provocada. Enquanto observamos a luta entre o Congresso e o governo federal, é preciso manter os olhos atentos a quem mais sofre – a população. Ainda que a luta por essa população se faça pelas vias políticas, é preciso sempre lembrar que o inimigo real está mais além do visível: a luta é contra quem detém o capital e pela socialização dos recursos econômicos. Assim, o grande monstro que emerge é real e verdadeiro, está matando pessoas e disseminando uma práxis fascista como há muito tempo não se via, mas não deixa de ser uma conjuntura histórica, engendrada por uma estrutura silenciosa e violenta chamada capitalismo.

Luiz Carlos Checchia

Historiador, doutor em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela FFLCH/USP, dramaturgo e diretor teatral. Co-fundador e integrante da Cia Teatro dos Ventos.

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