Entre a democracia restrita e o fascismo

Introdução

Passados quase dois meses da posse de Lula na presidência da República e da fracassada intentona golpista de oito de janeiro a situação política parece indicar a solidez do chamado “Estado Democrático de Direito” e a derrota política da perspectiva fascista representada pelo bolsonarismo. A ascensão do novo governo, a pronta resposta das “instituições” aos atos golpistas e o amplo consenso em torno da “defesa da democracia” geraram euforia e alívio entre democratas e progressistas, sugerindo a superação do momento mais regressivo e violento da história política do país desde o final da Ditadura Militar. No entanto, para além do justificado otimismo da vontade que a situação coloca, é preciso considerar a dinâmica política e social inaugurada pelo golpe de 2016, sua evolução recente e perspectivas futuras, particularmente no tocante aos interesses dos trabalhadores, partidos de esquerda e movimentos sociais.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o dito “Estado Democrático de Direito” cantado e defendido em prosa e verso por amplo arco de forças políticas e sociais é fruto de um processo de transição autoritária que mesmo sem abolir a rotina eleitoral, a liberdade partidária e o sistema de representação política deixou para trás a democracia de cooptação vigorante na Nova República em favor de uma democracia restrita, que repôs em novas bases a autocracia burguesa no país. Este processo tem seus lances iniciais ainda antes de 2016, com a intensificação da repressão policial às lutas sociais, a aprovação da lei antiterrorismo e a guinada do governo Dilma Roussef em direção ao neoliberalismo extremado em seu segundo mandato, mas se desencadeia efetivamente a partir do golpe de 2016. Baseada na criminalização das lutas e movimentos sociais, na restrição do espaço político e eleitoral dos trabalhadores e organizações de esquerda, na repressão policial e na violência política como principais mecanismos de controle do conflito social e num processo de fascistização do aparelho de Estado, que se acentuou no governo Bolsonaro, esta democracia restrita exacerba os elementos autoritários/oligárquicos e fascistas sincreticamente articulados no Estado burguês em detrimento de seus já anêmicos elementos democráticos. Esta transição autoritária é ainda qualificada autocraticamente por um processo de radicalização das políticas neoliberais que eliminam ainda mais os controles políticos sobre a movimentação do capital, flexibilizando/anulando direitos sociais e trabalhistas, desregulamentando as relações entre capital e trabalho, restringindo gastos sociais, pilhando empresas públicas, acelerando a expropriação privada de bens e recursos públicos e favorecendo a desregulação das relações entre Estado e capital. A lei da terceirização, as (contra)reformas trabalhista e previdenciária, o teto de gastos, a independência do Banco Central, a reforma do ensino médio, o favorecimento da grilagem de terras, do desmatamento e da mineração ilegais e o sucateamento/precarização dos órgãos estatais de fiscalização e regulação em diversos setores econômicos constituem as principais mudanças institucionais impostas pelo neoliberalismo extremado desde 2016, fortalecendo ainda mais a indigência democrática vigorante no país. Paralelamente, o processo de partidarização do poder Judiciário e instabilização da segurança jurídica, desfigurando ainda mais a Constituição de 1988, a intensificação da tutela militar e a disputa intestina entre segmentos do aparelho de Estado por autonomia e vantagens corporativas e entre os três poderes da República completam um quadro de grave crise político-institucional.

Em segundo lugar, deve-se levar em conta que a derrota eleitoral do bolsonarismo na disputa pela presidência da República não se repetiu na disputa pelas outras instâncias da esfera de representação política. Ao contrário, o bolsonarismo teve vitórias significativas nas eleições para o Congresso Nacional, para as assembléias estaduais e governos de estado, constituindo-se como força política incontornável no jogo político, com importante presença política e institucional. Além dos setores abertamente identificados política e ideologicamente com a extrema-direita, que cresceu eleitoralmente ainda mais do que em 2018, o bolsonarismo ainda detém o apoio de setores do chamado “Centrão” que por razões fisiológicas oscilam entre o oposicionismo e o adesismo ao novo governo, a depender da pauta e da barganha política. Além disso, detém presença considerável ou mesmo majoritária em diversas instâncias do aparelho de Estado como as Forças Armadas, as polícias federais e estaduais, o poder Judiciário, o Itamaraty, etc; dirige ideologicamente aparelhos privados de hegemonia com grande inserção social como redes sociais, entidades corporativas, igrejas e setores da grande mídia, e possui uma base de massas que se manteve mobilizada e ativa, não só na campanha eleitoral. Isto significa que a perspectiva de radicalização da transição autoritária em direção a um regime fascista conta com apoio popular, controla importantes instrumentos de poder e coloca-se como uma alternativa à democracia restrita para setores do bloco no poder, particularmente no caso de agravamento da crise de hegemonia. Em relação à atual democracia restrita, e como variante da autocracia burguesa, este regime fascista implicaria na eliminação dos elementos democrático-representativos da ordem política, particularmente o espaço político e social dos trabalhadores e organizações de esquerda, o que implicaria na dispensa dos mecanismos transformistas exercidos pela autocracia burguesa sobre o movimento dos trabalhadores vinculados ao processo político-eleitoral, na generalização da violência política como mecanismo de controle do conflito social, na fascistização integral do aparelho de Estado e na militarização do conjunto da vida social. Para setores do bloco no poder isto significa também que o golpe fascista coloca-se como uma alternativa diante da necessidade de acirramento da superexploração do trabalho e de continuidade da pilhagem sobre bens e recursos públicos. Portanto, a disputa do segundo turno e o processo político-social desde então estão demarcados pela disjuntiva democracia restrita ou fascismo. A análise deste processo pode ser desdobrada em três momentos, que descreveremos a seguir.

