Em qual etapa do golpe nos encontramos?

Embora a centralidade do poder se manifeste no aparelho estatal, precisamos compreender que a história é uma experiência vivida e seu processo concreto, em andamento, manifesta ações empreendidas por homens e mulheres. São práticas valorativas, interesses exercitados, disputas políticas e condições objetivas que são internas ao processo histórico. Sendo assim, esse complexo social nos permite construir, na investigação histórica, a partir do processo da luta de classes, que alteram valores, ações, interesses e percepções, as balizas das condições objetivas que, de dento das manifestações históricas reais, podem desvelar a dialética do processo.

A conjuntura brasileira, condensada nas mais diversas crises, está tensionada pela postura golpista do militar-presidente, Jair Bolsonaro. O agitador fascista, chefe de um governo de extrema direita, operou um conjunto de ações que está encontrando terreno fértil nesse espaço-tempo da pandemia do coronavírus. Trata-se da construção do isolamento político, agitação cotidiana para sua base política e social, caos controlado e progressivas mensagens de ação golpista. Bolsonaro não precisa dos camisas-pretas, ele já tem as hordas verde-amarelas que estão alimentadas no obscurantismo, no racismo, na lgbtfobia, na misogenia, na teologia neopentencostal da “prosperidade” e na cruzada anticomunista e, do ponto de vista de frações do bloco no poder, em segmentos da burguesia industrial e comercial que não dependem do consumo de massas, nem do dólar desvalorizado .

A pandemia recolheu para as “Fortalezas fechadas”, sem outra opção neste momento – que não sejam as ações virtuais e brigadas de solidariedade -, as organizações dos trabalhadores e a esquerda socialista. Como ir para as ruas, portas de fábricas, escolas, universidades, comunidades populares e fazer manifestação em via pública? 

Estamos numa situação muito complexa e difícil, inclusive, com possibilidade da pandemia executar lutadores/as sociais, para que possamos operar a política nesse momento. Agir através da guerrilha virtual, panelaços, abaixo-assinados, formação política com a maior amplitude possível através de lives, resistência daqueles/as que estão na linha de frente dos serviços essenciais; tudo isso parece muito pouco para enfrentar o neofascismo e o caos controlado do governo da extrema direita neste momento, contudo, o que fazer? Como a esquerda socialista pode criar uma plataforma de lutas nessa conjuntura que não se restrinja ao esforço político que está sendo feito? A história nos informa, até aqui, que nenhuma revolução foi operada em momentos de pandemia mundial. No entanto, precisamos encontrar meios e formas para que a longa noite planejada pelo neofascismo e a extrema direita do governo Bolsonaro, não opere seu ato final.

Colocam-se, na ordem do dia, ações que organizem um campo ideológico e se prepare para intervir, bem próximo, no chão da luta de classes. 

Está comprovado que as políticas do neoliberalismo são responsáveis pela incapacidade de se responder, satisfatoriamente, à pandemia. As ações de controle fiscal para impedir investimentos sociais e proteger o fundo público para a revalorização do capital são responsáveis pela destruição da saúde e da educação públicas, dos benefícios sociais, de um conjunto de serviços essenciais que produzem condições de convívio sociais menos desumanas. A ideologia neoliberal está sendo desvelada, portanto, precisamos atacar esse projeto da burguesia e deixá-lo exposto perante os trabalhadores e o conjunto da população.

A história do tempo presente, através de acontecimentos recentes (de 2013 para cá), nos informa que liberais, conservadores, agentes do financismo tóxico, mutantes sociais democratas, extrema direita e o complexo da pequena política nos diversos níveis do parlamento são responsáveis pela presença de Bolsonaro no Palácio do Planalto e pelo que ele representa de risco para as liberdades democráticas. Como nos alerta Domenico Losurdo, o liberalismo sempre esteve ao lado das tensões mais abruptas da ordem política e o seu divórcio com a democracia formal está presente desde tempos remotos na história política da humanidade.

Embora na estrutura da ordem do capital nem tudo que é estatal é público, na atual conjuntura ideológica é fundamental fazer a defesa do que é público e estatal. Só com a ampliação dos serviços públicos, mantidos pelo investimento estatal, o conjunto da população terá mínimas condições de sobrevivência. Precisamos da ampliação do SUS, de investimentos na universidade pública, na ciência e tecnologia, na formação da educação básica e, sem dúvida alguma, da reestatização do que foi privatizado para podermos gerar um parque produtivo de defesa da nossa soberania.

É necessário se antecipar ao que será proposto pela burguesia interna, articulado pelo bloco de forças no poder, como saída para a crise econômica. A lógica do gerente do capital no governo Bolsonaro, Paulo Guedes, é destrutiva para qualquer saída que leve em conta as necessidades básicas do conjunto dos trabalhadores e da população. A pressão sobre o parlamento, a construção das diversas formas de protesto e mobilizações, bem como propostas alternativas que se consolidem como palavras de ordem que consigam vencer entre as massas, são caminhos que devemos construir para operar no chão da luta de classes.

O agitador fascista, Jair Bolsonaro, avança na sua lógica bonapartista. A atual etapa do golpe congrega ações públicas das forças da extrema-direita, se manifesta no enfrentamento com as instituições do Estado (parlamento federal e STF), confirma-se com o apoio velado das Forças Armadas, divulga-se com a disputa feita pela pequena burguesia (classe média) sobre a questão da pandemia e do confinamento social, e ganha contornos de vitória com a incapacidade do Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal reagir aos movimentos agressivos do militar-presidente. Derrotaremos o movimento organizado do caos controlado de Bolsonaro com difusas declarações de governadores e parlamentares, com críticas de juízes do STF, com evasivas do Ministério Público? A cena política nos indica que as atuais balizas da democracia formal não operarão com impedimentos para conter o projeto de assalto ao poder do neofascismo bolsonarista. 

Os passos do golpismo estão construindo seu ato de força, as circunstâncias da pandemia é uma janela de oportunidade para a extrema-direita; a condensação de crise, ao ser desvelada, pode nos colocar de frente para a história. As tarefas que precisam ser operadas pela esquerda socialista são enormes numa conjuntura com essas características e particularidades. O primeiro passo é a auto-organização dos trabalhadores e dos movimentos populares, ao tempo em que, em momentos de impasses na luta de classes, quando estamos um passo atrás do inimigo, precisamos avançar com muita força na agitação socialista, na formação política e na construção de alternativas para a mais ampla unidade de ação entre as forças que se colocam no campo de luta contra o golpe e na defesa dos interesses da classe trabalhadora.

Organizar e lutar, lutar e organizar é a razão dialética para barrar o golpe e vencer no chão da luta de classes.

Milton Pinheiro

Cientista Político, professor de história política da UNEB, integra os conselhos editoriais de várias revistas marxistas, é pesquisador na USP. Autor/organizador de oito livros, entre eles: "Ditadura: o que resta da transição"

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