Estamos à venda

Em sua coluna na Folha de São Paulo da última semana, o grande Tostão pôs o dedo na ferida: “A invasão do Brasil não ocorre somente por técnicos estrangeiros, mas também por investidores, que querem comprar clubes falidos e/ou em péssima situação financeira”1. Técnicos estrangeiros não são novidade nem aqui, nem em outro canto qualquer onde se jogue futebol, mas há uma nova onda de importação de “Professores” que data ao menos desde Jesus e seu Flamengo multivitorioso em 2019-2020. E, de fato, a moda parece ser mesmo o “Professor” português. Motivos óbvios, mal entendemos os nossos vizinhos de América Latina (embora eles sejam em número igual ao de portugueses, 5).

A “escola portuguesa” já teve seu momento na Europa e começa a dar um novo tempero ao nosso futebol. Isso parece sempre ferir o brio de nacionalistas de chuteira, que pensam ainda que “somos o país do futebol! Onde já se viu técnico estrangeiro?” O fato é que em Portugal se estuda muito, embora nem sempre ser estudioso garanta resultado, e aqui o que importa é o resultado. E só ele. Estamos aos poucos abandonando essa forma “boleira” de ver o trabalho dos técnicos, cujo exemplo de primor é Renato Gaúcho, autor da célebre frase: “quem sabe, sabe! Quem não sabe vai estudar na Europa”.

Em entrevista recente, um dirigente do Corinthians parece ter se convertido aos que “não sabem” e confessou que antes era contra técnico estrangeiro, mas… conversou com eles! Não deu outra, agora só quer “Professor” com diploma2. É claro que não se trata de ter ou não o certificado, trata-se da evolução de um esporte que se tornou muito mais competitivo e complexo, além da necessidade de uma direção que vá além dos gritos à beira do gramado, de palestras motivacionais e de bravatas provocativas. Essa invasão é um fato: no próximo campeonato brasileiro que começa em 10 de abril, 20% dos técnicos (se nada mudar e se mudar deve ser para mais e não para menos) serão portugueses e 20% latino-americanos.

Mas há outra invasão muito mais arriscada em curso, a invasão dos “Investidores” à caça de clubes quebrados para fazer por estas terras render seu rico capital3. Como estamos uns 20 anos atrasados (agora também no futebol), veremos um fenômeno que se tornou comum na Europa: times com grande nome, devido a glórias do passado, quebrados e que se tornam um atrativo negócio para capitais ociosos em busca de valorização. Mas não são apenas os milionários excêntricos que compram clubes mundo afora. Até Estados (ou coisa que o valha) compram clubes de futebol (vide PSG). Com uma nova ordem internacional em curso, é caso de torcer para que o país que compra seu clube não arranje confusão com a OTAN, senão…

Mas a coisa não para por aí. Apresentados por Ronaldo4, “Investidores” querem criar e privatizar uma liga de clubes no Brasil5. A ideia de uma LIGA de clubes não é nova, data de ao menos 1986, quando o campeonato brasileiro colapsou e foi criada a LIGA DOS 13, de triste destino. Mas até então sempre foi um anseio (ou não) de clubes; agora a Liga passa a ser matéria de especulação financeira, XP à frente…

Quando vemos tudo ser vendido assim, como bananas, ficamos entre o saudosismo e a esperança. Mesmo porque a CBF é uma vergonha e não pode ser defendida, mas ela é a essência de nossa cartolagem, nela as Federações estaduais mandam mais que os Clubes, que são coniventes6. Por mais que estejam falidos moral e financeiramente, porém, nos Clubes à moda antiga o torcedor tinha alguma voz, mesmo que esta voz fosse representada pelos sempre presentes, mas nem sempre simpáticos, torcedores “organizados”. Porque o dirigente do clube era até então, invariavelmente, um torcedor. Agora não! Ele pode estar no Qatar, em Miami, em Moscou.

Com um dono, o clube passa a ter uma lógica que não tinha antes de sua mercantilização. Seu objetivo é, em primeiro lugar, o lucro; o futebol é um meio para atingir esse fim. É claro que a promessa de caminhões de dinheiro faz brilhar os olhos de muitos torcedores, indignados com a situação de tantos Clubes falidos, mas vamos nos acostumar a outra relação com o “Nosso” clube, que já não é mais nosso, é “Deles”. E mais… agora eles querem comprar o campeonato inteiro, a Liga, tudo! A ideia é fazer um campeonato à moda europeia, que desperte interesse de televisões de outros continentes, mesmo que isso signifique o sacrifício de nosso campeonato aqui.

Referências

  1. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tostao/2022/02/invasao-do-brasil-e-feita-por-tecnicos-e-investidores-estrangeiros.shtml
  2. https://www.gazetaesportiva.com/times/corinthians/presidente-do-corinthians-diz-que-mudou-de-opiniao-sobre-tecnicos-estrangeiros/
  3. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/pvc/2022/02/chance-de-mudanca-no-governo-e-lei-da-saf-atraem-olhares-internacionais.shtml
  4. O ex-atleta que comprou o Cruzeiro e que foi convidado por sua apaixonada torcida com o seguinte cântico de arquibancada “Ronaldo Gordão, vem dar explicação” já um clássico!
  5. https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2022/02/xp-quer-viabilizar-liga-de-clubes-e-ve-chance-de-torneio-competir-com-a-premier-league.shtml
  6. https://epoca.oglobo.globo.com/vida/esporte/noticia/2016/02/poder-das-federacoes-no-futebol-e-exacerbado-diz-mario-bittencourt.html

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia, lateral do Ponta Firme FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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