1- De 02 a 30 de outubro. Entre o 1º e o 2º turnos.

A derrota no 1º turno das eleições presidenciais levou o governo Bolsonaro e seus aliados a desencadearem uma brutal ofensiva com o objetivo de virar o voto popular e ganhar as eleições no 2º turno. Baseado nas vantagens garantidas pelo “estado de emergência” e pelo “orçamento secreto”, que lhe permitiram concorrer em condições especialíssimas, não concedidas ao candidato adversário, Bolsonaro usou e abusou do assistencialismo, da manipulação do preço dos combustíveis e do aumento de gastos para comprar votos. Não bastasse isto, desencadeou ofensiva golpista pressionando o TSE por meio do Ministério da Defesa e da ameaça de questionamento do processo eleitoral; mobilizou a Polícia Rodoviária Federal para impedir o voto de eleitores nas regiões de tendência lulista; contou ainda com o apoio de empresários, prefeitos e vereadores para “cabrestar” votos e com a mobilização de sua base social, que buscou ocupar as ruas e espaços públicos pela intimidação e a violência. Apesar de não evitar a derrota, esta ofensiva permitiu a Bolsonaro um avanço eleitoral expressivo, conquistando o dobro de novos votos no segundo turno em relação o seu adversário, o que quase garantiu sua vitória, dando margem para que não reconhecesse e contestasse o resultado das eleições junto à sua base.

Enquanto Bolsonaro jogou suas fichas na mobilização de sua base e na instabilidade institucional Lula fez o movimento contrário, apostando na via institucional para ampliar apoios e declarando confiança na integridade republicana e democrática das ditas “instituições”. Buscando atrair o apoio da chamada “3ª via”, particularmente os partidos e setores do bloco no poder articulados em torno da candidatura de Simone Tebet, Lula atenuou drasticamente as críticas ao neoliberalismo extremado, à algumas (contra) reformas dos governos Bolsonaro e Temer e ao próprio golpe de 2016, concentrando o ataque no golpismo fascista de seu adversário e colocando-se como candidato da unidade democrática, da reconstrução nacional e da “responsabilidade fiscal”. Apesar do esforço pela ampliação ainda maior da frente ampla em direção à setores que protagonizaram o golpe de 2016 e apoiaram a política econômica de Guedes, o que lhe garantiu o apoio de parte da grande mídia e de figuras como FHC, Malan, Pérsio Arida e Armínio Fraga, sua votação em relação ao 1º turno não cresceu como se imaginava, permitindo apenas uma vitória apertada no 2º turno. Na verdade, a postura das frações burguesas não-bolsonaristas foi de relativo distanciamento diante de sua candidatura, ao mesmo tempo em que exigiam compromisso com a “responsabilidade fiscal” e a manutenção da política econômica neoliberal e reagiam histericamente à qualquer declaração em contrário do candidato e principais assessores. Enquanto isto, todos os partidos de esquerda, mesmo os que lançaram candidatura própria no 1º turno, as principais centrais sindicais e movimentos sociais aderiram em massa à candidatura Lula, contribuindo decisivamente para a mobilização nas ruas e nas redes sociais.

Esta opção da candidatura Lula pelo institucionalismo e pela defesa do “Estado democrático de direito” quase permitiu que Bolsonaro conquistasse a virada, não fosse a mobilização efetuada por milhares de comitês “Lula Presidente” e outras iniciativas de base. Organizadas de maneira voluntária e independente do comando petista por partidos da esquerda socialista, sindicatos, movimentos sociais, militantes petistas inconformados e ainda eleitores antibolsonaristas articulados espontaneamente, essas experiências de mobilização permitiram a troca de informações e material de propaganda, a disputa das ruas e das redes sociais com o bolsonarismo, dando novo ânimo à campanha. Apesar desse esforço de mobilização de base e da perspectiva de que os comitês “Lula Presidente” continuassem mobilizados como instrumentos de combate ao golpismo fascista e de pressão à esquerda sobre o novo governo, após a vitória prevaleceu a via institucional das negociações “pelo alto”, levando à desmobilização dessas iniciativas.    

2- Do 2º turno ao Oito de Janeiro.

