O capital educador renomeia seus prepostos
Por Priscila Monteiro Chaves1 e Olinda Evangelista2
Um bom propagandista
Faz de um monte de estrume um lugar de passeio.
Quando não há gordura, ele demonstra
Que uma compleição magra nos embeleza.
Milhares que o escutam discursar sobre rodovias
Alegram-se como se possuíssem automóveis.
Nos túmulos dos que tombaram ou morreram de fome
Ele planta loureiros. Mas bem antes de se chegar a isso
Falava da paz quando canhões desfilavam ao lado.
(BRECHT, 2019, p. 323)
A cada amanhecer, um assalto
Na última quinta-feira, 17, o ministro da Economia Paulo Guedes sugeriu que sobras de alimentos de restaurantes pudessem ser destinadas às populações famintas como forma magistral de ação de combate aos índices alarmantes de insegurança alimentar do país (MELITO, 2021), assumindo, involuntariamente, que sua política econômica está falida. Tereza Cristina, Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, não contou tempo para fazer coro com o colega e tripudiou um pouco mais sobre aqueles jogados à miséria, defendendo a “[…] flexibilização de regras que tratam da validade de alimentos”. Ambos tentavam fazer parecer que esse seria um excelente modo de ação do governo para combater a mais recente disparada do preço da cesta básica (REDE BRASIL ATUAL, 2021). Acreditando piamente ser homem branco de sangue azul, elegante e cheirando a perfume importado, o ministro não perdeu a chance de confirmar para o Brasil sua inspiração nefasta: “Você vê um prato de um classe média europeu, que enfrentou duas guerras mundiais, e nota que são pequenos, enquanto os nossos não. Há muito desperdício” (REDE BRASIL ATUAL, 2021). Dizia Brecht, no poema epigrafado (2019, p. 321): “É possível que no nosso país nem tudo ande como deveria andar. / Mas ninguém pode duvidar de que a propaganda é boa.”. Boa para quem?
O tom cretino e barato corre solto nas posições defendidas por acólitos governamentais; contudo, de outras tendências políticas do campo da Educação espocam contribuições específicas para o irracionalismo vigente! O Observatório do Movimento pela Base estampa em sua página a seguinte manchete: CONHEÇA OS EMBAIXADORES DA BNCC! O Observatório sacou, de seu picuá de “boas ações” para o povo, a ideia de transformar alguns técnicos de Secretarias de Educação municipais e estaduais, dotados de casos de sucesso, em Embaixadores da Base Nacional Comum Curricular.3 A proposta consiste na instituição de “[…] um fórum para trocas de boas práticas4 de implementação, mostrando caminhos possíveis para seus colegas se inspirarem e, ao mesmo tempo, passar por formações e apoio técnico para aprimorar ainda mais seu trabalho” (MPB, 2021a, grifos nossos)5.
Com quem conta a implementação da Base?
É de se desconfiar que a hegemonia da BNCC não ande lá essas coisas. Obstruída, em parte, por uma pandemia que dificultou a implantação6 do maior projeto curricular do novo ativismo burguês (FONTES, 2017) na educação somada à resistência de uma fração de pesquisadores e professores, novas estratégias precisam emergir. Conquanto os Embaixadores sejam poucos, o critério para sua eleição foi que trouxessem “[…] na bagagem diferentes realidades, […] vivências em redes de grande porte e em redes menores; em escolas ribeirinhas e quilombolas; em grandes centros urbanos e em zonas rurais” (MPB, 2021a). Um aspecto fundamental nessa iniciativa é o desejo do MPB (não realizado, mas no seu horizonte) de lançar tentáculos sobre as mais longínquas regiões e populações. No projeto do capital, ninguém deve ficar para trás, isto é, imune aos seus interesses!
Em Santa Catarina, a representante da Secretaria da Educação é a coordenadora da implementação da BNCC, representando ademais a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) desde 2017. Afirma ela: “É importante darmos continuidade às boas práticas que vieram com o regime de colaboração. Vencemos barreiras políticas, divergências e aprimoramos a forma de diálogo e negociação. Agora precisamos aproveitar essa experiência e aprofundá-la. É comum ouvirmos que os municípios não se sentem mais tão sozinhos e que têm mais força agora, com apoio dos demais” (MPB, 2021b). Semelhante afinco na conformação de profissionais da Educação é perceptível no depoimento de uma técnica da Secretaria de Educação de Araguaína, no Tocantins. O órgão possui uma Diretoria de Formação de Professores em Serviço em parceria com diferentes setores, para “[…] oferecer atualizações constantes, sempre alinhadas à BNCC”. Segundo ela, “[…] a secretaria busca garantir os direitos de aprendizagem e desenvolvimento, sempre de olho nos documentos orientadores” (MPB, 2021c).
