“E os negros? Onde estão os negros?”

Numa crônica cujo título – Onde estão os negros brasileiros – já diz muito, Nelson Rodrigues relata a visita de Jean Paul Sartre ao Rio de Janeiro, na qual o filósofo francês é execrado por haver dito que “o marxismo é inultrapassável”. Segundo Nelson, “naquele momento, ‘a maior inteligência do século’ era um Luvizaro”. 

Mas, no caso, o antimarxismo do Nelson era apenas um pretexto para introduzir outra questão: a do racismo à brasileira. E, assim, Nelson Rodrigues toma carona na visita de Sartre para, de um pulo, introduzir o problema do escamoteamento das relações raciais na sociedade brasileira. 

Ele conta que Sartre e Simone de Beauvoir foram recepcionados num apartamento em que a dona da casa ofereceu-lhes uma tigela de jabuticabas e que o filósofo as comia demonstrando um certo tédio. 

“Olhava para os presentes como quem diz: – ‘Que cretinos! Que imbecis!’ Em dado momento vem a dona da casa oferecer-lhe uma tigelinha de jabuticabas. O Sartre pôs-se a comê-las. Mas, coisa curiosa. Ele as comia com certo tédio (não estava longe de achá-las também cretinas, também imbecis). Até que, na vigésima jabuticaba, para um momento e faz, com certa irritação, a pergunta: – ‘E os negros? Onde estão os negros?’.”  

A pergunta se justificava porque o francês falara até então para um público formado por descendentes de europeus. 

“O Gênio não vira, nas suas conferências, um mísero crioulo. Só louro, só olho azul e, na melhor das hipóteses, moreno de praia. Eis Sartre posto diante do óbvio. Repetia, depois de cuspir o caroço da jabuticaba: – ‘Onde estão os negros?’ Na janela um brasileiro cochichou para outro brasileiro: -‘Estão por aí assaltando algum chofer’.”  

A redução da imagem do negro à do assaltante já diz muito sobre o preconceito racial na nossa “classe média” (melhor seria dizer “classes médias”). Diz, por exemplo, que as camadas marginalizadas, miseráveis, são em grande parte formadas pelos descendentes dos nossos antigos escravos africanos. Mas Nelson vai mais longe e bota o dedo na ferida quando denuncia a hipocrisia da propalada democracia racial brasileira, distanciando-se neste aspecto do discurso da “cordialidade” inspirado em Gilberto Freyre. Em vez de cordiais, como se propalava, Nelson Rodrigues mostra que as relações raciais no Brasil são marcadas pela aversão que promove o apagamento do negro. 

“’Onde estão os negros?’ – eis a pergunta que os brasileiros deviam fazer uns aos outros, sem lhe achar resposta. Não há como responder ao francês. Em verdade, não sabemos onde estão os negros. E há qualquer coisa de sinistro no descaro com que estamos sempre dispostos a proclamar: – ‘Somos uma democracia racial.’ Desde garoto, porém, eu sentia a solidão negra. Eis o que aprendi do Brasil: – aqui o branco não gosta do preto; e o preto também não gosta do preto.” 

E, em outra crônica, O único negro do Brasil, Nelson, incansável, repetiria a pergunta que não quer calar. 

“Gilberto Freire afirma que somos uma democracia racial. Mas está, de pé, a pergunta de Sartre: – ‘E os negros? Onde estão os negros?’  Realmente, ninguém é negro, a não ser o Abdias do Nascimento.” 

Adriana Facina vê uma diferença entre os etos de Nelson Rodrigues e Gilberto Freire que é, estabelecendo um paralelo com a relação entre Dostoievski e Tolstoi, a diferença entre o plebeu e o aristocrata.  Na esfera da política estavam afinados com o campo conservador, mas Nelson dissentia frontalmente de Gilberto na avaliação da chamada “democracia racial” brasileira. Como Nelson Rodrigues fazia questão de sublinhar, “a solidão do negro brasileiro não tem nem a companhia do próprio negro”. Essa discriminação do negro introjetada pelo próprio negro, Nelson a explicitou em Anjo Negro, peça na qual tudo soa estranho. 

Em alemão temos as palavras heimlich para o que é da esfera do familiar (sólito) e unheimlich para o que é da esfera do estranho (insólito). Acontece, diz Freud, que “heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich”. Desse modo, opera-se uma metamorfose e temos que “unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich“. Ou seja, o familiar faz-se estranho e surge um estranho familiar. Freud nos diz ainda que, “segundo Schelling, unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz”. 