Ao contrário da expectativa de muitos, após a derrota Bolsonaro não só não reconheceu a derrota, como continuou lançando dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral com vistas à manter sua base mobilizada para uma iniciativa golpista. Além de bloqueios nas estradas, refinarias de petróleo e atentados à torres de transmissão de energia, visando colapsar os sistemas de transporte, abastecimento e energia, milhares de militantes passaram a acampar em frente aos quartéis e instalações militares pelo país afora reivindicando um golpe militar e a anulação das eleições. Protegidos pelas Forças Armadas, que não apenas permitiam sua existência, como lhes davam proteção diante das ordens de desmobilização emanadas do judiciário, ao longo das semanas esses acampamentos passaram a galvanizar o golpismo bolsonarista, atraindo militantes do país inteiro e tornando-se base de organização dos atos terroristas de 12/12 e 24/12 e do “quebra-quebra” de 08/01, todos em Brasília. Conforme informações trazidas à luz posteriormente, havia planos para a decretação de “estado de defesa” no TSE, que ficaria sob intervenção do Ministério da Defesa, com o fito de anular as eleições e manter Bolsonaro no poder. Revelações posteriores indicam que o plano também previa a arapongagem do presidente do TSE por agentes do GSI, com vistas à captura de áudio que sugerisse manipulação do processo eleitoral em favor da candidatura Lula. Apesar do caráter quixotesco, mesmo considerando toda violência e vandalismo, o ataque às sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no dia 08 de janeiro revela a intenção de viabilizar a dita “intervenção militar” enfraquecendo o novo governo politicamente e submetendo-o à uma tutela militar de consequências imprevisíveis em nome da “garantia da lei e da ordem”. O papel dos militares como instituição (e do governo do DF) nesta iniciativa golpista, não só do governo Bolsonaro, ainda está para ser completamente apurado, mas pelo que se sabe até agora seu papel protagônico na organização e mobilização golpista é evidente. Além do questionamento do processo eleitoral, da recusa em desmontar os acampamentos pelo país afora e da própria inação diante dos atos golpistas, a estrutura dos acampamentos e diversas ações dos dias 12/12, 24/12 e 08/01 indicam a presença de operadores com conhecimento técnico e experiência de ação próprios de quem recebeu treinamento militar. Ou seja, além dos militares e policiais flagrados participando no ato do dia 08, a presença de agentes militares na organização e na condução dessas ações é evidente. Isto talvez explique a obstrução do comandante do Exército à tentativa de prisão dos acampados pela polícia de Brasília naquela mesma noite do dia 08, permitindo a fuga de seus “quadros” e impedindo a confirmação de seu envolvimento institucional. De todo modo, independente do futuro político de Bolsonaro, estes episódios reforçam a hipótese de que o “partido militar” é a força politicamente dirigente do bolsonarismo e que intensificaram esse papel após a derrota na eleição presidencial. Este papel dos militares na direção política do bolsonarismo não esteve muito claro na campanha eleitoral de 2018 e nos primeiros anos do governo Bolsonaro, e sempre foi foco de polêmica entre os analistas, mas a partir do momento em que a derrota eleitoral e a volta de Lula ao poder tornaram-se possibilidades concretas, particularmente a partir de 2021, este papel passou a se evidenciar cada dia mais. Agora que perdeu o controle do governo federal esta direção torna-se crucial para a sobrevivência do bolsonarismo como força politicamente organizada, tanto pela posição institucional exercida pelos militares, quanto por sua perspectiva político-ideológica de longo prazo. Apesar da presença de correntes militares que oscilam politicamente entre o fascismo puro e simples, o cesarismo militar e a defesa da tutela militar sobre a ordem política e social, em linhas gerais esta perspectiva político-ideológica pode ser conferida no “Projeto de Nação – O Brasil em 2035” elaborado por think thanks militares no ano passado e que parece orientar a ação político-ideológica do “partido militar” [1].

Enquanto isto Lula e o PT mantiveram a política de ampliação da frente ampla que pautou sua eleição, tratando de viabilizar a sustentação política do novo governo e isolar politicamente o bolsonarismo. Em nome disto estabeleceu relações amistosas e de cooperação com os poderes Legislativo e Judiciário, particularmente para negociar a aprovação de medidas emergenciais, e trouxe para a equipe de transição e depois para o governo lideranças e intelectuais não vinculados às forças partidárias que o apoiaram, mas representativos de movimentos e lutas em torno das questões da saúde, esportes, de gênero, indígena, racial e dos direitos humanos. Apesar da maioria dos ministérios mais importantes ficarem nas mãos de PT, PSB e dos aliados de primeira hora no MDB (Fazenda, Casa Civil, Relações Institucionais, Educação, Trabalho, Desenvolvimento Social, Justiça, Indústria e Comércio, Transportes, Cidades), outros ficaram nas mãos de aliados de segundo turno no MDB, PSD e PDT (Planejamento, Minas e Energia,  Agricultura e Pecuária, Previdência) enquanto outros ainda foram entregues a aliados do bolsonarismo como o União Brasil (Comunicações, Integração e Desenvolvimento Regional).

