O fracasso da tentativa de golpe do dia 7 de setembro, a terceira desde 2019, abriu uma nova conjuntura política e uma correlação de forças ainda mais favorável àperspectiva alimentada pelo bloco no poder de legitimação eleitoral da democracia restrita e do neoliberalismo extremado. Enquanto a crise econômico-social se aprofunda, o “Fica Bolsonaro” se estabelece, este acumula força e volta a instabilizar o regime; a chamada “terceira via” derrete a olhos vistos e Lula avança em direção ao centro compondo com setores que protagonizaram o golpe de 2016 e pretendem manter sua pauta econômica e política, ao mesmo tempo em que impõe uma nova “chantagem do mal menor” aos trabalhadores e à esquerda socialista(ruim com Lula/Alckmin, pior com Bolsonaro!).
O ano começou com o agravamento da crise econômico-social, apesar da pequena redução do desempregopela via da subcontratação, com a economia estagnada, a inflação aumentando mês a mês e afetando principalmente os bens de consumo popular, a alta dos juros se acelerando e a renda salarial caindo.1 Para além dos problemas conjunturais ocasionados pela pandemia, pelos problemas ambientais e pelos efeitos deletérios na economia mundial acarretadospelas sanções econômicas contra a Rússia, tal situação se deve principalmente à aplicação sistemática do receituário neoliberal pelo governo, favorecendo o desemprego, a concentração de renda e o avanço da miséria. A pandemia se mantém ceifando centenas de vidas diariamente, ainda que num ritmo menor do que no final do ano, apesar da irresponsável e precipitada liberação do uso de máscara por governos estaduais e municipais, o que torna a emergência de uma nova onda de contaminações e mortes uma possibilidade real. A cada semana novas denúncias revelam que a corrupção é sistemática no governo Bolsonaro, perpassando diversas áreas da administração federal, enquanto se avolumam os indícios de envolvimento do clã presidencial em crimes de natureza variada.
No entanto, mesmo neste cenário dramático, pelo qual o governo federal tem a maior responsabilidade política, a candidatura de Bolsonaro aparece em segundo lugar em todas as pesquisas de intenção de voto, com tendência de crescimento e grande chance de ir ao segundo turno. A permanência de Bolsonaro na presidência foi uma enorme vitória política e, como esperado, permitiu-lhe ganhar tempo, estreitar a aliança com o Centrão e aprovar medidas assistencialistas, ao mesmo tempo em que continuou “passando a boiada” com novas privatizações e medidas neoliberais. Desde que recuou para a “guerra de posição” após a fracassada tentativa de golpe do dia 7 de setembro, Bolsonaro buscou consolidar sua base política e parlamentar reforçando os laços com o Centrão e avançar ainda mais no controle das instâncias burocráticas do aparelho de Estado. Além de aumentar a participação do Centrão nos cargos e na direção do governo, Bolsonaro conseguiu manter o ilegal “orçamento secreto”, com a leniência do STF, e assim destinar verbas milionárias para sua base no Congresso. Além disso, conseguiu driblar o ajuste fiscal com a manobra contábil que flexibilizou o “teto de gastos” e com a aprovação da emenda constitucional que permitiu o calote no pagamento dos precatórios, para com isso financiar medidas assistencialistas como o “Auxílio Brasil”, o vale-gás, a liberação do FGTS e outras medidas. No plano da burocracia não-eleita, além da recondução de Augusto Aras para a PGR e da nomeação de André Mendonça para o STF, avançam o controle governista sobre a Polícia Federal e a desenvoltura dos setores bolsonaristas do judiciário na perseguição aos adversários e na proteção dos aliados. Enquanto isto, a aprovação da plataforma neoliberal continuou a todo vapor, com a privatização da Eletrobrás, o ataque às terras indígenas, a manutenção da política de preços da Petrobrás mesmo com a escalada inflacionária, etc. O resultado deste fortalecimento se revela não só nas pesquisas de intenção de voto, mas também no aumento da base governista no Congresso após a “janela partidária”2, na criação de uma coligação eleitoral poderosa e enraizada nacionalmente com capacidade de eleger número considerável de governadores, senadores e deputados, no apoio explícito dos militares do governo e da ativa à reeleição de Bolsonaro e no próprio derretimento eleitoral da “terceira via”. Não à toa Bolsonaro voltou à “guerra de movimento” atacando os ministros do TSE e do STF, colocando o processo eleitoral em dúvida novamente, estimulando a violência política e o descumprimento de decisões judiciais, ameaçando com uma intervenção militar caso perca a eleição. Para além do claro propósito instabilizador, a verborragia fascista visa manter sua base armada (presente nas Forças Armadas, polícias, milícias, clubes de tiro, C.A.C’s, etc.) mobilizada para intimidar adversários e eleitores por meio da violência política e para mais uma tentativa golpista.
