“O futebol não seria paixão do povo se o povo não se identificasse com um time, o seu time, com uma bandeira e uma camisa. Quem torce em futebol está ligado, irremediavelmente, ao seu time, para o bem e para o mal, para a felicidade ou para a desgraça” (Mário Filho).
Todo torcedor de futebol no Brasil deveria ler o clássico de Mário Filho: O negro no futebol brasileiro, obra que trata da “Gênese e formação do futebol de massas no Brasil” (p. 10). O livro do jornalista que dá nome ao estádio construído no bairro do Maracanã procura “fixar o processo, de uma certa forma penoso e longo, da democratização do futebol brasileiro” (p. 16). Para os torcedores do século XXI (essas crianças!) parece até inacreditável que o futebol no Brasil já foi coisa exclusiva de brancos e que os clubes de futebol eram clubes fechados “para ingleses e filhos de ingleses”, que as regatas e as corridas de cavalo atraíssem muito, mas muito mais torcedores do que o então “esporte bretão”. É difícil acreditar que o segundo movimento do futebol entre nós centralizou a posição do “acadêmico e candidato a bacharel” em substituição dos profissionais liberais (na maioria estrangeiros) pelo simples fato de que na estrutura amadorística de então, os estudantes podiam contar com maior tempo livre para a prática e para o treino. Mas há coisas que, absolutamente, estão em um quadro atualíssimo, como a ação das Entidades que organizam o futebol, como a atual CBF, e mesmo a alcunha do “Cartola” para se referir ao mal maior do futebol nacional.
Para os que hoje carregam consigo a dor e a vergonha de amar um esporte “organizado” por FIFA’s e CBF’s pode parecer um estranho alívio conhecer a história da AMEA e da CDB, entidades de cartolas que ocuparam seu tempo “limitando-se a levantar barreiras sociais, proibindo que trabalhadores braçais, empregados subalternos, contínuos, garçons, barbeiros, praças da pré e por aí afora jogassem futebol em clubes filiados” (p. 22). A AMEA, entidade do estado da Guanabara e antepassada da FERJ, nos tempos de levante fascista no além-mar, chegou a se tornar a entidade da “renascença do futebol branco”, tempos nos quais essas entidades juntas procuraram lançar campanhas pela “arianização do futebol, afastando dos times jogadores pretos e mulatos, então numerosos nos clubes do subúrbio” (p.18).
Difícil acreditar que o milionário negócio das mídias esportivas seja coisa, digamos assim, “que data de ontem”, e que “o futebol só interessou às folhas depois de se tornar uma paixão do povo. Enquanto não encheu os campos, não dividiu a cidade em grupos, em verdadeiros clans, o futebol quase não existia para os jornais” (p. 20). E não é demais lembrar que a reação institucional que fez com que o futebol alcançasse às massas teve início com Vitória do Vasco em 1923 e seguida pelo título de 1926 do São Cristovam e do Bangu em 1933. Todos eles clubes suburbanos, que abriram as portas para atletas negos, mulatos e de origem humilde. Isso para ficar apenas no quadro traçado por Mário Filho, houve movimento semelhante em São Paulo e demais cidades que assistiam ao fenômeno de transformação de um simples esporte de “cavalheiros” em uma “instituição” responsável pela sublimação das “energias psíquicas e impulsos irracionais do homem brasileiro” (p.1 4). E para esse processo de transformação foi fundamental a existência do clube(1). Primeiro os de estrangeiros da elite, depois os populares, mas sempre o clube, dos sócios ou dos fãs, como então se dizia, para todos o futebol nasceu do “clube de coração”, mesmo muito antes do chamado futebol moderno.
O fato é que o futebol se popularizou em meio à “modernização conservadora” do Brasil, em um processo coincidente com a generalização das sociedades de massas e do espetáculo, o que traz ao esporte e às suas torcidas inúmeras contradições. Os clubes (e com eles o futebol) se popularizaram, mas não sua administração, não o poder sobre o futebol. Nada é menos democrático do que um clube. Essa herança dos tempos do “esporte bretão” nunca foi resolvida. Essa “herança” irresoluta parece retornar na forma de mais uma “modernização” à brasileira, mais uma caixa de pandora a ser oferecida aos milhões de apaixonados torcedores.
Embora não seja novidade, há um fato novo nessa discussão sobre o destino do futebol, a proposta capitaneada pela atual presidente da Câmara dos deputados, Rodrigo Maia, da generalização do clube empresa, o assim chamado Clube S/A. A ligação de Rodrigo Maia com o futebol é antiga, ele aparece com a alcunha de “Botafogo” em diversas listas de corrupção de empreiteiras, mas agora parece disposto a “se consagrar” com a cartolagem. O Projeto de Lei 5082/16 estabelece as condições para que clubes de futebol, federações e ligas se transformem em sociedades anônimas (S/A), com ações negociadas em bolsas. A proposta tramita na Câmara dos Deputados, no mesmo momento em que o Figueirense S/A, que é um clube nos moldes do projeto encampado por Maia, chegou ao auge de sua crise financeira, levando seus jogadores à uma inédita greve dos jogadores e a consequente derrota por WO na série B do brasileirão.