 No entanto, na formação da equipe ministerial o caso mais gritante na tentativa de ampliação da frente ampla em direção ao bolsonarismo é o Ministério da Defesa. Com base na ideia de que a questão militar poderia ser pacificada sem uma intervenção saneadora em seus quadros, mas com a simples reafirmação de seu pretenso profissionalismo por conta da mudança de governo e da volta à “normalidade democrática” o novo governo nomeou um conservador para o Ministério da Defesa e aceitou a indicação dos novos comandantes por seus respectivos Altos Comandos. Apesar de ter sido ministro das Relações Institucionais no segundo governo Lula (2007-2009), o novo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, tem uma longa trajetória política como deputado federal e gestor público, sempre em partidos de direita, desde o PDS, ao qual se filiou em 1980, passando por PFL, PSDB e atualmente no PTB, partido que apoiou Bolsonaro nos dois turnos. Esta trajetória tornou-o ideal para conduzir a sucessão nos comandos das três armas em conformidade com os interesses da caserna. Ao invés de promover a ascensão dos generais mais novos, o que obrigaria toda a velha guarda bolsonarista na ativa a ir para a reserva, provocaria uma quebra na cadeia hierárquica e demonstraria as pretensões de autonomia do novo governo diante dos militares, optou-se por acatar a decisão de indicar os sucessores mais antigos entre os generais. Esta tática de pacificação não deu certo antes da posse, nem depois, com os comandantes militares que saíam exigindo a troca de comando antes da troca de governo para não ter que prestar continência ao novo comandante em chefe das forças Armadas, Lula, e com os novos comandantes se recusando a desmontar os famigerados acampamentos em frente aos quartéis, mesmo depois de decisões judiciais determinarem o contrário. Deu no que deu!

A aproximação com setores do bolsonarismo não se limitou à formação do ministério nem aos órgãos de segurança do governo. Além da manutenção da maior parte do pessoal do GSI e das polícias federais mesmo depois da posse, dando a entender que só se fariam mudanças na cúpula, o novo governo se comprometeu com a reeleição de Artur Lira (PP) à presidência da Câmara. Este se notabilizou nos últimos dois anos por atuar como o principal operador da escalada autoritária e neoliberal extremada do governo Bolsonaro no Parlamento, atropelando a Constituição inúmeras vezes e jogando todas as fichas na sua reeleição. O fato de Artur Lira ocupar hoje a posição de maior liderança politica do “Centrão” por conta de sua condição de presidente da Câmara e de representar a ala mais interessada em compor com o novo governo em nome de seus interesses fisiológicos, isto não o impede de manter uma posição oscilante e de buscar resguardar sua autonomia a todo custo. Na própria negociação da chamada “PEC da transição” a postura desleal e oportunista do presidente da Câmara mostrou-se de maneira clara, evidenciando que dificultará a vida do novo governo sempre que possível. No momento Lira organiza a criação de uma federação entre PP, PL e União Brasil para aumentar seu poder de barganha junto ao governo e funcionar como o “fiel da balança” no Congresso (205 deputados federais e 32 senadores). Portanto, o apoio do novo governo à sua reeleição é outra aposta arriscada de “pacificação”, baseada na tentativa de isolar o bolsonarismo atraindo o apoio de seus aliados. O apoio à reeleição de Rodrigo Pacheco (PSD) à presidência do Senado já é parte da estratégia de ampliação da frente ampla com setores do centro-direita, apesar de também conter riscos. Isto porque, apesar do maior distanciamento em relação ao governo anterior e da posição contrária a determinadas pautas bolsonaristas, em seu primeiro mandato na presidência do Senado Pacheco encaminhou normalmente a maioria dos projetos enviados pelo governo Bolsonaro.

 Com base no apoio deste amplíssimo arco de forças o governo Lula assumiu apresentando-se como o governo da união e reconstrução nacional e da restauração democrática, programa da frente ampla formada em torno de sua candidatura e com o qual se elegeu. No plano político este programa se desdobra no respeito ao jogo democrático-eleitoral, na valorização da independência e equilíbrio entre os poderes, na reconstrução do aparelho de Estado, com a remontagem de diversos órgãos de fiscalização e regulação, na “despartidarização” das Forças Armadas e das policias. No plano social o novo governo se compromete com a retomada de políticas sociais compensatórias e de políticas identitárias e de direitos humanos abandonadas pelos governos anteriores, com o aumento de gastos sociais e uma reforma tributária que isente trabalhadores de baixa renda do imposto de renda e passe a cobrar de quem detém riqueza e patrimônio. No plano econômico o novo governo se compromete com a retomada do crescimento e do emprego, com o aumento dos investimentos públicos e o reforço das empresas estatais, mas sem o abandono da “responsabilidade fiscal”, ou seja, o regime de superávit primário e de metas de inflação. Defende ainda a recuperação do indutivismo estatal junto ao setor privado por meio das empresas estatais e dos bancos públicos, particularmente o BNDES, com especial atenção para a chamada “indústria verde”. Nesta política industrial o reforço das estatais implica não apenas no resgate de seu papel econômico dinamizador, mas na retomada do controle público sobre sua administração, hoje entregue ao capital privado nacional e internacional. No plano da politica externa o novo governo procura privilegiar as relações com a América Latina, propondo retomar o MercoSul como mercado cativo para a expansão externa e plataforma de inserção econômica do país na economia mundial e de negociação com outros blocos econômicos. Também propõe uma posição mais assertiva no cenário internacional, porém guardando autonomia em relação à disputa entre as potências, mesmo em relação aos parceiros dos BRICS como Rússia e China. Caminho difícil e eivado de contradições, como evidenciado no apoio à resolução da ONU que condena a Rússia pela guerra com a Ucrânia e exige a retirada imediata de suas tropas do território ucraniano, desconsiderando a responsabilidade da OTAN na eclosão e prolongamento do conflito. Apesar de surpreendente, particularmente frente à recusa em enviar armas à Ucrânia mesmo diante da pressão europeia e estadunidense, esta posição revela o ziguezague diplomático que o governo se dispõe a seguir. O fato de que esta posição enfraquece as pretensões da diplomacia brasileira de assumir um papel mediador no conflito indica as dificuldades de inserção externa para um país como o Brasil, que regrediu econômica e tecnologicamente nos últimos anos, num cenário de crescente incerteza e polarização.     