Alguns dos Embaixadores afirmam ter aproveitado o momento de pandemia para realizar encontros de formação, por meio de plataformas digitais, para melhor se ajustarem à BNCC. A representante da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, onde atua desde 2002, mencionou: “[…] mesmo durante a pandemia, […] fizemos grandes esforços para que os professores e gestores escolares tivessem sempre como ponto de partida de seus planejamentos os documentos curriculares e as orientações previstas na BNCC” (MPB, 2021d).
Pautados pela ideologia das competências, como prevê a política curricular em questão, essas formações reuniram esforços para tentar garantir, mesmo em um momento histórico de genocídio sanitário, maior aderência por parte dos professores. Em Santos (SP), o modus operandi não desertou dessa linha. “Nossa principal meta é apoiar os professores para que consigam ensinar o que de fato está registrado no currículo, perseguindo a investigação e o desenvolvimento de competências e habilidades. As discussões têm como foco a maneira de transformar as habilidades em uma aula para o novo formato. Construímos roteiros e discutimos com os professores, pensamos em avaliação e como elas podem verificar as aprendizagens, mesmo em um contexto tão desfavorável” (MPB, 2021e), afirma o Embaixador do litoral paulista.
Essa perspectiva de capilarização, cada vez mais operativa e articulada, preocupada em fazer chegar habilidades e competências “no chão da escola”, atua na salvaguarda de que futuras gerações de trabalhadores aprendam a produzir e a se tornar mercadorias. Tal aprendizado deve ser garantido não somente nas relações de trabalho, mas desde o início da escolarização. Certamente está em jogo criar a maior quantidade possível de obstáculos – físicos e mentais – à construção da consciência crítica, à organização da classe trabalhadora para encontrar saídas históricas ao desfile de horrores e atentados contra a humanidade e contra os recursos naturais que o capital-imperialismo – aliado ao protofascismo e a um bom comercial – exacerba (NEVES; PICCININI, 2018).
Quando se trata dessa conformação no interior das instituições educacionais, o MPB preza por uma propaganda bem feita para revestir de soluções meramente técnicas seu conteúdo político e com isso avolumar sua aura de inevitabilidade (CHAVES, 2021). Quem rememorou isso foi Palácios, Secretário de Educação Básica do MEC entre 2015 e 2016, ao ser questionado sobre os modos como o Movimento pela Base angariou rapidamente apoio da população quanto à recepção positiva da BNCC: “A participação da Lemann foi muito importante. Especialmente na relação com os meios de comunicação. Em todas as situações de dificuldade, em momentos conturbados politicamente, ela foi fiadora desse movimento em setores sobre os quais não tinha nenhuma influência” (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 578). A Fundação Lemann, principal articuladora do MPB, orquestrou uma “[…] estratégia de mídia, em que representantes da fundação treinaram dezenas de jornalistas para cobrir questões educacionais, inclusive a BNCC, e apresentá-las de forma positiva. A fundação organizou eventos de alto nível que receberam grande cobertura da mídia” (2020, p. 578).
Por que ‘embaixadores’?
Como mostram os fatos, lançar mão da boa propaganda ajuda muito, mas não é suficiente para o êxito do bloco hegemônico e, por isso, outras vias são produzidas. Quando o MPB delineou o processo de elaboração da BNCC, também tratou de financiar o preparo de seus intelectuais orgânicos. A FL, secretária executiva e responsável por puxar o chapéu no interior do Movimento, patrocinou pesquisas e realizou seminários educacionais fora do país, “[…] pagou as refeições durante as reuniões e comprou passagens aéreas, de forma que os funcionários do MEC, do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) pudessem participar de eventos nacionais. […] [O MPB] estava sempre à mesa, já que, literalmente, pagava o almoço” (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 575).
A ideia de criar “embaixadores” parece privilegiar essas mesmas frentes de outrora, a propaganda ao lado do investimento em pessoal. Isso porque ela compõe o rol das estratégias de cooptação de profissionais da área, emprestando-lhes uma denominação aparentemente ‘empoderadora’ que requer, em troca, o seu ‘engajamento’ na difusão e implementação da BNCC nas escolas públicas. Nesse sentido é oportuno objetar, por que ‘embaixadores’?
