O governo Bolsonaro tem na educação pública, particularmente a superior, um de seus principais alvos. Ele próprio é fruto de um reacionarismo obscurantista, anti-ciência, alimentado por teorias conspiratórias amparadas em fake news, ampla e sistematicamente difundidas, entre as quais, a ideologia de gênero, a doutrinação comunista, a suposta sexualização de crianças na escola, as universidades como local de balbúrdia. Representa o desprezo pela compreensão da complexidade do mundo, sintetizando tudo em formulações tão simples quanto equivocadas – como a de que o problema da segurança se resolve armando todo mundo (discurso que esconde um projeto de ampliação planejada e acelerada das milícias – que, aliás, se inserem nas universidades por meio de empresas terceirizadas de segurança).
O simplismo falseador não é apenas uma concepção de mundo, mas uma forma de atuação concreta que substitui o processo de formulação democrática e plural de políticas públicas. Isto fica explícito na atual conjuntura, quando, na maior crise de saúde pública dos últimos cem anos causada pela pandemia de COVID-19, o governo Bolsonaro mantém um militar despreparado no Ministério da Saúde e gasta o tempo precioso, que deveria estar voltado ao enfrentamento dos efeitos devastadores da pandemia, fazendo propaganda de um remédio sem eficácia comprovada, a Cloroquina. Esta orientação político-ideológica coloca as universidades públicas como grande inimigo, justamente por representar o exato oposto, isto é, um ambiente que valoriza a liberdade de pensamento e organização, pluralidade política e social e o avanço científico e humano. Some-se a isso o privatismo que se materializou no projeto “Future-se”, que significa a pá de cal no caráter público da educação, e os cortes de investimentos públicos (que já vêm desde 2015, a propósito).
Deste modo, temos diante de nossos olhos o cenário completo de uma guerra. Por isso, a principal frente de batalha desta guerra consiste na supressão da autonomia das universidades, na escolha heterônoma de seus dirigentes, nomeando interventores que se colocam indignamente como executores internos deste projeto anti-universidade, prepostos de um governo autocrático, bruto e reacionário. A maioria das nomeações do governo Bolsonaro nas instituições federais de ensino constituíram-se na forma de intervenções, mostrando de forma límpida o caráter desta disputa. Destaque-se que as comunidades universitárias estão infestadas por pessoas que compartilham deste projeto reacionário ou que estão à disposição para se aproveitar dele e se projetar de forma que não conseguiriam a partir de qualidades políticas ou acadêmicas próprias.
A Universidade Federal da Paraíba (UFPB) ilustra bem o problema. Em consulta prévia para nomeação da nova gestão da reitoria, no dia 26 de agosto de 2020, a comunidade acadêmica elegeu a chapa 2, composta pelas Profas. Terezinha Domiciano e Mônica Nóbrega pela maioria dos votos. Resultado que foi ratificado na votação dos conselhos superiores (Consuni, Consepe e Conselho Curador), que elaboraram a lista tríplice. No último dia 04 de novembro, contudo, Jair Bolsonaro nomeou o terceiro colocado, Valdiney Veloso Gouveia, que obteve cerca de 5% dos votos na consulta à comunidade acadêmica e nenhum voto nos conselhos superiores. Importante observar que Valdiney Gouveia impôs sua presença na lista tríplice por meio de ação judicial, uma vez que, como dissemos, o apoio a sua candidatura foi pífio entre professores, servidores técnicos e estudantes e foi nulo nas instâncias superiores da universidade.
A nomeação de Valdiney Gouveia como reitor da UFPB caracteriza uma grave intervenção no processo democrático da universidade, contraria fortemente a vontade expressa da maioria da comunidade acadêmica, contraria inteiramente a decisão dos Conselhos Superiores da Universidade e, por fim, contraria uma longa tradição de respeito à autonomia universitária no Brasil, que antes do governo Bolsonaro adotara como prática consolidada a nomeação do primeiro colocado na lista tríplice. Deste modo, esta intervenção nas universidades federais brasileiras, centros de produção de conhecimento e desenvolvimento científico, que somente podem existir sem cerceamentos políticos e ideológicos, pretende reproduzir a nível local o sufocamento da pluralidade democrática, o silenciamento das vozes críticas e a reprodução do apadrinhamento político, com indicações completamente alheias a critérios democráticos, como vem ocorrendo em nível federal. Até este momento já são 16 instituições federais de ensino sob intervenção, constituindo um cenário gravíssimo de ameaça a autonomia universitária e comprometimento da produção científica.
No mesmo dia em que foi publicado o decreto de nomeação do interventor houve um grande ato UFPB, e um grupo de estudantes ocupou a entrada da reitoria, acorrentando-se do lado de fora. O ato foi organizado por um comitê, formado meses antes, de articulação e mobilização da comunidade universitária de forma preventiva contra a intervenção. Este comitê, que junta os três segmentos (docentes, servidores técnicos e discentes), coletivos e entidades, tem sido fundamental para articular a resistência. E a ocupação representa a linha de enfrentamento mais direto e visível que temos até o momento.