A apresentação deste programa não só garantiu a vitória eleitoral, como gerou grande esperança e mesmo euforia em amplos setores sociais da população, como demonstram a festa da posse e as manifestações de contentamento pelo país afora. O que não impediu que o bolsonarismo jogasse mais uma vez a carta do golpe fascista.

3- Após o Oito de janeiro de 2023.

O ato golpista do dia Oito de Janeiro gerou indignação na maioria da população e permitiu a criação de uma espécie de consenso democrático em torno de Lula, exigindo apuração e criminalização dos responsáveis e mandantes, reforçando ainda mais a imagem de AntiBolsonaro construída ao longo dos últimos anos e a própria politica de defesa das “instituições”e de aproximação com os outros poderes. Isto permitiu o isolamento político relativo do bolsonarismo, apesar de pesquisa realizada dias depois apurar que nada menos que 38% dos entrevistados concordavam com o ato golpista do dia 08 e em torno de 40% afirmavam que continuariam votando em Bolsonaro, demonstrando que sua base social continua relevante e seu apoio na opinião pública também.[2] Esses números também demonstram que o descrédito nas “instituições” se mantém grande, apesar de todo o discurso de que o “Estado democrático de direito” venceu e continua sólido, o que revela um postura subversiva que no momento é galvanizada pela extrema-direita, não pela esquerda. Ao contrário, o ato golpista teve o efeito de legitimar politicamente junto a trabalhadores, movimentos sociais e organizações de esquerda a mistificação burguesa em torno da democracia restrita vigorante no país, gerando notas, declarações e atos em defesa desta democracia, repondo a chantagem do “mal menor” em novas bases.

A ofensiva repressiva e judicial contra os participantes do ato começou no próprio dia 08, deu origem a centenas de prisões e indiciamentos e acelerou a exoneração dos bolsonaristas ainda empregados na administração federal, particularmente nos órgãos de segurança. A intervenção na segurança pública do Distrito Federal e o afastamento do governador permitiram a ação rápida pelo governo e o STF. No dia 09 realizaram-se pelo país afora dezenas de atos pela democracia, convocados por centrais sindicais, movimentos sociais e partidos de esquerda, retomando as mobilizações de massa em curso desde 2016, mas significativamente paralisadas durante campanha eleitoral. Sob a palavra de ordem “Sem Anistia” cobrou-se a apuração rigorosa dos atos golpistas e punição dos responsáveis, inclusive militares. Além do repúdio ao fascismo e da solidariedade política ao governo, os atos foram marcados pela defesa da “democracia”, porém sem crítica ao seu caráter restritivo e ao processo de transição autoritária que lhe deu origem. Isto evidencia a força do frenteamplismo entre trabalhadores, organizações de esquerda e movimentos sociais, dificultando a criação de uma alternativa à perspectiva política burguesa de legitimação da nova ordem política e social, como veremos.

Os atos do dia 08 também acarretaram a primeira crise militar do novo governo. A recusa do comandante do Exército em permitir que a polícia de Brasília efetuasse prisões no acampamento em frente ao quartel general do Exército no próprio dia 08 e a posterior resistência em barrar a nomeação de auxiliar direto de Bolsonaro para o comando do Batalhão de Ações de Comandos em Goiânia, estratégico para a segurança da capital federal, levou à sua demissão a mando de Lula. A reação do comandante do Exército revela não apenas sua fidelidade ao bolsonarismo e seu provável envolvimento nos atos golpistas do dia 08, mas a própria resistência do Alto Comando ao novo governo. De todo modo, a postura do governo e do Judiciário na apuração de responsabilidades nos atos tem poupado os comandantes militares e peixes graúdos do antigo governo, com exceção de Anderson Torres, e se concentrado nos militantes que foram presos ou identificados posteriormente participando dos atos e em financiadores de pequeno porte, evitando criminalizar setores bolsonaristas do grande capital e ocupantes de altos cargos no aparelho de Estado.

Esta postura acomodatícia se revelou também na indicação do novo comandante do Exército, general Paiva, comandante militar do Sudeste. Apesar de toda propaganda em torno de sua postura legalista e democrática, suas credenciais políticas indicam o contrário. Quando no comando da Academia Militar das Agulhas Negras, ainda em 2014, abriu as portas da instituição para que Bolsonaro fizesse campanha eleitoral em suas dependências, infringindo claramente as próprias normas militares. Quando na chefia de gabinete do general Villas Boas, então comandante do Exército, contribuiu na elaboração do famoso tuíte contra a soltura de Lula em 2018. Defensor da autonomia militar na definição das promoções e dos currículos das escolas militares, questões decisivas na composição do alto oficialato e na formação ideológica de seus quadros, postou-se negativamente diante da proposta petista de que o governo Dilma Roussef deveria interferir nestes temas. No próprio discurso em que afirma acatar o resultado das eleições por dever institucional, pronunciado pelo general perante seus subordinados no Comando Militar do Sudeste poucos dias antes de sua indicação e feito por “encomenda” para justificar sua escolha perante a opinião pública, não se furta em sugerir para a platéia militar seu desagrado com a vitória de Lula.[3] Há quem identifique no general Paiva um dos “legalistas” do Alto Comando do Exército que se postaram contra a tentativa de golpe de Bolsonaro ainda em dezembro, contribuindo para sua inviabilização. De todo modo, se não endossa o golpe fascista, suas posições indicam que nem por isso é contra o bolsonarismo ou não tem identidade com o projeto do “partido militar” e sua perspectiva autocrática e tutelar sobre ordem política e social. Portanto, mais do que a falta de alternativas ao bolsonarismo na alta cúpula das FA, a “solução” encontrada pelo governo Lula para a crise no Comando do Exército revela a permanência da equivocada política de “pacificação” diante dos militares, o que impede o combate à tutela militar e o próprio desmonte do núcleo dirigente do bolsonarismo.

