Futebol na pandemia: Bola Fora…

Se há algo que a pandeia tenha provado sobre o futebol é seu caráter supérfluo ante a desafios reais da vida em sociedade. E mais, há muito o que falar sobre o “mundo do futebol” sem o jogo em si, sem o onze contra onze, como se dizia antigamente. A começar pela relação entre futebol e política que, para horror de Caio Ribeiro, ficou comprovada por todos os que acompanham o assunto, desde os primeiros efeitos da pandemia sobre o esporte. Com ou sem a bola rolando poderíamos continuar comentando o uso político do esporte de preferência nacional, o descaso dos clubes e da grande imprensa com o futebol feminino e como estaríamos melhor no meio dessa desordem com um liga de clubes que pudesse proteger o futebol do fracasso para que são conduzidos por seus dirigentes.

 Existiu, no entanto, uma forte pressão do governo Bolsonaro para a volta à campo das equipes. O mais importante campeonato nacional tem até data para retorno, supostamente 8 de agosto, ou seja, dentro de um mês. É muito provável que o começo do Campeonato brasileiro coincida com números elevados de mortes por covid-19, já que o melhor no caso do Brasil é não falar em “pico” da pandemia, pois agindo como estamos agindo, esse tal “pico” vai ser eternamente postergado. É estranha a sensação de que nos comovíamos mais com as mortes de italianos…

Estaduais

No Rio, que na década de 90 tinha “o campeonato mais charmoso do Brasil”, e onde a bola voltou há algumas semanas para o agora rebatizado “Covidão-2019”, parte da população segue impassível diante da morte (dos outros). Espécie de carro abre alas desse carnaval da morte, o Flamengo caminha para um título que de tão irrelevante merece total repulsa de sua torcida. De que vale um carioquinha nessa hora?

E os 10 reais, hein? Que vexame! Traindo sua torcida, o presidente do Flamengo (Rodolfo Landim) tentou cobrar dez reais pela transmissão de um único jogo contra o Volta Redonda e deu tudo errado… A plataforma Mycujoo não deu conta do recado, não conseguiu fazer a transmissão e de última hora o jogo passou mesmo gratuito na Flatv. Ao que tudo indica a presidência Landim vai acabar com uma voz de prisão, ou pelo caso dos Garotos do Ninho[1] (mortos nas dependências do clube há 17 meses), ou por outras falcatruas que pesam em seu passado de braço direito de Ayke Batista[2]. A arrogância da diretoria parece já ter contaminado o ambiente dos jogadores.

Voltou também no começo de julho o Campeonato Catarinense, um estado governado por bolsonaristas. Enquanto isso os outros estados, mesmo o menos afetados pela pandemia, continuam parados e com data de volta ainda em julho. A copa do Nordeste terá uma sede única, Salvador e essa fórmula, usada no Basquete dos EUA e pela UEFA, e que parece ser arriscada. A Conmebol definiu para setembro a volta da Libertadores e para outubro a Sulamericana, só não definiu ainda o formato, pois o Brasil segue sendo o principal foco sulamericano do vírus.

No paulista, que também assiste a tentativa de uso político por Dória, mesmo com uma insinuação de agir em conjunto na volta às atividades, há clubes já treinando, como o Bragantino, e outros que dispensaram jogadores, como o líder, Santo André. A verdade é que depois da implosão do clube dos 13 (pelas mãos de Andres Sanchez) reina no nosso futebol o “salve-se que puder”. Não se trata de saudosismo pelo antigo projeto de uma liga, nem mesmo de dizer que antes de 2011 tudo estivesse bem, mas é fato que as mudanças pelas quais os clubes vão passar no futuro imediato poderiam ser mais bem conduzidas por uma liga.

Medida Provisória

No momento em que explodia o “caso Queiroz” Bolsonaro edita uma medida provisória sobre futebol, e o Brasil muda de assunto. A medida provisória 984/2020[3] que muda por completo a venda dos direitos de transmissão do futebol e a sua divisão entre atletas deveria ser objeto de acordo entre os clubes, mas serviu apenas como cortina de fumaça para o mal momento vivido pela milícia no poder.

De fato pouca coisa muda no curto prazo, já que os direitos dos próximos 5 campeonatos nacionais já estão “vendidos” para a rede Globo, e esta “venda” não será afetada pela medida provisória. A MP já conta com mais de 100 propostas de emendas, caso passe, não será como foi projetada por Bolsonaro, pois os clubes, também eles, têm uma bancada, a bancada da bola. A medida provisória muda a comercialização apenas dos campeonatos estaduais, que agora passam a ser ameaçados por conta da extensão do campeonato brasileiro 2020, que deve ir até fevereiro de 2021. Alguns clubes veem nisso uma oportunidade de “emparelhar” o calendário brasileiro com o europeu, mas é uma medida que pode asfixiar as pequenas agremiações, que já devem sair quebradas da pandemia. O importante aqui seria encontrar uma fórmula na qual os times “grandes” e “pequenos” tivessem suas receitas equalizadas, pois só isso vai impedir que muitas e tradicionais camisas não sejam definitivamente “penduradas”. Essa equalização funciona na Liga Inglesa, por exemplo, onde Manchester United e Sheffield United têm receitas similares de tv. A MP de Bolsonaro, ao contrário, visa estabelecer assimetrias ainda maiores do que as que temos.

Futebol Feminino

A MP 984/2020 também silencia completamente sobre o Futebol Feminino, sobre as categorias de base, enfim, é uma Medida Provisória que pensa uma “elite do futebol”, que ademais, nem temos. É como legislar para Real Madrid e Barcelona, mas o que temos pra hoje é Macaé e Madureira.

Embora lucre milhões, anos a fio com o futebol nacional, a CBF[4] repassou migalhas para os clubes que disputam os principais campeonatos femininos, e mesmo esse dinheiro pouco não chegou ao bolso de muitas atletas[5]. O futebol feminino que assistia a um crescimento empolgante depois da última copa do mundo está fortemente ameaçado em sua continuidade, seja pelo silêncio da mídia, seja pela miopia dos clubes, que procuram se desobrigar dessa modalidade. Esse repasse significou para a maioria das atletas uma ajuda de mil reais e só. E já se vão 3 meses sem jogos… um vexame! De novo, é muito preocupante o silêncio da imprensa esportiva.

Sem mudanças imediatas (visto que os direitos do brasileirão já foram comprados pela Globo até 2025), sem resolver as assimetrias de região[6], sem resolver o financiamento do futebol feminino e de base, enfim, sem resolver nenhum dos problemas do futebol, o que justificaria uma discussão sobre a principal fonte de renda do futebol nesse momento a não ser a velha política do “pão e circo”?


[1] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/mauro-cezar-pereira/2020/07/08/garotos-do-ninho-mortos-ha-17-meses-indiciado-recorre-no-ambito-do-mprj.htm

[2] https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/7124769/flamengo-landim-e-investigado-pelo-mpf-por-imbroglio-com-empresa-que-fundou-a-mare-investimentos-informa-jornal

[3] https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/142594

[4] https://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/cbf-registra-receita-recorde-de-quase-r-1-bilhao-em-2019.ghtml

[5] https://agenciabrasil.ebc.com.br/esportes/noticia/2020-04/repasse-de-apoio-financeiro-da-cbf-equipes-femininas-tem-impasse

[6] Os clubes do nordeste, pois não há mais nenhum clube do Norte na elite do futebol nacional, gastam muito mais para jogarem o brasileiro do que os clubes mais ricos do país. Não é por motivos futebolísticos que já tivemos um campeonato sem os clubes do Norte e Nordeste.

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia, lateral do Ponta Firme FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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