Há muito tempo não resta qualquer dúvida sobre o caráter do governo Bolsonaro, mesmo para os beócios. Depois de 660 mil mortos e 30 milhões de contaminados pela Covid-19, de todos os casos de corrupção efisiologia, crimes de responsabilidade e mesmo crimes comuns denunciados semanalmente pela imprensa e investigados por diversas instâncias, ainda assim ele é o preferido do empresariado e da classe média alta nas pesquisas de intenção de votoe continua mantendo sua base social mobilizada e atuante nas redes sociais e nas ruas. Já não resta qualquer lustro de boas intenções ou nobreza de propósitos que justifique o apoio a Bolsonaro a não ser os interesses fisiológicos de quem compõe sua base política e o interesse de classe de quem se beneficia com a precarização do trabalho, as oportunidades de negócio abertas com a desregulamentação neoliberal, a especulação financeira e a concentração de renda.Tornado impossível o discurso da “nova política”, da probidade administrativa e da eficiência econômica, contraditado pelas próprias práticas do governo, restou o ódio de classe contra os pobres, manifesto no apoio à violência policial e à criminalização das lutas sociais, na adesão militante ao negacionismo e aos valores conservadores mais obscurantistas como o sexismo e o racismo, nodesprezo pela democracia e no anticomunismo, síntese da demonização do PT, dos sindicatos e movimentos sociais, enfim, da esquerda em geral. Apesar da crescente perda de apoio após a eclosão das crises gêmeas e da exacerbação de seu caráter elitista, desigualitário e antipopular, o bolsonarismo continua tendo audiência em setores das classes trabalhadoras, influenciados por sua máquina de propaganda, pelo antipetismo e pelo fundamentalismo religioso.
No campo da centro-esquerda, Lula também trava sua “guerra de posição” buscando fortalecer sua candidatura ao constituir uma frente com setores golpistas do centro-direita em torno de seu nome. Na avaliação de Lula e do comando petista, a aliança com setores do PSDB tornou-se estratégica, tanto para diminuir resistências junto às frações burguesas e setores de classe média, quanto para esvaziar ainda mais a chamada “terceira via”. A coligação com o PSB e a composição da chapa com Alckmin, agora filiado a este partido, consumou o movimento de Lula em direção ao centro-direita e à tentativa de ampliar a confiança do bloco no poder em sua candidatura, optando por uma frente ampla que também incorpora o campo golpista. Além da coligação formal com o PSB, PC do B e PV, a candidatura Lula deve atrair o apoio de setores do PSD, do MDB, do PSDB, do PSOL e mesmo do PDT, numa grande articulação nacional capaz de criar palanques em todos os estados. Favorito nas pesquisas de intenção de voto, com chances de vitória no primeiro turno, Lula tem a preferência da maior parte dos trabalhadores, particularmente dos setores de renda mais baixa, das mulheres, dos pretos e dos jovens, ou seja, as principais vítimas das políticas do governo Bolsonaro e do ideário bolsonarista.