Dando por “resolvida” a questão militar, o governo Lula tratou de iniciar efetivamente a nova gestão dando respostas especialmente no plano econômico, a outra questão candente da luta política no país no atual período da luta de classes. E neste plano as contradições com a “herança bolsonarista” e com o autocratismo burguês também emergiram com força. Diante da proposta de mudanças na âncora fiscal, com a substituição do teto de gastos por outra regra, reindustrizalização, aumento dos investimentos públicos e dos reclamos de Lula contra as abusivas taxas de juros administradas pelo Banco Central o “mercado” e a grande mídia reagiram histericamente, como sempre. Além de mobilizar os tradicionais funcionários do capital financeiro instalados na mídia e na academia para alarmar a malta para os perigos de descontrole nas contas públicas, escalada inflacionária e outros fantasmas neoliberais e propugnar os mantras de sempre (corte de gastos, privatizações, independência do Banco Central, etc.), o mesmo Banco Central manteve a taxa selic nas alturas, 13,75%, apesar das projeções de queda na inflação para 2023, numa clara “queda de braço” com as pretensões industrializantes e anticíclicas da política econômica do governo. Mais do que isto, em relação à inflação esta é a maior taxa de juros do mundo, o que equivale a alimentar o rentismo, desestimular investimentos, encarecer o crédito, ampliar o endividamento das empresas e famílias e aumentar a dívida pública sem que o governo gaste um centavo a mais. Para se ter uma ideia, entre agosto de 2021 e julho de 2022, quando a selic aumentou de 5,25% para 13,25%, o pagamento de juros com a dívida pública cresceu de 323,5 para nada menos do que 586 bilhões de reais, em torno de 49 bilhões ao mês! Isto equivale à quase três vezes e meia o que foi liberado para gastos com o “Bolsa Família” e outros programas sociais para o ano de 2023 pela chamada “PEC da Transição”, aprovada pelo Congresso sob grande alarde do “mercado” e seus funcionários na grande mídia. De lá pra cá, com a selic em 13,75% desde setembro de 2022, o pagamento com juros deve ter crescido ainda mais[4]. Isto significa que o Banco Central é um das casamatas do bolsonarismo contra o novo governo, pois a inviabilização de sua política econômica implica na sua derrota política no médio prazo e no acirramento da crise política.

Na questão da retomada dos investimentos públicos e do controle sobre as estatais a batalha também será inglória. A nomeação de Aloizio Mercadante, economista do PT auto-proclamado “desenvolvimentista”, para a presidência do BNDES causou chiadeira generalizada na grande mídia e no dito “mercado” com base no argumento estapafúrdio de que a direção do órgão não deve ser “politizada”. Para a presidência da Petrobrás, estatal que ocupa um papel estratégico na política econômica do governo, foi indicado senador do PT que há muito apresenta posições favoráveis à manutenção, mesmo que parcial, do regime de preços dos combustíveis baseado na cotação internacional, regime criado no governo Temer para favorecer os acionistas privados e que tem sido o maior responsável pela alta continuada do preço dos combustíveis nos últimos nos. Para piorar, na indicação dos representantes do governo, acionista majoritário, para o conselho administrativo da estatal o golpe foi dado pelo próprio ministro das Minas e Energia, filiado ao PSD, que além de recusar nomes indicados pela presidência da República nomeou conselheiros vinculados aos interesses dos acionistas privados e à anterior administração bolsonarista, conforme denúncia da Federação Única dos Petroleiros (FUP).[5]  

Porém, as frações burguesas não dão sinais de que estão dispostas à mudanças muito grandes neste plano, particularmente no tocante ao aumento da renda salarial, à reconfiguração do papel do rentismo no processo de valorização do capital e do papel do Estado na economia. Mesmo entre os industriais, pretensamente os principais interessados na retomada de uma política indutivista de financiamento e aumento dos investimentos públicos, a postura diante do governo e de seu programa é oscilante, como evidencia a luta interna aberta na FIESP pelos setores bolsonaristas liderados por Paulo Skaff contra a presidência de Josué Alencar, próximo de Lula. Para além da disputa entre pequenos/médios x grandes capitais industriais pela direção da entidade, é possível vislumbrar também o grau de subordinação do capital produtivo ao rentismo e à dependência externa em termos econômicos e tecnológicos. 

4- Entre a democracia restrita e o fascismo.