Não é necessário entrar nos detalhes das propostas em tramitação ou paradas no Congresso para perceber o engodo que ensejam, todas prometem “nível europeu” sem condições europeias, a mesma mentira de sempre, com que se pretende enganar a população do terceiro mundo com a panaceia da vez, sejam privatizações, seja a dita “austeridade” (para os pobres). Trata-se de dizer que com as sociedades anônimas chegaríamos ao nível dos europeus, assim num passe de mágica, e cada Olaria teria o seu Messi, cada Cabofriense o seu CR7. Mas o pior aspecto do Projeto de Lei 5082/16 é tipicamente brasileiro, é seu extremo autoritarismo. A dita mudança seria obrigatória, de cima para baixo, imposta a todos os clubes. Os jogadores seriam considerados “hipersuficientes” e perderiam seus direitos trabalhistas, ignorando que 97% dos jogadores profissionais não têm contratos milionários e vivem com salário mínimo.
O exemplo do Figueirense S/A é eloquente, quando o Clube foi substituído pela empresa Elephant na gestão, o que se prometia era padrão europeu de gestão, o que foi entregue foi acúmulo de dívidas e salários atrasados, prometeu-se investimentos de nível europeu, foi entregue a greve dos jogadores, prometeram-se títulos, entregaram o WO.
Outros exemplos podem ser observados na Europa, ou alguém não se lembra do Milan, propriedade de Silvio Berlusconi, vendido a um grupo chinês e que foi punido por falcatruas financeiras? E outros clubes banidos do futebol por envolvimento com lavagem de dinheiro promovidas por CEO’s e outros bichos típicos do capitalismo rentista que pretende submeter de vez o futebol à lógica dos lucros acima de tudo e de todos. Enfim o que se pretende é a pura e simples subordinação do esporte ao capital especulativo, dos torcedores aos CEO’s, da paixão pelo lucro, o que poderia ser o começo do fim, não da gestão, mas da ligação fundamental entre Clubes e torcidas, razão maior da “identificação” que torna o futebol a melhor representação do drama (2) da vida.
Desde a Lei nº 9.615/98, mais conhecida como Lei Pelé, que o poder do empresário cresceu contra os clubes, e, consequentemente, contra as torcidas, que por mais que não estejam contempladas no modelo em vigor no Brasil, têm ao menos sobre ele poder de pressão, pressão de tipo popular, no corpo a corpo do clube, da sede, dos estádios. O projeto encabeçado por Maia e apoiado por Guedes e por alguns clubes de expressão nacional fragiliza ainda mais o clube, dá poder infinito ao capitalismo no esporte e torna o torcedor um mero “fã” de um ícone da indústria cultural. Clube Empresa no Brasil há dezenas, são clubes sem torcida, com empresários de bolso cheio e arquibancadas vazias. O que disse Afif Domingos, escalado por Paulo Guedes para “ajudar” na tramitação do PL 5082/16, resume tudo o que está em jogo: “O futebol é um grande mercado, há bilhões de reais que estamos deixando escapar”. (3)
O futebol nasceu elitizado no Brasil, se popularizou em um longo e penoso processo, que transformou “fãs” em torcedores, capazes de apoiar e de pressionar seus clubes, depor dirigentes e técnicos, virar a mesa com o poder de que dispõe, a pressão da massa, a voz da multidão. Para Maia e Guedes o futebol não passa de “bilhões de reais”. Como sempre, nos prometem a “Europa” e nos entregam o “Terceiro Mundo”, nos prometem o Barcelona e nos entregam o Figueirense S/A, nos prometem taças e nos entregam o WO. Clubes Empresa não são novidade entre nós, mas a sua generalização significa um ataque autoritário contra a paixão popular, que liga, irremediavelmente o torcedor a seu time, para bem e para mal, como diz Mário Filho.
1 — Quem poderia imaginar que o popularíssimo time de Bangu nasceu The Bangu Atletic Club? E mais, que muitos clubes das primeiras décadas do século passado, como o Rio Criket só escalavam ingleses, que o Paissandu (do Rio) só escalava ingleses e alemãs… Só a guerra mudou esse quadro, ao menos no Paissandu, que com a convocação para a guerra de muitos de seus atletas aceitou pela primeira vez um jogador brasileiro, Candido Viana, que era cronista esportivo. O primeiro jogador operário do The Bangu foi Francisco de Barros, o Chico Porteiro, guarda da Fábrica de tecidos chamada Companhia Progresso Industrial do Brasil, Chico Porteiro se notabilizaria por em quase todo jogo bater a cabeça na trave, como reporta Mário Filho, “só via a bola e não via mais nada”.
2 — “O futebol é passional porque é jogado pelo pobre ser humano”, como disse Nelson Rodrigues.