O uso mais clássico do termo remete a uma categoria hierarquicamente relevante na representação diplomática de um Estado junto a outro Estado. Alguns diferentes sentidos dados ao vocábulo são também os de delegado, emissário, mensageiro, porta-voz. Todavia, em seus usos mais comerciais, como forte ação do marketing digital, os embaixadores de uma marca seriam aqueles capazes de expandir o tráfego de clientes.
Os embaixadores de marcas têm em vista oferecer um contato minimamente “humanizado”, uma espécie de pessoalização nas relações comerciais, tornando-se mais relevante esse tipo de investida em confronto com aquelas ações publicitárias de caráter mais massivo. Nomear embaixadores ajuda no assentamento de uma “[…] imagem saudável e positiva para a […] marca”. Segundo os especialistas publicitários, os embaixadores (ou Brand Ambassadors, para os que não abrem mão do palavreado estrangeiro) devem atrair consumidores e contribuir “[…] com a taxa de fidelização e conversão” dos indivíduos. Portanto, não é suficiente alguém que somente “anuncie” seus pontos positivos, é necessária uma aquiescência por parte do embaixador (SOMMA, 2020, grifos nossos).
O aspecto categórico para ser um embaixador é se posicionar de modo completamente engajado à marca com a qual se relaciona, uma vez que as percepções do consumidor sobre ‘marcas’ não se limitam ao nível da propaganda – o que talvez faça com que alguns ministros não consigam a verossimilhança que desejariam. Indicar embaixadores demonstra uma tentativa – quiçá desesperada – de conexão de fato com o produto para o qual se deseja angariar consenso; tal aceitação supõe, portanto, a identificação cada vez mais direta e menos artificiosa de pessoas (suas histórias, suas experiências) com o objeto em questão. Assim, ninguém melhor (?) que professores e profissionais outros da educação, que trazem consigo anos de atuação na escola, para dar a essa relação a aparência mais orgânica possível.
Conversão e engajamento
Dois termos-chave se revelam nessa estratégia marketeira: a conversão e o engajamento. Engajamento tem sido a palavra de ordem nas propostas de formação docente, das oficiais e das urdidas por Organizações Multilaterais; trata-se de um ‘engajamento’ o mais esvaziado possível de fundamentos políticos e epistemológicos, amparado no praticismo servil ao capital, lastreado no desenvolvimento de habilidades e competências. Quanto à conversão, seu radical e sufixo nos remetem ao processo de “[…] transmutação laboral do professor que demarca seu início mais explícito nos finais da década de 80 do século passado e tem reunido interessados ‘apartidários e bem-intencionados’”: o fenômeno da reconversão docente. Não esqueçamos da construção propagandista que dá como certa a existência de “[…] um ‘vazio de competências’ que vem sendo preenchido pelo Aparelho de Estado, por APHs, por Instituições de Ensino Superior (IES) e por empresários de bons olhos, vista larga e bolsos pululantes” (CHAVES; FLORES; EVANGELISTA, 2020).
Do lado de lá, o capital procura esconder seus interesses “reiventando” suas faces camaleônicas para seguir acometendo almas e roubando corpos para suas demandas de aumento da taxa de lucro, para sair de sua crise. Do lado de cá, seguimos fazendo uso de nossos instrumentos de organização e luta e do nosso compromisso para contrarrestar o vocabulário da alienação programada. Os ‘embaixadores’ se somam aos ‘vulneráveis’, aos ‘empreendedores’, aos ‘protagonistas’, aos ‘empoderados’, esquecidos de que a palavra carne não sacia e a palavra roupa não aquece (BRECHT, 2019).
Referências:
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017.
BRECHT, Bertolt. Necessidade da Propaganda. In: BRECHT, Bertolt. Poesia. São Paulo: Perspectiva, 2019.
CHAVES, Priscila Monteiro. Uma base para a semiformação socializada: a vulgarização da crítica como estratégia de produção do consenso. Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 37, 2021.
CHAVES, Priscila Monteiro; FLORES, Renata; EVANGELISTA, Olinda. Ensino híbrido cai sobre o professorado. Contrapoder, 23 nov. 2020. Disponível em <https://contrapoder.net/colunas/ensino-hibrido-cai-sobre-o-professorado/>. Acesso em: 17 jun. 2021.
FONTES, Virgínia. O capital e o mundo do trabalho. Entrevista. Garra. Ano XVI nº 204, Recife, Dezembro 2017. pp. 16-21.
