Eleições nos EUA e a recorrente fantasia de um capitalismo esverdeado

Em uma entrevista no dia 04 de outubro ao tradicional programa de TV estadunidense 60 Minutes, Michael Mann, climatologista mundialmente conhecido e reconhecido, reafirmou o que já vinha dizendo em outros espaços: que um segundo mandato de Donald Trump significaria um “fim da linha” para nossas pretensões de evitarmos transformações climáticas irreversíveis. No último mês, avaliações idênticas (ou semelhantes) foram repetidas em uníssono por várias outras figuras relevantes da ciência climática, do jornalismo ambiental, do ativismo ecológico e da política institucional. 

Combinada a esse prognóstico sombrio, vimos também uma expectativa cautelosa de que um eventual governo Biden reabriria vias de política ambiental que poderiam nos dar alguma possibilidade de evitar um colapso catastrófico. O próprio candidato fez acenos aos movimentos ambientalistas do país, primeiro de maneira muito ambígua e depois, nos últimos dias de campanha, de maneira um pouco mais explícita e decidida. 

Dada a forma como essa linha do debate público evoluiu, parecia que a humanidade, estando atada aos destinos tomados pelos EUA, encontrava-se diante de uma encruzilhada entre uma via trumpista suicidária e uma via aberta por Biden, de possível salvação. Quero aproveitar esta coluna de novembro para argumentar que essa é, na verdade, uma falsa encruzilhada, por dois motivos. 

Primeiro, é inegável que a abrangente política antiecológica de Trump representa um fator relevante de aceleração de diversos processos destrutivos e ecologicamente disruptivos. No entanto, por um lado, sua derrota nas urnas ainda fica muito distante de alcançar as verdadeiras raízes do problema. Isso porque, como afirma o Editorial de 9 de novembro do Contrapoder, “Trump não é a causa dos problemas. É apenas uma de suas manifestações perversas”. 1 Por outro lado – e, creio, mais importante –, uma nova vitória eleitoral do presidente não poderia significar o fim de nossas chances de impedir as mudanças climáticas, pelo simples fato de que nossas chances já acabaram. Mesmo que isso nem sempre seja dito com todas as letras, pesquisas recentes vêm consolidando o entendimento e multiplicando evidências de que as mudanças já começaram, estão se acelerando e (algumas delas) podem prolongar-se por até milênios. 2 Em outras palavras, com ou sem Trump, nós vamos viver em um mundo em rápida transformação, daqui até o fim dos nossos dias. Nosso desafio é não torna-lo inabitável por completo e encontrar formas de nos adaptarmos a esse mundo novo. Por isso, a derrota do atual presidente, agora confirmada, é significativa em um sentido bastante diferente daquele indicado por Mann e tantos outros.

Segundo, mesmo reconhecendo que essas mesmas pessoas apontam limites quanto à magnitude da virada política que Biden poderia realizar, ainda assim a esperança de avanços significativos é consideravelmente sobredimensionada e padece de um erro de avaliação fundamental. Uso como ilustração, a seguir, uma das propostas mais pedidas (e comemoradas): o fim dos subsídios aos combustíveis fósseis.

No debate do dia 22 de outubro, Trump perguntou a Biden se ele acabaria com a indústria do petróleo. Biden, claudicante, respondeu que realizaria a transição que poria fim a essa indústria. Do ponto de vista dos movimentos ambientalistas, esse seria um movimento importante na direção de uma transição energética mais ampla, que descarbonizasse a economia estadunidense. Rapidamente, porém, a resposta improvisada pelo candidato foi reformulada pelos organizadores de sua campanha para assumir uma redação que parecesse um pouco menos afrontosa a interesses econômicos poderosos. Assim, o fim da indústria do petróleo converteu-se em fim dos subsídios aos combustíveis fósseis. Com isso, um pilar decisivo da almejada transição energética foi substituído por um compromisso vago de suspender políticas de incentivo a esses combustíveis. A ambição (quase confessada) de tal estratégia é que a economia fóssil definhasse e, no decorrer de um tempo prolongado, morresse de causas naturais. O próprio Biden declarou que os combustíveis fósseis não seriam eliminados antes de 2050.3

