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Há pessoas que se antecipam, sem muito alarde, sem muita explicação… Um deles era Egídio1. Em uma ocasião o encontrei num aeroporto. Ele ia para o Paraguai, eu ia para a Argentina. Estranhei que ele estava bem fortinho. Ele, sempre enxuto, tinha engordado na cintura. “Cê está comendo bem, Egídio!”. Colocou o dedo indicador em vertical sobre os lábios, olhou para os lados e confidenciou baixando a voz: “São sementes”. Não desperdiçava viagem sem levar e trazer sementes crioulas. Daquela vez eram de cabaça pra fazer cuia de chimarrão, daquelas grandes, para os camponeses do departamento de São Pedro.
Lembrei de Egídio porque perdemos um outro companheiro guardião das sementes: Valdir do Nascimento de Jesus, que invasores mataram na “Comuna Olga Benário”, onde Valdir vivia, na noite de 10 de janeiro. Mataram também Gleison Barbosa de Carvalho e feriram 3 assentadas e 3 assentados que, com eles, faziam vigília para enfrentar as ameaças de invasão do assentamento.2 Valdir também não era de fazer alarde. Coletor de sementes da Mata Atlântica na região do Vale do Paraíba, preparava mudas para reflorestar. Ele dizia que plantar árvores é uma urgência, para voltar a haver água e oxigênio. “As sementes”, dizia, “são o princípio da vida”. A “Comuna Olga Benário” implementa sistemas agroflorestais, combinando a formação de bosque, e a abundância que ele propicia, com o plantio de comida para o dia a dia. É a transição da escassez para a abundância.
Estava pensando no Egídio e no Valdir quando assisti aos vídeos das pequenas peças de teatro que as comunidades zapatistas apresentaram no Encuentro de Resistencia y Rebeldía, dia 30 de dezembro passado, para imaginar “o outro dia depois do capitalismo”. Chamou minha atenção uma dessas peças3, em que, num exercício de imaginação realista, as comunidades se preparam para conservar e expandir esse “princípio da vida” do qual falava Valdir. Perante o colapso das cidades e a crise alimentar que cientistas de todo o planeta já anunciam4, no enredo, as comunidades enviam emissários a outros territórios para coletar, trocar e, se necessário, doar sementes.
Aprender a identificar, acondicionar e circular sementes parece estar entre os conhecimentos mais necessários e urgentes do tempo que nos foi dado. Entre os povos da Amazônia, as mulheres de prestígio são aquelas que cuidam em sua horta da maior variedade de plantas. Prestígio, porque a variedade é indício da quantidade de vínculos de confiança que possuem com outras mulheres, com as quais trocam sementes5. Outra coisa curiosa é que a troca de sementes responde a uma aritmética muito particular: se eu estiver em posse de duas variedades e der sementes delas para alguém, continuo com duas variedades; e, se troco essas duas com uma companheira que possui três, nós duas ficamos com cinco. Nas trocas de sementes, nunca se subtrai, sempre se soma.
É um despropósito guardar sementes indefinidamente sem plantar. Cada espécie e variedade tem um prazo no qual conserva seu poder germinativo. Então, se não posso plantar, por alguma razão, minha responsabilidade é encontrar alguém que plante. Parte do milho crioulo que plantamos em nossa horta coletiva foi doado por um vizinho que não conhecíamos. Ele viu que estávamos capinando e se aproximou oferecendo grãos, porque não tinha onde plantar: “quando eu tiver onde, vocês repõem os grãos para mim”. Foi um gesto de responsabilidade do vizinho. Uma dádiva que cria vínculo e supõe um retorno, diferido, da generosidade.
Quando plantamos, mencionamos a procedência da semente, se é segunda ou terceira geração que plantamos no lugar, e de onde veio a “avó”, quem doou ou trocou com a gente e as recomendações de manejo que acompanharam as sementes. Às vezes, o grão ou a muda vêm junto com a receita, quando se trata de um alimento. No momento do plantio, há uma lembrança agradecida ao território de procedência6.
Aprendizados de uma ética que vem de longe e que festejamos sem muito barulho, como Egídio e Valdri.
Referências
- Egídio Brunetto, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ver: https://mst.org.br/2020/11/30/egidio-brunetto-sua-vida-e-seu-legado//
- A área rural do município de Tremembé, onde está a “Comum a Olga Benário”, é cobiçada pelo negócio imobiliário. Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/01/11/ataque-ao-mst-teria-sido-motivado-por-disputa-de-terra-com-crime-organizado.htm
- Ver: https://vimeo.com/1045823888
- Ver: https://www.pagina12.com.ar/796791-mas-de-150-cientificos-laureados-piden-actuar-ya-para-evitar
- Comunicação oral com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, 11 de novembro de 2024.
- Recomendação do Júlio Müller, outro guardião de sementes