Golpe militar e ditadura militar-fascista

Um esclarecimento sobre a história militar do Brasil enseja a discussão das circunstâncias históricas do golpe militar e sobre a responsabilidade – pelos crimes hediondos cometidos na repressão aos opositores pelos sucessivos governos militares – dos militares que se locupletaram durante a ditadura com altos cargos e salários nababescos em estatais (isso sem falar das “tenebrosas transações” encobertas pelo regime de exceção), mas também um debate: primeiro, sobre o caráter militar do golpe de 64; em seguida, sobre o caráter militar-fascista do regime ditatorial por ele instaurado. 

Antes, porém, vale recordar o 13 de março de 1964, quando o presidente João Goulart pronunciou o famoso discurso do comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Conhecido também como o Comício das Reformas de Base, nele Jango comprometeu o governo com um programa de mudanças estruturais no país. 

O Presidente da República anunciou ao povo reunido em praça pública que decretara a estatização das refinarias de petróleo e que encaminharia ao Congresso Nacional um conjunto de reformas, cujos tópicos mais significativos eram: início da reforma agrária, com a desapropriação das terras com mais de 600 hectares às margens das rodovias federais, das ferrovias e dos açudes, bem como das grandes propriedades valorizadas por obras públicas; reforma educacional, com a destinação de pelo menos 15% da renda nacional para a educação, e a erradicação do analfabetismo, com base no método Paulo Freire; controle sobre as remessas de lucro para o exterior; reforma tributária para instituir a progressividade das alíquotas do imposto de renda de acordo com a capacidade contributiva do cidadão; reforma eleitoral com ampliação dos direitos de votar e ser votado aos analfabetos e aos praças das Forças Armadas, além da coerção à interferência do poder econômico nas campanhas eleitorais. 

Contra esse reformismo (que, ainda hoje, não perdeu de todo sua atualidade) foi dado o golpe militar de 1964. 

Não há dúvida de que por trás dos militares golpistas estavam os interesses contrariados de diversas facções das classes dominantes e do imperialismo. Sabe-se, inclusive, que a Sétima Frota dos Estados Unidos fora enviada ao litoral brasileiro para reforçar militarmente os golpistas caso se fizesse necessário. 

Não há dúvida tampouco sobre a existência de uma campanha de imprensa orquestrada para desestabilizar o governo e do assédio dos setores conservadores sobre os quarteis para que as Forças Armadas aderissem à solução golpista. 

O alinhamento da imprensa grande com o movimento golpista foi manifestado nos editoriais dos principais jornais do país, comemorando a queda de João Goulart. 

O editorial do JB, que rigorosamente não diz nada além de baboseiras, deixa tudo bem claro: 

“Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade … Legalidade que o caudilho não quis preservar, violando-a no que de mais fundamental ela tem. (…) A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas.(…) Golpe – crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada. “[JB, 01/04/1964] 

O editorial de O Globo não fica atrás em seu regozijo pela derrocada da ordem democrática: 

“Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas (…) para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas (…) o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. (…) Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente (…) Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. (…) Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.(…) A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo.(…) Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos (…).” [O Globo, 02/04/1964] 

Textos golpistas, que proclamam em alto e bom som o compromisso antidemocrática da imprensa grande brasileira. Corroboram a coerência da imprensa grande no espírito do golpismo que sempre foi a seiva da qual se nutriu o jornalismo empresarial neste país. 

Fica, no entanto, uma perplexidade: mas, então, não havia censura à imprensa durante a ditadura militar? 

Quem responde é o jornalista Mino Carta: “Em cima da destruição da memória, alguns jornais inventam que sofreram censura. O Jornal do Brasil nunca foi censurado. A Folha de São Paulo nunca foi censurada”.  

E Mino Carta diz mais: 

“A Folha de São Paulo não só nunca foi censurada, como emprestava a sua C-14 [carro tipo perua, usado para transportar o jornal] para recolher torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban [Operação Bandeirante]. Isso está mais do que provado. É uma das obras-primas da Folha, porque o senhor Caldeira [Carlos Caldeira Filho], que era sócio do senhor Frias [Octavio Frias de Oliveira], tinha relações muito íntimas com os militares. E hoje você vê esses anúncios da Folha – o jornal desse menino idiota chamado Otavinho [Otavio Frias Filho] – esses anúncios contam de um jeito que parece que a Folha, nos anos de chumbo, sofreu muito, mas não sofreu nada. Quando houve uma mínima pressão, o sr. Frias afastou o Cláudio Abramo da direção do jornal. Digo que foi a “mínima pressão” porque o sr. Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis, na sucessão do general Geisel. A Folha estava envolvida com o pior, apoiava o Frota [general Sílvio Frota, ministro do Exército no governo Geisel]. O Claudio Abramo foi afastado por isso . O jornal O Globo também não foi censurado. Isso é uma piada.” [Entrevista com Mino Carta. por Adriana Souza Silva, da Redação AOL, abril de 2004] 

O golpe de Estado de 1º de abril de 1964 se insere nitidamente nas lutas de classes do período em nosso país. 