 Antes de mais nada, esse caso nos ajuda a perceber que propostas apenas moderadamente ambiciosas não costumam prosperar, sendo sepultadas antes mesmo de circularem nos espaços de poder. Além disso, notem que, em sua versão diluída, haveria dois processos em curso naquela demorada transição. Primeiro, com o fim dos subsídios, a maior parte da nova geração energética supostamente estaria apoiada em uma matriz limpa. Segundo, à medida que a infraestrutura relacionada aos combustíveis fósseis se tornasse progressivamente cara e obsoleta, seria substituída, ao fim de sua vida útil, por fontes alternativas. Tanto num caso quanto no outro, a avaliação se apoia em um raciocínio que contempla apenas variações na margem. Alegando-se que o crescimento pode ser limpo, contorna-se o fato de que esse crescimento se efetiva sobre uma base suja, intensiva em emissões. 

Dizendo de outro modo, quando acreditam ter mostrado que a transição energética é possível sem grandes rupturas, o máximo que fazem é indicar que o crescimento da oferta de energia poderia ser descarbonizado. No entanto, se olharmos para o mundo como um todo, nem mesmo essa “transição” na margem tem ocorrido. Dados da Agência Internacional de Energia (IEA) mostram que, entre 1990 e 2018, a participação dos combustíveis fósseis na matriz energética mundial cresceu de 81,19% para 81,21%. Como explicar tal resultado, sabendo que esses 28 anos de política energética internacional foram capazes de expandir a oferta primária de energia a partir de fontes renováveis em 67%? Para explicar, basta saber que a oferta primária de energia a partir do gás natural cresceu 80% no mesmo período; e que a oferta a partir do carvão cresceu 78%; e que a oferta a partir do petróleo cresceu 38%. Já em termos absolutos, os maiores acréscimos de oferta primária de energia vieram das seguintes fontes, do maior para o menor: carvão, gás natural, petróleo e renováveis.4

Nos Estados Unidos, a situação não é muito melhor. Embora a participação das fontes fósseis na matriz energética estadunidense tenha recuado, seu patamar é até hoje mais elevado que a média mundial. De qualquer forma, esse recuo proporcional fez a matriz estadunidense ficar mais limpa. Todavia, considerada em níveis absolutos, a oferta de energia primária a partir de fontes fósseis cresceu 8,8% no mesmo período. Nesse resultado, reencontramos o x da questão: a oferta de energia tornou-se mais limpa e, ao mesmo tempo, tornou-se mais suja! Todos aqueles ainda dispostos a reeditar a velha fantasia de um capitalismo verde, ou esverdeado, ou esverdeando, depositarão todas as suas fichas no primeiro aspecto deste aparente paradoxo. Já aqueles que tomam a realidade em sua totalidade contraditória, perceberão que esse é apenas mais um caso de um vastíssimo histórico de metas e esforços frustrados. Sobre os primeiros, é cada vez menos provável que saiam do torpor que os incapacita de conceber um mundo sem capitalismo. Sobre os segundos, cabe compreender os determinantes estruturais de nosso permanente fracasso e demonstrar a incapacidade crônica desse sistema de moderar sua fome por recursos e por energia, seu impulso expansivo e sua vocação destrutiva.

Referências

  1. Cf.: https://contrapoder.net/editorial/eua-um-passo-atras-na-marcha-para-abismo/.
  2. O número de artigos e relatórios que poderiam ser indicados aqui é realmente imenso. Conferir, por exemplo, as seguintes publicações: Special Report: Global Warming of 1.5 ºC (https://www.ipcc.ch/sr15/), Special Report on the Ocean and Cryosphere in a Changing Climate (https://www.ipcc.ch/srocc/), A 23 million-year record of low atmospheric CO2 (https://pubs.geoscienceworld.org/gsa/geology/article/48/9/888/586769/A-23-m-y-record-of-low-atmospheric-CO2), The emergence of heat and humidity too severe for human tolerance (https://advances.sciencemag.org/content/6/19/eaaw1838),  The Arctic is burning like never before — and that’s bad news for climate change (https://www.nature.com/articles/d41586-020-02568-y).
  3. Cf.: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-54670269.
  4. Todos esses valores foram obtidos a partir da planilha completa disponibilizada pela IEA em: https://www.iea.org/data-and-statistics?country=WORLD&fuel=Energy%20supply&indicator=CoalProdByType.

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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