Ora, isto faz com que a polarização Lula versus Bolsonaro seja permeada de alto a baixo por um conteúdo marcadamente classista e coloque a questão econômico-social no centro do debate político-eleitoral. Enquanto Bolsonaro se posiciona no debate utilizando a caneta para criar os remendos assistencialistas que citamos acima e tentar outros, como o subsídio para os combustíveis, Lula intervém prometendo uma reedição de seu governo, como se as condições externas continuassem as mesmas, o golpe de 2016 não tivesse ocorrido e os instrumentos de ação econômica e social à disposição do Estado não tivessem sido desmantelados em sua maior parte. Nas poucas vezes em que se compromete a reverter medidas concretas criadas pela pauta econômica e política do golpe, como a política de preços da Petrobrás, a reforma trabalhista ou a privatização da Eletrobrás, evita dar detalhes e se limita a generalidades. Questões cruciais como a descriminalização política e legal das lutas sociais e organizações dos trabalhadores, a redefinição do papel institucional dos militares, a despolitização do poder judiciário, a desfascistização do aparelho de Estado, etc. não são tratadas, como se a democracia de cooptação da Nova República ainda estivesse em vigor, bastando restabelecer a normalidade institucional e a pacificação política para que tudo volte a funcionar. Esta posição revela mais do que uma simples debilidade programática, mostrando os próprios limites autoimpostos pela opção de aliar-se com setores do campo golpista e ganhara confiança de diversas frações do grande capital, reeditando a política de conciliação de classes dos governos petistas em condições muito pioradas. Historicamente, a aliança da esquerda com setores do centro-direita para constituir uma frente antifascista sempre se deu em torno de processos de redemocratização, não numa situação de consolidação de um processo de transição autoritária promovido por estes mesmos setores de quem se busca o apoio, como parece ser o caso. Ou seja, esta aliança com setores da direita golpista revela uma perspectiva de cooptação da vontade popular manifesta nas urnas por parte das classes dominantes em favor da legitimação e consolidação do golpe de 2016, do neoliberalismo e da democracia restrita em vigor desde então.
Este movimento transformista sob a mediação da candidatura Lula e de sua força eleitoral vem operando sobre o movimento dos trabalhadores ao reforçar a passividade diante do descalabro bolsonarista e sobre a esquerda socialista na forma de uma nova “chantagem do mal menor”. Com exceção da realização de alguns atos esporádicos, podemos dizer que desde o ato contra o golpe no próprio dia 7 de setembro o movimento dos trabalhadores bateu em retirada, abandonando as ruas e encerrando o ciclo de mobilizações iniciado em maio de 2021,responsável por forçar o governo a comprar vacinas e por garantir que a CPI da Covid-19 conseguisse revelar os podres da administração federal. Sobre a esquerda socialista imperou o tradicional comportamento hegemonista do lulo-petismo, favorecido pela cláusula de barreira e pela pretensão de que a simples perspectiva de derrota de Bolsonaro já seria suficiente para garantir a adesão “por osmose” à candidatura Lula, sem qualquer compromisso programático efetivo. Esta combinação entre o “deixa quieto” para as lutas sociais e a “chantagem do mal menor” para a esquerda socialista deve perdurar pelo resto do ano, para evitar qualquer estranhamento com os aliados golpistas e o bloco no poder e, mais ainda, para desmobilizar preventivamente orientações classistas junto aos movimentos sociais caso Lula ganhe e tome posse, numa versão de passivização piorada da ocorrida entre 2003 e 2016.
Neste cenário de polarização política e eleitoral, marcado pela crise econômico-social, a chamada “terceira via” derrete melancolicamente, sem discurso, sem unidade e sem intenções de voto. Formada por bolsonaristas arrependidos, que também patrocinaram o golpe de 2016, apoiaram Bolsonaro em 2018 e sua permanência na cadeira presidencial em 2021, a terceira via busca ocupar ao mesmo tempo o campo do antibolsonarismo e o do antipetismo, ambos claramente já ocupados por Lula e Bolsonaro, respectivamente, apelando para o discurso da moderação diante do pretenso radicalismo de ambos os lados. A tática de apoio ao “Fica Bolsonaro”, adotada pelos setores de centro-direita com vistas a este objetivo, perdeu força diante do movimento ao centro efetivado por Lula. Além disso, o mote do combate à corrupção, mobilizado contra ambos, foi claramente deslocado na conjuntura pela centralidade da questão econômico-social, pelas revelações da Vaza-Jato e pelo apoio desses setores ao neoliberalismo extremado de Guedes. Apesar do apoio da grande mídia não-bolsonarista e da expectativa positiva alimentada por setores do bloco no poder, nenhuma candidatura da terceira via conseguiu até o momento quebrar a polaridade Lula versus Bolsonaro e se colocar competitivamente na disputa. No momento, enquanto Dória (PSDB) e Tebet (MDB) enfrentam resistências consideráveis em seus próprios partidos, Rodrigo Pacheco (PSD), Alessandro Vieira (Cidadania) e Sérgio Moro (Podemos) desistiram da candidatura, revelando o deserto político da terceira via. Apesar da postura antigolpista e antibolsonarista, Ciro Gomes procura ocupar este espaço buscando alianças entre as forças de direita, o que também tem gerado resistências no PDT. Além de improvável, se acontecer, a coligação entre União Brasil (DEM/PSL), PSDB, MDB e Cidadania em torno de uma candidatura única dificilmente poderá romper a polarização já estabelecida, apesar de adquirir grande poder de barganha em caso de segundo turno.
