O filme “Curtas Jornadas Noite Adentro”, de Thiago Mendonça, está disponível gratuitamente por um mês no Sesc digital. Para alguns, pode se tratar de um filme sobre samba, do tipo “o samba não pode parar”, mas é algo mais. Mendonça se inscreve numa linhagem mais original do cinema, que tem no cineasta britânico Ken Loach um dos expoentes mais proeminentes. Os atores são pessoas comuns, desconhecidas, às vezes nem tanto, que vivem no mundo do samba e fazem dele o sentido de suas existências. Mas não se trata de um documentário. Essa ficção mergulha todos numa viagem a partir de flashs do cotidiano de cada personagem, descortinando o verdadeiro fio condutor do drama, ou melhor, dos dramas: o confronto entre a realidade que despedaça sonhos e a arte, no caso o samba, que preserva suas integridades. É desse modo que um homem separado, que cuida de sua mãe idosa, luta para ver sua filha, após a separação e a resistência da ex-companheira; um segurança de faculdade faz mutirão para limpar o terreno onde pretende construir sua casa; um locutor de loja dorme num quarto em obra equilibrando-se em baixos salários; um homem que se veste como boneco de publicidade e passa o dia com uma máscara segurando uma placa indicativa de estacionamento sobrevive à degradação do precário mundo do trabalho; e um ex-presidiário, em condicional, leva, em seu carro caindo aos pedaços, seus companheiros noite afora para apresentarem sua música e serem reconhecidos. Não é simplesmente um filme sobre as tristezas e mazelas de vidas pobres numa periferia urbana do capitalismo tupiniquim, transformadas em suco pela crueldade do poder dos que têm sobre os despossuídos. Thiago Mendonça traz a poética e a beleza da capacidade humana de se recriar. Insere-se aqui numa tradição fílmica mais antiga, a de Chaplin, no caso, a de Tempos Modernos, que, ao ter seu personagem literalmente engolido pelas engrenagens de uma máquina, ser demitido, preso e virar mendigo, o faz deparar-se com sua única e verdadeira saída cantando num show, em que encontra, como que acidentalmente, sua essência: a capacidade de criar. Mendonça resgata exatamente isso em seus personagens. Demitidos, presos, escravizados em subempregos, desprezados e precarizados, eles verdadeiramente vivem e existem, pois criam, no caso, o samba, em rodas que a qualidade sonora do fime transporta diretamente para nossa alma. Eles vivem o prazer da criação humana, para além do trabalho rotineiro, desqualificado e mal remunerado, que a realidade lhes impõe. O prazer imediato não é suprido pela dependência química da droga, dos medicamentos, da violência ou da ganância desenfreada que suga pessoas e meio ambiente. O prazer que move todos nós na noite adentro dos nossos desejos mais ocultos está na capacidade de criar o belo por dentro do sentido que nos damos enquanto criadores e recriadores de nós e dos outros, em nossas relações e no mundo ao redor, de cidade e natureza. É assim que Mendonça nos brinda com a maravilhosa e densa trajetória daqueles que descobriram a si mesmos a partir do amor ao que lhes é mais caro, a liberdade criativa. Aqui reside a resistência humana a toda exploração e degradação impostas pelos donos da grana e da sociedade.
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