Estas contradições parecem indicar que o governo Lula representa uma ruptura com a ordem política e socioeconômica urdida pelo bloco no poder a partir do golpe de 2016, porém a situação é mais complexa do que parece. Frente aos governos Temer e Bolsonaro, particularmente o último, o programa do governo Lula III é consideravelmente distinto, na medida em que busca restaurar a política de conciliação de classes em novas bases, reformulando a matriz econômica em favor da produção industrial e do desenvolvimento tecnológico, contemplando determinados interesses populares, adotando uma política externa mais assertiva e independente e reforçando seu compromisso democrático na política interna. No entanto, é forçoso dizer que essas mudanças se inserem nos marcos da atual ordem política, econômica e social, ou seja, nos marcos da democracia restrita e da radicalização neoliberal vigentes desde 2016, apesar de tensionarem seus limites. A efetivação da grande maioria dessas mudanças passa pela realização de políticas de governo, não por alterações institucionais que desmontem e revertam a institucionalidade política e econômica oriunda da transição autoritária desencadeada a partir do golpe de 2016.

Mesmo durante a campanha para o primeiro turno não houve qualquer compromisso por parte de Lula com a anulação das (contra)reformas trabalhista e da previdência, ou da lei da terceirização ou mesmo da lei eleitoral de 2017 que submete a maioria dos partidos de esquerda à cláusulas de barreira draconianas e favorece o auto-financiamento empresarial nas eleições. O que houve foi o anúncio de um compromisso genérico com o estabelecimento “de algum direito” para os trabalhadores “uberizados”, o que indica que se houver mudança está se dará de maneira fragmentada, atendendo categorias específicas de trabalhadores precarizados e sem qualquer perspectiva universal como na antiga CLT. O mesmo tem sido anunciado para a previdência, com a intenção de integrar os trabalhadores precarizados no sistema. Porém, não há nada relativo aos critérios de idade e contribuição e menos ainda aos valores de contribuições e benefícios. Quando o novo ministro da Previdência declarou a necessidade de rever a (contra)reforma aprovada pelo governo Bolsonaro foi devidamente desautorizado pelo ministro da Casa Civil. A proposta de mudanças no imposto de renda, com a isenção dos trabalhadores que ganham até cinco mil reais, é fruto de uma demanda antiga por correção da tabela do IR e mais do que necessária na disputa pela hegemonia junto os trabalhadores sob influência bolsonaristas, mas um medida limitada se não vier acompanhada da criação de um sistema tributário efetivamente progressivo, que taxe mis quem ganha mais. Quanto ao Novo Ensino Médio, (contra)reforma neoliberal aprovada no governo Temer que transforma as escolas públicas em “escolas de empreendedorismo e auto-ajuda”, entre outras mazelas, o governo simplesmente descarta sua anulação, comprometendo-se apenas a corrigir algumas “falhas”, apesar das pressões de educadores críticos e dos movimentos docente e estudantil para sua revogação.[6] Posição nada surpreendente, pois além do ministro da Educação e da secretária geral do ministério terem se notabilizado por adotar uma postura privatizante para a educação pública no governo do Ceará, o ministério ainda é dominado por representantes das fundações privadas que inspiraram a reforma do Ensino Médio, como a entidade “Todos pela Educação”.

O compromisso com o fim do teto de gastos, que tem levado o dito “mercado” à histeria, passa pela criação de outro modelo de “âncora fiscal”, não pelo fim da política de superávit primário e do verdadeiro garrote que o capital financeiro impõe ao tesouro por meio da dívida pública. Neste ponto é importante frisar que no programa do governo a ampliação de gastos sociais, particularmente com políticas sociais compensatórias, não se choca com a manutenção da âncora fiscal. Nas palavras do ministro da Fazenda e do próprio presidente é possível conciliar “responsabilidade social” com “responsabilidade fiscal”. A retomada do controle público sobre a administração das estatais passa pelo aumento da participação acionária do governo e pelo direcionamento de suas atividades no sentido da ampliação dos investimentos e do reforço de seu papel indutivo na economia, mas não pela sua reestatização. Mesmo no caso da Eletrobrás, cujo processo de privatização foi eivado de irregularidades e é contestado até mesmo por setores do grande capital e da grande mídia, o governo fala em revisão, particularmente das cláusulas que dificultam o aumento da sua participação acionária, mas não em anulação. Por fim, no tocante às políticas cambial e de juros e ao regime de metas de inflação, que juntamente com a política de superávit primário formam o tripé da política econômica neoliberal, o governo tem seu leque de ações limitado por conta da independência do Banco Central, (contra)reforma aprovada no governo Bolsonaro que entrega parte fundamental da política econômica de qualquer governo diretamente nas mãos do capital financeiro. O fato de que o BC é atualmente presidido por um bolsonarista vinculado organicamente aos interesses do capital financeiro, e que ainda tem mais dois anos de mandato, torna a situação ainda mais complexa. Isto tem levado Lula à demonstrações públicas de insatisfação com as elevadíssimas taxas de juros. No entanto, apesar do desconforto e dos apelos ao “bom senso” tanto o ministro da Fazenda, quanto o ministro das Relações Institucionais declaram em alto e bom som não ser intenção do governo anular a independência do Banco Central, o que não foi suficiente para arrefecer a ofensiva midiática contra as pretensões de “interferência” do governo.