Para quem quiser se aprofundar nos meandros da ação sediciosa das elites, há uma vasta literatura, mas recomendo especialmente o livro de René Dreifuss, “1964: A conquista do Estado”. 

Parece-me, no entanto, incorreto caracterizar o golpe de 64 como civil-militar, e isso porque o seu comando político-militar esteve sempre firmemente sob o controle de oficiais generais das Forças Armadas, mas também porque, além da sua condução, todo o processo golpista se operou nos quartéis e através da mobilização de tropas regulares. Do mesmo modo como foi militar (e não civil-militar) o regime ditatorial instaurado, porque esteve o tempo todo sob o completo ordenamento do alto comando das Forças Armadas. 

Basta comparar com o havido em 1961: de um lado, uma tentativa, finalmente derrotada, de golpe militar; de outro, um contragolpe civil-militar, parcialmente vitorioso no compromisso que prevaleceu. O golpe em marcha era militar porque fruto da mobilização de tropas regulares sob o comando dos três ministros militares. O contragolpe foi civil-militar porque na sua articulação político-militar foi decisivo o protagonismo de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, e das massas populares mobilizadas para o combate. 

Essa distinção é importante para compreender o caráter militar-fascista da ditadura que se instaurou pela ação dos militares golpistas. 

O que discuto aqui é a forma da articulação político-militar que operou o golpe de Estado e o regime que daí surgiu, considerando que está claro o seu caráter de classe. Pretendo esclarecer as mediações político-ideológicas (“superestruturais”) imediatamente decisivas, não as determinações em última instância. 

O caráter militar do regime fica bem marcado pelo fato de os presidentes da República serem invariavelmente generais-de-exército (generais de quatro estrelas). Isso expressa também a hegemonia do Exército sobre as outras forças. 

Tanto era militar o regime ditatorial, que, quando houve um vice-presidente civil, Pedro Aleixo, este foi impugnado e não pode assumir a Presidência da República no impedimento do general-presidente. Neste como em todos os casos de crise institucional, o alto comando das Forças Armadas agiu em conjunto, envolvendo as três forças na preservação do caráter militar do regime. 

E , se é verdade que, desde Médici, o número de civis no ministério e no primeiro escalão do governo foi crescente, assim como é verdade que sempre foram civis os ministros da Fazenda e do Planejamento, isso nunca implicou um deslocamento do centro de decisão estratégica do poder. Neste sentido, os militares jamais compartilharam o poder com a elite civil. 

Está claro que se tratava de um regime militar, ideologicamente fascista. E digo ditadura militar-fascista para diferenciar dos regimes fascistas típicos, porque estes se caracterizaram pelo protagonismo de um partido orgânico, fortemente centralizado num líder carismático e de base de massas, além de milícias paramilitares, integradas pelas massas mobilizadas pela ideologia fascista, por fora da cadeia hierárquica das Forças Armadas (como foram os casos canônicos da Itália e da Alemanha). De modo distinto, o militar-fascismo opera diretamente através dos quartéis e sob o comando político-militar da cadeia hierárquica das Forças Armadas, regulares. Trata-se, portanto, de um fascismo militar-defectivo. 

Com relação ao fascismo italiano, Gramsci observa: 

“ter-se-ia uma revolução passiva no fato de que, por intermédio da intervenção legislativa do Estado e através da organização corporativa, teriam sido introduzidas na estrutura econômica do país modificações mais ou menos profundas para acentuar o elemento ‘plano de produção’, isto é, teria sido acentuada a socialização e cooperação da produção, sem com isso tocar (ou limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação individual e grupal do lucro.” 

Assim como o fascismo italiano, o militar-fascismo brasileiro também apresenta traços de revolução passiva. Nesse sentido, apontaria sumariamente o Estatuto da Terra e, sobretudo no período Geisel, a política de industrialização com base no tripé de capitais estatal, estrangeiro e privado nacional. 

