“A coruja de Minerva somente começa seu voo com a irrupção do crepúsculo.”
Hegel
Como sabemos, Gramsci ampliou o conceito de Estado formulado por Marx e Engels, e reiterado por Lenin.
“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo também leva a certas determinações do conceito de Estado, que, habitualmente, é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de produção e economia de um dado momento), e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas etc.), e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais […]” [Carta a Tania, 7/9/1931]
Para Gramsci, o Estado não se resume a um aparato burocrático-militar sob o controle de um comitê (um “Estado Maior”) da burguesia. O Estado, ensina Gramsci, é “sociedade política” + “sociedade civil”, é coerção + consentimento, é dominação + hegemonia.
Não obstante, vamos insistir em um conceito que, com uma certa razão, muitos consideram espinhoso, embora essencial à compreensão do que é o Estado stricto sensu (o Estado em geral, independentemente de sua forma específica). Refiro-me ao conceito marxista de “ditadura do proletariado” como forma de transição para a sociedade sem classes. Comecemos, então, pela controversa “ditadura do proletariado”.
Sobre essa questão, vale precisar: 1º) Marx emprega o conceito de “ditadura do proletariado” num grau elevado de abstração: no mesmo nível que o de “modo de produção” (não se trata, pois, de uma consigna política); 2º) o Estado stricto sensu existe para garantir as condições extraeconômicas de funcionamento do modo de produção (sua reprodução ampliada) e nesse sentido tem por finalidade última impor os interesses da classe dominante em situações conturbadas ou de crise (vale dizer, realiza quando necessário a ditadura da classe dominante); 3º) quando fala de “ditadura do proletariado”, Marx está se referindo a uma forma de Estado que representa a maioria da população (o poder da maioria sobre uma minoria); 4º) a “ditadura do proletariado” é uma forma de transição que avança para a sua extinção (dissolução do Estado).
É, porém, num texto de 1891, a Crítica do Programa de Erfurt, que Engels esclarece a “ditadura do proletariado” como conteúdo da forma “república democrática”: “Uma coisa absolutamente certa é que nosso Partido e a classe operária só podem chegar à dominação sob a forma da república democrática. Essa última é, inclusive, a forma específica da ditadura do proletariado.”
Mas, se é assim, por que Marx não preferiu pronunciar “democracia socialista” ou “democracia do proletariado” no lugar de “ditadura do proletariado”? Acho que fica óbvia a sua escolha: enfatizar a coerção extraeconômica na transição para uma nova ordem social, sobretudo no primeiro momento, quando é preciso violentar a ordem burguesa. Esse é o momento em que os capitalistas são expropriados e se opera o processo de transformação revolucionária da propriedade privada sobre os meios de produção em propriedade social. Será preciso, então, sufocar a reação dos expropriados. Engels é muito claro a esse respeito: “somos obrigados a nos servir dele [o Estado] na luta, na revolução, para reprimir pela força os adversários”. E mais: “entanto o proletariado ainda tenha necessidade do Estado, não há de ser para a liberdade, mas para reprimir seus adversários”.
De todo modo, a ditadura do proletariado não se confunde com o Terror jacobino. Referindo-se ao regime de Robespierre, Engels expressa em carta a Marx (de 4 de setembro de 1870): “O terror são, na maior parte do tempo, crueldades inúteis que pessoas assustadas cometem para se garantir. Estou persuadido que a responsabilidade do Terror de 1793 deve-se quase que exclusivamente aos burgueses amedrontados que pousavam de patriotas, aos pequeno-burgueses que exibiam seus culottes e aos mafiosos que aproveitavam para fazer seus negócios. O pequeno terror atual é igualmente obra dessas classes.”
Um questão, porém, é certa: para transformar a propriedade estatal sobre os meios de produção em propriedade social, o proletariado revolucionário precisa de um Estado de transição que realize a mais ampla participação popular na gestão desses meios de produção, sem a qual não há socialização. E isso equivale a uma radicalização da democracia sem precedentes na história.
Esse aparente paradoxo é na verdade a expressão dialética de uma contradição que movimenta o real: a oposição entre forma e conteúdo. Não está demais observar que Vigotski assinala a destruição do conteúdo pela forma na arte, ao passo que Marx aponta a contradição entre o conteúdo social da produção e a forma privada da apropriação do produto no capitalismo.
Se me fiz entender através dessa breve digressão teórica, não fica difícil perceber que o golpe militar de 1964 nasce dessa mesma dinâmica.
Naquele contexto sócio-histórico dos anos 60, o acirramento da luta de classes em torno da questão concreta das “reformas de base” revela que a democracia promete muito mais do que a burguesia está disposta a consentir. Então, chega a hora em que a forma democrática (na verdade liberal-democrática) deve dar passagem à ditadura (no caso, militar), para romper as barreiras ao livre curso dos interesses das classes dominantes.
Essa metamorfose do Estado liberal-democrático em ditadura é uma possibilidade indescartável e está sempre determinada pela correlação de forças na sociedade (em especial da correlação de forças políticas, em situação de normalidade, ou da correlação político-militar, em momentos de crise aguda).
Vale considerar, todavia, que o modus operandi do Estado liberal-democrático, sem chegar aos extremos dos regimes francamente ditatoriais, já deixa manifesta a contradição entre forma e conteúdo sempre que as circunstâncias requeiram a repressão policial e judicial dos movimentos sociais como requisito ao restabelecimento da “normalidade” na sociedade burguesa. Foi assim no governo Temer e assim é no governo Bolsonaro, mas também foi assim na repressão aos movimentos contestatórios maciços de junho de 2013. E é assim desde sempre contra as greves e manifestações de protesto que tiram o sossego das ruas ao confrontar o poder extraparlamentar do capital com a ação da força extraparlamentar do trabalho em movimento.
Vigiar e punir (para recuperar a feliz expressão de Foucault), essa é a lógica do “Estado de exceção” embutido na famigerada Lei da Copa e em toda a legislação que se urde para criminalizar os protestos populares. Compreensivelmente, face às jornadas de junho de 2013, a urdidura não coube aos militares, nem ao conluio PSDB-DEM, mas ao contubérnio PT-PMDB.
A ideia de “Estado de exceção” já fora formulada por Walter Benjamin em a “Origem do Drama Barroco Alemão”, de 1925. Todavia, trata-se aqui da oitava tese “Sobre o conceito da história”, de 1940: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘Estado de Exceção’, no qual nós vivemos, é a regra”.
Que garantias temos de que o golpe de 64 pertence ao passado e hoje não passa de um pesadelo? Que garantias podemos ter de que esse pesadelo não possa ganhar realidade nos dias atuais ou nos que estão por vir? Nenhuma. A história não confere garantias a ninguém. A luta de classes seguirá seu rumo e a agudização da crise estrutural do sistema do capital dificilmente será estancada. Mas isso não quer dizer que um novo pesadelo seja inevitável. Inevitável, sim, é a luta.
Como apontou Gramsci, “o elemento decisivo de toda situação é a força organizada permanentemente e preparada desde muito tempo, e que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e ela só é favorável na medida em que uma tal força exista e esteja plena de ardor combativo); assim a tarefa essencial é a de se dedicar sistemática e pacientemente a formar, desenvolver, tornar sempre mais homogênea, compacta, consciente de si mesma esta força”.
Essa questão é relevante porque, na “ausência de uma iniciativa popular unitária”, o que prevalece é a “reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares”, como foi o caso nas jornadas de junho de 2013.
Bem, então vamos abandonar essa expressão de ditadura do proletariado.