Quatro dias depois do início da ocupação, a Procuradoria da instituição ajuizou uma Ação de Reintegração de Posse (nº 0811275-71.2020.4.05.8200) buscando retirar os manifestantes da universidade. Esta ação judicial foi fundamentada em fatos inverídicos, pois afirmava que os estudantes estavam bloqueando as entradas do prédio da Reitoria e assim prejudicando o funcionamento das atividades administrativas. Conforme o texto da petição assinada pelo Procurador Carlos Mangueira, os manifestantes impediam “o ingresso e o livre trânsito de servidores, terceirizados, demais alunos e pessoas em geral, mediante ameaças e colocação de cadeados nos portões”. Mas nada disso era verdade. O prédio da Reitoria já se encontrava com a sua entrada principal trancada a cadeados, porque desde o início da pandemia da COVID-19 os funcionários estavam em trabalho remoto. Além disso, as outras entradas do prédio estavam totalmente livres, sem ter havido queixa alguma por parte de nenhum funcionário de ter sido ameaçado ou constrangido pelos manifestantes. Todos aqueles que estiveram pela universidade nos dias de protesto que se seguiram à intervenção, até mesmo a mídia local, puderam comprovar a entrada e saída da equipe do reitorado que se encerrava, incluindo a Reitora e o próprio Procurador.
Poucas horas depois desta ação judicial ter sido protocolada (dia 09/11), o juiz da 2a Vara da Justiça Federal decidiu acatar o pedido de liminar da Procuradoria, sem sequer ouvir os manifestantes, nem tampouco realizar uma visita ao local para comprovar os fatos. Uma comissão jurídica foi formada com advogadas e advogados apoiadores da ocupação, passando a se revezar em plantões na ocupação e colaborar com a Defensoria Pública da União (DPU), que oficialmente passou a fazer a defesa dos manifestantes. Foi protocolado um recurso bastante detalhado no dia 10/11 à noite, demonstrando que os manifestantes sequer estavam dentro da Reitoria (portanto, não havia “posse” a ser reintegrada), tampouco atrapalhavam em nada o funcionamento das atividades da UFPB, anexando várias fotos que comprovavam o livre trânsito de funcionários (até mesmo da ex-Reitora) sem ameaça nem constrangimento algum. No dia seguinte (11/11) ao recurso da DPU, já havia decisão judicial nos autos, ignorando os argumento e provas colocados e mais uma vez determinando a reintegração.
Este processo mostra o papel político perverso e autoritário que o sistema de justiça tem exercido no Brasil, e na UFPB isso tem sido uma marca não apenas na intervenção, embora a partir dela tenha se agravado, em muito com a participação ativamente persecutória do Procurador da instituição. O Poder Judiciário e o Procurador foram instrumentos da quebra da paridade, de garantida do nome de Valdiney na lista tríplice, independentemente da vontade da comunidade acadêmica, da coação de professores e servidores durante a pandemia, da criminalização de manifestações, como é o caso da ocupação, e se estende a outras manifestações, como a ameaça de corte de ponto contra docentes (em represália a uma Paralisação deflagrada em assembleia da categoria) e punição a estudantes que simplesmente registram sua posição política crítica em notas (como aconteceu com entidades estudantis da Biotecnologia da UFPB, que solicitaram em nota pública que um professor do centro não compusesse o pro-reitorado do interventor).
De outro lado, o campo jurídico também participa desta disputa de uma maneira mais abrangente e contraditória, como, por exemplo, nas duas ações de controle de constitucionalidade (ADI 6565 e ADPF 759) que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) discutindo se as intervenções nas reitorias juridicamente ferem o direito à autonomia universitária. Na primeira delas, o ministro relator Edson Fachin proferiu voto a favor da autonomia e contra as intervenções, no que foi acompanhado por outros 3 ministros (Celso de Mello, Carmen Lúcia e Marco Aurélio) até que o Gilmar Mendes fez com que a tramitação fosse suspensa, inscrevendo no processo as tensões deste importante conflito, em que se embatem forças sociais que, de um lado, buscam assegurar certo patamar democrático que parecia estável nas últimas décadas, e. de outro, forças neoconservadoras que assumiram a direção da vida política brasileira. A contradição entre discutir vagarosamente a garantia de um direito (nas ações de controle de constitucionalidade) e garantir rapidamente o ataque a este direito nos indica a necessidade de não depositar no campo jurídico as nossas maiores forças de resistência. Trata-se de uma arena importante, sem dúvida, mas incapaz, por si só, de assegurar a vitória nessa luta pela defesa da democracia universitária. Além do mais, enquanto o tempo do judiciário oscila entre a vagarosidade para assegurar o direito à autonomia e a corrida criminalizante no ataque à liberdade de manifestação, é também muito acelerado o tempo de destruição das universidades públicas pelo governo Bolsonaro.
A resistência, que tem um caráter imediato de luta contra um interventor e em defesa da universidade pública, também é parte importante da luta contra o governo Bolsonaro e a crise geral em que nos encontramos. Temos um desafio de ampliar esta luta para fora da universidade, envolver outros setores, dialogar com a classe trabalhadora de forma a construir pontes entre as lutas. Mas também temos um desafio interno: além dos reacionários, há amplos setores que se colocam no campo progressista ou democrático, mas não percebem a necessidade de um enfrentamento contundente, amplos segmentos que depositam toda a esperança em decisões judiciais e outros em negociatas de bastidores.
Precisamos recolocar na ordem do dia a urgência de transformações profundas, quebrar com a normalização e aceitação da barbárie, e reconstruir direções que mobilizem e construam processos de enfrentamento real e transformador, produtor de uma nova ordem, e não de acomodações sob uma ordem social decrépita e inaceitável. A luta na UFPB é parte deste processo maior. Os caminhos são difíceis, incertos. Mas a quem enxerga o que acontece não resta outra opção senão dedicar todas as energias hoje a este embate sobre o futuro.
Coletivo Representativo das e dos docentes em Luta da Universidade Federal da Paraíba (CORDEL-UFPB)