Para além da retomada de políticas sociais compensatórias, de direitos humanos e identitárias, que também exigem a recomposição de órgãos do Estado e do governo desmantelados nos últimos anos, a perspectiva de reconstrução do aparelho de Estado implica em recompor os órgãos de fiscalização e normatização que regulam as relações entre os capitais e o Estado e destes entre si. Se o desmonte dos últimos anos favoreceu a ascensão de determinadas frações do capital na hierarquia dos capitais, particularmente as intermediárias, por outro lado não deixaram de gerar atritos e dissensões interburguesas, como indicam os reclamos contra o avanço do desmatamento e do garimpo ilegais e agora o escândalo das Lojas Americanas. Portanto, apesar de aparentemente estar na contramão da perspectiva neoliberal mais “anárquica”, à moda Guedes, a recomposição desses órgãos é uma necessidade básica para a reprodução do capital em geral, o que evidencia o tamanho da crise de hegemonia que favoreceu o seu desmonte.

Ora, por mais que a eleição de Lula tenha significado a derrota da alternativa fascista e criado a possibilidade de legitimação e estabilização da democracia restrita e da ofensiva neoliberal vigente a partir de 2016, atendendo a perspectiva política das frações não-bolsonaristas do bloco no poder, a profundidade da crise social e a simbologia construída em torno do seu nome, reafirmada pela investidura do voto popular, obrigam o governo Lula III a testar os limites da ordem política e socioeconômica vigente. Isto significa que para entregar minimamente o que promete, Lula terá que enfrentar a tutela militar e a tutela do “mercado” que hoje se impõem ao seu governo. Ou seja, enfrentar a resistência do conjunto do bloco no poder em restaurar plenamente o transformismo sobre os trabalhadores e seu movimento como principal instrumento de controle do conflito social e político, em desfavor da violência policial-política e da criminalização das lutas sociais. Também enfrentar a resistência do capital em calibrar o rentismo “hard”, a acumulação primitiva e a intensificação da superexploração do trabalho pela mais valia absoluta com a concessão limitada de direitos sociais e trabalhistas, a melhoria da renda dos trabalhadores, a redução efetiva dos juros e uma reindustrialização “seletiva” que aumente o investimento produtivo, favoreça o avanço tecnológico e reinsira o capitalismo brasileiro como potência de segunda ordem numa economia mundial crescentemente protecionista e segmentada. É possível que os setores não-bolsonaristas do bloco no poder acabem vendo neste programa a oportunidade de reagir positivamente às mudanças geopolíticas e econômicas em curso acelerado no cenário mundial e encampem a perspectiva de conciliação de classes que ele carrega. Porém, explorando as possibilidades expansivas inscritas na própria ordem política e social vigente, ou seja, sem a abolição da democracia restrita em vigor e nem a reversão das (contra)reformas aprovadas desde 2016. O fracasso do governo Lula III nessa empreitada permite que a perspectiva fascista se mantenha como uma alternativa real de poder, com força eleitoral e apelo popular. Ou seja, a disjuntiva democracia restrita ou fascismo, dominante na sociedade brasileira desde 2018, tende a se manter pelo próximo período.

Apesar da ameaça fascista aparentemente “simplificar” o leque de opções disponíveis, aos trabalhadores e suas organizações políticas e sociais nenhuma dessas alternativas interessa, cabendo lutar tanto contra o bolsonarismo, quanto contra a ordem sócio-política criada pelo golpe de 2016 e requentada pelo lulismo! Também não se trata de lutar pela restauração da democracia de cooptação vigente até 2016, variante light da autocracia burguesa historicamente instituída no país. A dita “reconstrução” do país deve ir muito além das alternativas autocráticas postas em cena. No mínimo, deve radicalizar a luta por direitos democráticos, sociais e trabalhistas, pela gestão popular dos bens, serviços e empresas públicas, pelo direito à auto-organização nos locais de trabalho, moradia, estudo, etc., e à livre organização e participação políticas, pelo controle político sobre a movimentação do capital e pelo combate ao empreendedorismo e à “uberização” através do coletivismo e da auto-gestão. A busca por uma perspectiva político-organizativa e programática própria é fundamental pra os trabalhadores e suas organizações, caso contrário a chantagem do “mal menor” continuará dirigindo seus pensamentos e ações.


[1]https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/projeto-de-nacao-o-brasil-em-2035

[2]https://www.poder360.com.br/brasil/53-sao-contra-e-38-acham-justificada-invasao-do-congresso-stf-e-planalto/

[3]https://comeananas.news/uma-coisa-burra-saiba-o-que-foi-para-o-novo-comandante-do-exercito-o-maior-erro-estrategico-do-pt/https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/video-comandante-do-sudeste-conclama-exercito-a-respeitar-eleicao

[4]https://www.brasildefato.com.br/2023/02/22/entenda-como-a-taxa-selic-afeta-sua-vida-e-toda-a-economia

[5]https://fup.org.br/fup-ve-com-preocupacao-indicacoes-do-mme-para-conselho-de-administracao-da-petrobras/

[6]https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/02/28/interna_politica,1462754/governo-lula-descarta-revogar-novo-ensino-medio-mas-quer-rever-falhas.shtml


*Este texto não passou pela revisão ortográfica do Contrapoder.

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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