Este é o sentido do estranho em Nelson Rodrigues, sobretudo na sua abordagem da “democracia racial” brasileira, quando ele revela “tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto”. É como um pesadelo, um estranho familiar, que reprimimos porque nos desagrada, mas que assoma como um conjunto de imagens, lembranças ou de impulsos inconscientes, condensados, elaborados, simbolizados ou então distorcidos. O efeito da revelação do que a cultura rejeita projeta o “teatro desagradável” na obra de Nelson Rodrigues, porque lança luz sobre o que o espectador sabe de antemão mas denega no cotidiano. 

Em Anjo Negro, o negro é o estranho de si mesmo. Estranha é a própria peça, uma tragédia, classificada entre as peças míticas, cuja “rubrica inicial indica um cenário sem nenhum caráter realista”, como nota Sábato Magaldi. Nelson simplesmente indicara: “A casa não tem teto para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro”. Mas estranho é sobretudo “Ismael, o Grande Negro” protagonista do drama, um estrangeiro de si mesmo. 

Estrangeiro e estranho têm o mesmo étimo latino. O termo estrangeiro vem do francês antigo estrangier (atual étranger) que por sua vez é proveniente do latim extraneus, ‘estranho’. Estrangeira é a identidade estranha, que tem outro pertencimento, na qual não me reconheço. 

Ensaiando a crítica de um perspectivismo eurocêntrico, Julia Kristeva aponta que o estrangeiro, imagem do ódio e do outro, não é a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável pelos males da cidade. O estrangeiro, alerta Julia Kristeva, habita em nós estranhamente. Ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo que traga o entendimento e a simpatia. O estrangeiro é o estranho de si mesmo. “Sintoma que torna o ‘nós’ precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades.” 

Narciso às avessas, Ismael é aquele que não pode suportar a própria imagem. O nome Narciso compartilha seu radical com a palavra narcótico. E temos em Ismael a encarnação da dor lancinante da alienação. Ao contrário de Narciso, que se apaixona pela própria imagem, Ismael vota uma profunda aversão à imagem de si mesmo. O que os vincula é que ambos tornam-se prisioneiros de suas imagens. 

A ascensão social funciona para Ismael como uma válvula de escape da sua condição subalterna. Isso porque a sua subalternidade está carimbada na cor da pele, vestígio indelével da ancestralidade escrava.  Ascender socialmente é para ele embranquecer.  

Trata-se de um “preto”, “mas de muita competência”. A competência ameniza a negritude.  

Anjo Negro tem sua peculiaridade na denúncia do racismo à brasileira. Em nenhum momento o negro é visto como uma etnia afro-brasileira. A questão étnica implica combinar características morfológicas como tipo de cabelo, cor da pele e traços fisionômicos com características culturais. No racismo à brasileira, no entanto, a questão racial é estetizada. São tão só traços estéticos da plástica racial que diferenciam o negro na sociedade dos brancos. Os traços culturais são apagados. Em Anjo Negro, não há referências a eles. Desse modo, a alienação do negro fica acentuada. O almejado processo de embranquecimento já se realizou no plano cultural. O negro introjetou a cultura da sociedade branca e não deixou rastros de sua cultura originária. Tem-se, então, um negro de alma branca, que não pode se conformar com suas características morfológicas. A questão que chama à reflexão é a de até que ponto esse apagamento cultural é o reflexo de uma realidade social, até que ponto ele é a expressão de um modo de ver conservador que não vai além da simples aparência do outro, o diferente? 

Paradoxalmente, a ascensão social aprofunda a solidão do negro, na medida em que o introduz como um estrangeiro no mundo dos brancos, acentuando o contraste claro-escuro, que já não há como eludir, e propiciando o isolamento do diferente. Por isso Ismael se refugia com Virgínia, a mulher que ele desvirginara, na casa cercada por “grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro”. 

Há uma outra questão relacionada ao racismo e à discriminação das identidades étnicas e culturais que ocupam um lugar subalterno em nossa sociedade, a qual não escapou a Nelson Rodrigues. Na crônica o Homem fatal, Nelson repete a pergunta de Sartre, mas desta feita sobre os índios. 

“- ‘E os índios? E os índios?’ Silêncio. Fiz nova tentativa: – ‘Chato o negócio dos índios.’ Nenhuma receptividade. E, então falei do jogo Botafogo x Vasco. Foi um impacto. Cada qual teve a sua opinião, o seu palpite. Em matéria de índios, ou o silêncio, ou o bocejo.” 

Nelson denuncia aqui uma conspiração do silêncio que vale tanto para os negros como para os índios. Sendo que, no caso dos índios, cala-se uma chacina histórica. 

Pensando bem, no caso dos negros também. 


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Um comentário sobre ““E os negros? Onde estão os negros?”

  • 5 de dezembro de 2023 at 2:59 pm
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    Excelente texto! Encontrei por acaso, pesquisando frases de Nelson… Pretendo usar em aula de Humanidades aqui na faculdade, pois permite abordar questões importantes. Abraço!

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