MELITO, Leandro. Brasil tem 125,6 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar na pandemia. Brasil de Fato. 13 de Abril de 2021. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/04/13/brasil-tem-125-6-milhoes-de-pessoas-em-situacao-de-inseguranca-alimentar-na-pandemia>. Acesso em: 17 jun. 2021.
MOVIMENTO PELA BASE. Conheça os Embaixadores da BNCC. Observatório. 2021a. Disponível em: <https://observatorio.movimentopelabase.org.br/conheca-os-embaixadores-da-bncc/>. Acesso em: 18 jun. 2021.
MOVIMENTO PELA BASE. Regime de colaboração no estado de Santa Catarina para construção dos currículos. Observatório. 2021b. Disponível em: <https://observatorio.movimentopelabase.org.br/regime-de-colaboracao-no-estado-de-santa-catarina-para-construcao-dos-curriculos/>. Acesso em: 18 jun. 2021.
MOVIMENTO PELA BASE. Adequações no currículo e nas orientações para a Educação Infantil em Araguaína (TO). Observatório. 2021c. Disponível em: <https://observatorio.movimentopelabase.org.br/adequacoes-no-curriculo-e-nas-orientacoes-para-a-educacao-infantil-em-araguaina-to/>. Acesso em: 18 jun. 2021.
MOVIMENTO PELA BASE. Formação dos educadores de Goiânia (GO): ações permanentes e adequadas ao contexto. Observatório. 2021d. Disponível em: <https://observatorio.movimentopelabase.org.br/formacao-dos-educadores-de-goiania-go-acoes-permanentes-e-adequadas-ao-contexto/>. Acesso em: 18 jun. 2021.
MOVIMENTO PELA BASE. Em Santos (SP), investigação e pesquisa de olho nas habilidades e competências. Observatório. 2021e. Disponível em: <https://observatorio.movimentopelabase.org.br/em-santos-sp-investigacao-e-pesquisa-de-olho-nas-habilidades-e-competencias/>. Acesso em: 18 jun. 2021.
NEVES, Rosa Maria Corrêa das; PICCININI, Cláudia Lino. Crítica do imperialismo e da reforma curricular brasileira da Educação Básica: evidência histórica da impossibilidade da luta pela emancipação da classe trabalhadora desde a escola do Estado. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 10, n. 1, p. 184-206, maio 2018.
PEREIRA, Jennifer Nascimento; EVANGELISTA, Olinda. Quando o capital educa o educador: BNCC, Nova Escola e Lemann. Movimento-Revista de educação , (10), p. 65-90, 2019.
REDE BRASIL ATUAL. Brasil de Fato. Paulo Guedes defende utilizar sobras de restaurantes para alimentar pobres. 18 de junho 2021. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/06/18/paulo-guedes-defende-utilizar-sobras-de-restaurantes-para-alimentar-pobres>. Acesso em: 18 jun. 2021.
SOMMA. Por que ter um embaixador de marca? Blog da Somma. 9 de dezembro 2020. Disponível em: <https://sommapublicidade.com.br/blog/o-que-sao-embaixadores-de-marca.html.> . Acesso em: 17 jun 2021.
TARLAU, Rebecca; MOELLER, Kathryn. O consenso por filantropia: como uma fundação privada estabeleceu a BNCC no Brasil. Currículo sem Fronteiras, v. 20, n. 2, pp. 553-603, maio/ago. 2020.
Referências
- Professora da UFES.
- Professora Aposentada da UFSC.
- Sobre a BNCC e a Fundação Lemann cf. Pereira; Evangelista, 2019.
- A coleta e difusão de “boas práticas”, “práticas exitosas”, “práticas baseadas em evidências” é uma proposta de organizações como a UNESCO, a OCDE e o Banco Mundial, mas também está presente em documentos do Conselho Nacional de Educação e de Aparelhos Privados de Hegemonia, a exemplo do Todos pela Educação.
- Sobre o Movimento pela Base cf. Neves; Piccinini, 2018.
- “Muitas secretarias não conseguiram prosseguir com a implementação por conta das providências relacionadas às aulas remotas e ao preparo do plano de contingência para reabertura das escolas” (MPB, 2021b), indica Sônia Regina Fachini, uma das embaixadoras do Programa.
O texto faltou informações sobre a historia do projeto da nova BNCC e quem esteve a frente dos governos nos direferentes períodos históricos da elaboração até chegar neste atual gerente de plantão chamado governo.
Altair, de fato essas informações não estão no texto por falta de espaço. Mas fizemos uns pés de página que trazem parte dessa história.
Agradeço sua observação. Ficarei atenta no próximo texto.
Obrigada
Olinda