Ditadura empresarial militar

Os golpes militares que se desencadearam na América Latina nas décadas de 1960 e 1970 têm sido caracterizados como “contrarrevoluções preventivas”1. Tratava-se de desarticular a possível resistência a novas formas de dominação que entrariam em vigor, atendendo às necessidades do modelo de acumulação do capital que se consolidaria num par de décadas. Quer dizer, o principal beneficiado pela interrupção da continuidade institucional e a instauração de governos militares foi o capital. As empresas aumentaram seus lucros com as transformações na organização da extração de riquezas. Ao terror sobre os territórios e sobre seus próprios trabalhadores, somou-se a transferência descarada de recursos públicos em forma de subsídios, renúncia fiscal e outras benesses. Uma vez implantadas essas novas formas de dominação, retornou-se a governos civis, sobre os quais não pesava a ilegitimidade flagrante que recaía sobre os militares.

De todas as ditaduras do período, a brasileira foi a mais duradoura: de 1964 a 1985. E o retorno ao governo civil realizou-se, nas palavras do General Golbery do Couto e Silva, ministro e ideólogo da ditadura, de forma “lenta, gradual e segura”. A Lei da Anistia, de 1979, operou como dispositivo que livrava os repressores de responder pelos crimes cometidos durante o “período de exceção”2. Diferentemente do que aconteceu em outros países da região, não houve no Brasil o que se chamou de “justiça de transição”. Ainda em maio de 2012 a então presidenta de Brasil, Dilma Rousseff, instalou a Comissão da Verdade sobre a ditadura, atendendo à demanda de “direito à verdade” da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos. A Comissão da Verdade realizou uma investigação, concluindo seus trabalhos com a entrega de um relatório em dezembro de 20143. O levantamento de dados foi realizado por meio de 13 grupos de trabalho. Um deles, dedicado especificamente à repressão dos trabalhadores e do movimento sindical. Esse grupo de trabalho (GT), que levava o número 13, teve imensas dificuldades para concluir sua tarefa nesse prazo. O principal problema não era a falta de documentos, e sim sua profusão e desorganização.

Correndo contra o calendário e com a participação de “pesquisadores de pés descalços”, muitos deles velhos militantes sindicais, puderam fundamentar a perspectiva sobre as finalidades do golpe de 1964 que aponta para sua caracterização como “contrarrevolução preventiva” e as empresas como suas principais beneficiárias. Outra singularidade da ditadura brasileira é o projeto industrializador que levou adiante, na contramão de todos os processos reprimarizadores das economias da região. No período que vai de 1964 a 1983 o êxodo rural resultou na migração de 70 milhões de brasileiros. A população rural diminuiu de 70% para 15%. Um jovem proletariado industrial surgiria nesse período. A ditadura pretendia realizar a “modernização com segurança”.

O GT13 continuou se reunindo após o encerramento das tarefas da Comissão da Verdade, com grande protagonismo da rede Intercâmbio, Informação, Estudos e Pesquisas (IIEP), integrado por ex-militantes sindicais e pesquisadores de universidades. Tinham não apenas indícios, mas provas que precisavam de uma maior sistematização, sobre a participação de mais de 80 grandes empresas na repressão a trabalhadores e comunidades  que, nos territórios, resistiram à pilhagem facilitada pelo Estado. O terror não apenas desarticulava as organizações sindicais, também intimidava para impor uma intensidade ainda maior na exploração do trabalho. Entre essas empresas, estava a transnacional Volkswagen. Em 2016, o Ministério Público acolheu a acusação contra a empresa, buscando não apenas a divulgação da verdade histórica, senão também ações de reparação. O resultado foi um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) que, entre outras exigências, obrigava a Volkswagen a destinar recursos à continuidade da investigação de empresas que participaram da repressão durante a ditadura e a publicar uma nota num grande jornal reconhecendo sua participação na repressão, o que a empresa não cumpriu senão parcialmente, já que, no texto, reconhecia-se mais como testemunha do que como culpada.

O Ministério Público assinou um convênio com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-UNIFESP) para utilizar os recursos entregues pela Volkswagen na pesquisa. O CAAF elaborou, com a colaboração do IIEP, o projeto “Responsabilidade das empresas por violações de direitos humanos durante a ditadura”, que seria levado adiante por investigadores de diferentes universidades do país. A pesquisa focalizou primeiro dez grandes empesas e realizou seu trabalho de 2021 até 2023. Trata-se das empresas privadas e públicas, de diferentes ramos: Companhia Siderúrgica Nacional, Josapar, Folha de S. Paulo, Itaipu, Paranapanema, Fiat, Aracruz, Petrobras, Cobrasma e Cia. Docas de Santos. No começo de 2023, iniciaram-se também pesquisas contra a Belgo Mineira, a Embraer e a Mannesmann. 

O objetivo explicitado por essa campanha é o de “verdade, justiça e reparação”. Na prática, isto supõe a divulgação da responsabilidade dessas empresas e a exigência de ações de reparação definidas em diálogo com vítimas sobreviventes, por um TAC mediado pelo Ministério Público. A já mencionada Lei de Anistia, de 1979, foi esgrimida sistematicamente para impedir processos criminais por delitos cometidos no marco da repressão ditatorial no Brasil. É por esse motivo que se tenta exigir a responsabilidade civil e laboral destas empresas. Nos dias 5, 6 e 7 de junho de 2023, foram apresentados os resultados referentes às 10 primeiras empresas, e foi publicada uma síntese de 327 páginas4 a partir de todo o material probatório reunido.

Mudaram os fundos acionários, os titulares e executivos. Porém, as empresas continuam lucrando às custas da exploração direta ou indireta dos trabalhadores, da expulsão da população e da degradação dos territórios de extração. Cabe perguntar como se poderia sanar o dano irreparável e permanente que causaram. A acumulação por pilhagem, a reconfiguração das relações de trabalho, a deterioração do salário como mediação, o aumento da massa marginal, a reestruturação produtiva são algumas das consequências da ação conjunta das empresas e do Estado. No contexto do atual modelo de acumulação, no qual aumenta e se acelera a pilhagem dos territórios e de suas gentes, o terror continua sendo um dispositivo que não tem sido desarmado, agora exercido não apenas por meio de ações ilegais de órgãos legais do Estado, senão também pela mão sinistra do Estado, articulada com organizações paramilitares, como as milícias e o tráfico ilegal.

Em todo caso, o esforço por saber o que essas empresas fizeram, impedi-las de continuar mentindo inocência é, em si mesmo, um bom começo. Alimenta as lutas pela recuperação dos territórios para a vida e qualifica o combate contra o capital.

Referências

  1. Ver FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2006. Ver também: WALSH, Rodolfo. Carta abierta a la Junta Militar. Disponível em: <https://www.educ.ar/recursos/fullscreen/show/22840>.
  2. Ver: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm#:~:text=1%C2%BA%20%C3%89%20concedida%20anistia%20a,de%20funda%C3%A7%C3%B5es%20vinculadas%20ao%20poder>
  3. Ver: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv>
  4. Ver: <https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/CAAF/Empresas_e_Ditadura/InformePublico.pdf>

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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