Já a esquerda socialista (PSOL, PCB, PSTU, UP) padece, junto às amplas parcelas da vanguarda social, dos efeitos da nova “chantagem do mal menor” imposta pela candidatura Lula e de sua histórica dificuldade de ação unificada. Apesar da ação conjunta em todos os ciclos de mobilização desde a luta contra o golpe, ainda em 2016, constituindo uma frente de esquerda “prática”, os partidos e organizações da esquerda socialista demonstram não ter capacidade para resistir – no âmbito da vanguarda social – à pressão transformista exercida pela candidatura Lula, mesmo depois da aproximação com o centro-direita. Também apresentam grandes dificuldades em viabilizar uma candidatura unificada de seu próprio campo a partir de um programa de combate à ameaça fascista, à transição autoritária e ao neoliberalismo. A crise dos sindicatos, o refluxo dos movimentos e lutas sociais e a própria cláusula de barreira, por exemplo, estimulam o movimento de amplos setores do PSOL em direção ao centro, de um lado, e o insulamento autorreferente das outras forças da esquerda socialista, de outro. Sob risco de fragmentação, o PSOL ainda oscila entre a candidatura própria com Glauber Braga e o apoio à chapa Lula/Alckmin, apesar de a composição em federação partidária com a Rede favorecer enormemente a segunda opção. Além de significar uma guinada em direção ao centro do espectro político, esta opção cria enormes obstáculos políticos à coligação com os outros partidos desse campo de esquerda. Apesar de as conversas terem avançado nas últimas semanas, PSTU, PCB e UP já lançaram chapas próprias à presidência e para outros cargos majoritários em diversos estados, antecipando um processo que deveria ter sido precedido pelo debate político-programático.
De qualquer modo, espera-se que a esquerda socialista se coloque à altura do desafio político do momento, particularmente atuando pela retomada classista das lutas sociais e das mobilizações de massa, bem como pela recomposição das organizações dos trabalhadores numa perspectiva classista. A construção do Encontro Nacional da Classe Trabalhadora (ENCLAT), com vistas à formação de um programa reivindicativo classista, anticapitalista e anti-imperialista forjado a partir da autonomia organizativa e na independência de classe, é uma das iniciativas concernentes a este propósito. Esta é a principal tarefa do período, tanto para combater a agitação dos bandos fascistas de Bolsonaro e impedir um novo golpe, quanto para pressionar, em um possível governo Lula, o cumprimento da vontade popular, interrompendo a transição autoritária, redemocratizando o regime para além da democracia de cooptação da Nova República e revertendo as reformas neoliberais, as privatizações e o desmonte do Estado em curso. A evolução futura da situação internacional pode tornar imperativas para setores importantes das classes dominantes a reversão parcial de determinadas reformas neoliberais e do desmonte do Estado, a retomada de uma inserção mais soberana do país na economia mundial e mesmo a recomposição de certas cadeias produtivas industriais. Todavia, sem o protagonismo dos trabalhadores, eventual reversão de algumas reformas neoliberais e certa recomposição do Estado ocorrerão pela via da reiteração da autocracia burguesa, isto é, pela via da manutenção do atual regime de democracia restrita e sem que qualquer dos direitos sociais cassados nos últimos anos seja restaurado e minimamente ampliado.
Texto finalizado em 14 de abril de 2022