Isso é substancialmente distinto do bolsonarismo, que não é fascista, mas ultralibertal. Para esclarecer essa questão, exemplifiquemos com a extinção do Ministério do Trabalho. 

Como se sabe, o capitalismo é o sistema de um antagonismo fundamental: o que opõe os capitalistas aos trabalhadores. Mas essa não é a única contradição em que a burguesia está enredada. Vale lembrar, a que opõe o capitalista individual a seus concorrentes; a que opõe frações do capital entre si na repartição do mais-valor extraído da classe trabalhadora; a que opõe o capitalista individual aos interesses gerais do sistema do capital.  

Os interesses gerais de uma totalidade não são a soma dos interesses particulares que a compõem. Em seu afã pelo lucro máximo, o capitalista individual tende à destruição das fontes da riqueza: a natureza e o trabalhador. Os interesses do sistema capitalista em sua totalidade tendem a impor limites à exploração predatória da natureza e do trabalhador, com uma legislação ambiental restritiva à ação do capital, e uma legislação trabalhista que regule as relações entre patrões e empregados, de modo a assegurar a reprodução ampliada da classe trabalhadora, vale dizer, do trabalhador e de sua família. Isso constitui o reformismo burguês na democracia liberal, em contraposição ao ultraliberalismo.  

Quando a democracia liberal colapsa, o fascismo é uma tendência burguesa autoritária que quer impor um poder bonapartista para, através dele, alcançar uma regulação que discipline as relações do capitalista individual com seus concorrentes e com o trabalhador, de modo a administrar a anarquia da produção capitalista. Nesse sentido, é bom lembrar a “Carta del Lavoro” do fascismo italiano como inspiradora de Getúlio Vargas na implantação da legislação trabalhista brasileira. Portanto, a extinção do Ministério do Trabalho é uma iniciativa ultraliberal. Em vez disso, o fascismo proporia um Super-Ministério do Trabalho; em vez da desregulamentação ultraliberal, a regulamentação autoritária. 

Vale destacar, todavia, que o caráter defectivo do militar-fascismo brasileiro tem raízes na nossa história. 

Roberto Schwarz apontou “as ideias fora de lugar” como uma característica da formação ideológica em nosso país. Mostrou como o nosso liberalismo era uma ideologia de segundo grau, retórica, enquanto o mecanismo do favor operava as relações entre a classe dominante e a classe média na zona de hegemonia da formação social brasileira, ao passo que a dominação com base no assujeitamento pela força, típico da escravidão, prescindia da mediação ideológica nas relações de produção. 

Essa questão da ideologia de segundo grau demanda uma explicação. Como observa Carlos Nelson Coutinho, no Brasil, mesmo na época da subordinação formal, (quando o modo de produção interno ainda não era capitalista), as classes dominantes de nossa formação social encontravam suas expressões ideológicas e culturais na Europa burguesa. 

É nesse sentido que se pode dizer que as ideias estavam fora de lugar e constituíam uma ideologia de segundo grau. É porque não encontravam correspondência nas relações de produção escravistas então dominantes na formação social brasileira. Adverte-se aí uma incongruência constitutiva da formação ideológica. Essa incongruência entre base material (escravista) e superestrutura (liberal) deixa suas marcas na formação ideológica mesmo depois de efetuada a transição da subsunção formal para a subsunção real do modo de produção interno. 

Na origem da nossa República, o florianismo pode ser caracterizado como um jacobinismo militar-defectivo: defectivo porque tinha um temperamento jacobino, mas faltava-lhe um adequado conteúdo jacobino (basicamente, sem um programa agrário). 

Ser defectivo tem consequências políticas graves. No caso do florianismo, ele não se sustentou no poder, embora tenha seus herdeiros históricos no tenentismo. No caso do regime militar-fascista, ele, por um lado, se assenta numa zona de hegemonia sócio-política que não se constitui com base num consentimento ativo dos governados, mas principalmente na passividade das amplas massas (obtida, em grande medida, através da repressão mais brutal); por outro, e por isso mesmo, ele depende do êxito na esfera econômica (“milagre econômico”) para se legitimar e garantir a governabilidade. 

Está aí porque o fim do “milagre econômico” foi o começo do fim da ditadura militar-fascista. 

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Um comentário sobre “Golpe militar e ditadura militar-fascista

  • 12 de junho de 2021 at 11:55 am
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    Uma matéria muito crítica sobre a ditadura militar-fascista, a fim de que possamos entender que os golpes políticos no Brasil tinham a ver com uma ditadura sangrenta e que pregava o ódio a classe trabalhadora e aos excluídos.

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