Dramaturgia curta
Personagens:
MÃE
FILHO, chamado Amir, com cerca de 7 anos de idade
Cenário: um cômodo em ruínas de uma casa pobre. MÃE e FILHO estão sentados no chão, com as costas encostadas na parede. Acima deles há uma janela, e por ela veem-se os clarões que espocam continuadamente ao longe. Alguns dos barulhos, no entanto, aqueles que mais assustam o FILHO, provocam clarões maiores e são imensamente mais barulhentos. A MÃE veste roupas típicas de mulheres muçulmanas, seu filho veste uma blusa de lã, bem batida, puída, uma calça de moletom, também desgastada, e chinelos de dedo.
FILHO
(irritadiço) Mãe, os trovões não vão parar? Não aguento mais. Tenho medo.
MÃE
(abraçando-o) Calma, filho, calma. Logos eles vão parar.
FILHO
Os trovões são estranhos, porque troveja sem parar, mas a chuva não cai. Não cai nunca.
MÃE
Vai cair, filho, vai cair.
FILHO
Mãe, posso te pedir uma coisa?
MÃE
Claro, filho, peça.
FILHO
Fala de novo sobre o Youssef. Estou com saudade dele.
MÃE
Mas como pode ter saudade dele, filho, se você nem o conheceu?
FILHO
Ah, mãe, é uma saudade diferente.
MÃE
Diferente como?
FILHO
É saudade de ouvir você falar dele. Faz tempo que você não fala dele.
MÃE
Está bem, Amir, Está bem. (suspira) Youssef era um moço alto. Bem alto.
FILHO
Será que serei alto como ele um dia?
MÃE
Claro que será, filho, claro que será. Mas tem que parar de reclamar de comer seus legumes.
FILHO
(com sorriso maroto) É que não gosto de legumes.
MÃE
Mas Youssef gostava, por isso ele cresceu tanto.
FILHO
Hum… Então vou comer meus legumes. Mas fala, mãe, fala do Youssef.
MÃE
Youssef era um dos dois presentes que Allah, em sua infinita bondade, me deu.
FILHO
(sorrindo) O outro sou eu, não é?
MÃE
Sim, é você Amir. Youssef e você são presentes de Allah.
FILHO
Mas continua a falar, mãe. Continua a falar dele.
MÃE
Então, Youssef era alto, magro, disposto. Era disciplinado e todo mundo gostava dele.
FILHO
E ele era corajoso, não é? Bem corajoso.
MÃE
Sim, muito corajoso.
FILHO
(suspirando, decepcionado consigo) Ele ficaria chateado porque estou com medo dos trovões.
MÃE
Não, filho, claro que não. Ele também temia os trovões.
FILHO
Mas você disse que ele brigava com os trovões.
MÃE
Sim, brigava.
FILHO
Mas se ele sentia medo…
MÃE
Ele tinha medo, mas brigava com os trovões.
FILHO
Eu tenho que brigar com os trovões, também, então.
MÃE
Sim, mas antes tem que comer seus legumes todos os dias para crescer. E aí, quando estiver grande, se ainda estiver trovejando, aí você poderá brigar com os trovões (faz cócegas no FILHO, ambos riem. Depois ficam silenciosos, cada qual com o olhar distante voltado para um canto).
(pausa)
FILHO
Será que um dia pára de trovejar?
MÃE
Sim, um dia pára.
FILHO
Antes de eu crescer?
MÃE
Tomara que sim.
(pausa)
FILHO
Mãe.
MÃE
O quê?
FILHO
Você parou de falar do Youssef.
MÃE
Sim, é verdade, eu parei. Desculpa filhinho (suspira). Seu irmão era alto, magro, disposto. Era disciplinado e todo mundo gostava dele.
FILHO
E era corajoso.
MÃE
E era muito corajoso. E também era bem bonito.
FILHO
Eu também sou bonito?
MÃE
Você é tão bonito quanto ele. (FILHO sorri) As moças sempre olhavam para ele, de canto de olho, sorrindo. Tenho certeza de que ele teria se casado com uma moça bonita e inteligente.
FILHO
Que nem ele.
MÃE
Bonita e inteligente, como ele era. (pausa) Ele era muito sorridente. Sorria para tudo e para todos. A todo momento. Ele só parava de sorrir quando…
FILHO
Quando…
MÃE
Quando a gente tinha que lembrar…
FILHO
Lembrar do quê?
MÃE
Lembrar que é preciso reafirmar o porquê de ainda vivermos aqui.
(um forte estrondo junto a um clarão imenso)
FILHO
(num grito assustado, agarrando a MÃE e escondendo-se entre seus braços) Mãe!
MÃE
Calma, filhinho, calma. A mamãe está aqui com você.
FILHO
Me abraça forte.
MÃE
Claro. Venha cá.
FILHO
(chorando contido) O Youssef ficaria com vergonha de mim.
MÃE
Claro que não.
FILHO
Ficaria sim, você está mentindo.
MÃE
Não filho, claro que não. A mamãe nunca mentiria para você. Sabe o que Youssef faria se te visse com medo? Ele te pegaria no colo, te jogaria para cima e, sorrindo, te diria: “não chora, pequenino! Allah sabe o que faz! Para cada trovão, a gente atira dez pedras!”.
FILHO
(olhando para a MÃE, extasiado) Dez pedras!
MÃE
Sim. Seu irmão conseguia jogar uma pedra atrás da outra, rápido como ninguém mais. E quase sempre acertava o alvo.
FILHO
(exultante) Quando crescer vou ser como ele.
MÃE
Você já é, meu filho. Você já é. Só falta crescer.
FILHO
(assertivo) Vou comer todos os meus legumes.
MÃE
E será grande como seu irmão.
FILHO
Serei como Youssef.
(um forte estrondo junto a um clarão imenso)
FILHO
(fica em pé, com os braços em “muque” para mostrar que é forte) Vê, mãe, não assustei.
MÃE
(com olhar assustado, mas fazendo o que pode para que o FILHO não perceba) Não filho, você não se assustou.
(outro estrondo, mas distante. a luz pisca, o FILHO senta-se ao lado da MÃE. ficam o mais juntos e contraídos possível, apreensivos. pausa)
FILHO
Mãe, só queria que parasse de trovejar tanto e começasse a chover logo.
MÃE
Por quê?
FILHO
(olhando para o chão) Porque queria que a chuva limpasse logo o chão. Esse vermelho todo me assusta.
MÃE
Não se preocupe, filho, não se preocupe.
(pausa)
FILHO
Mãe, sabe o que me disseram lá na escola?
MÃE
O que, Amir?
FILHO
Que você mente para mim.
MÃE
Eu?
FILHO
Disseram que não são trovões.
MÃE
São, são sim, filho. São trovões, são só trovões.
(ouve-se um forte som de explosão enquanto a luz se apaga abruptamente. ouvem-se sons de desmoronamento. silêncio. fim)
A tristeza é completa. É profunda.