Gramsci para principiantes [III]

Carlos Nelson Coutinho situa entre 1921 e 1926 “a efetiva transição de Gramsci para a maturidade”. E diz que esse amadurecimento se daria com a “assimilação de muitos elementos da reflexão leniniana”. Com efeito, pode-se advertir a inspiração leninista na linha política gramsciana e na elaboração teórica de seus principais conceitos. Mais do que Marx, é Lênin que impregna de modo decisivo o pensamento político do comunista sardo.  Isso talvez se possa explicar pela circunstância de Gramsci (1891 — 1937) ser contemporâneo de Lênin (1870 — 1924).

Em maio de 1920, Gramsci escreve o artigo Por uma renovação do Partido Socialista. O título do artigo deixa claro que ele ainda não cogitava de uma ruptura com o PSI, embora já estivesse empenhado em organizar grupos comunistas nas fábricas. Contudo, na sua avaliação, a crise política marcha célere em direção a uma ruptura própria de uma situação revolucionária. “A fase atual da luta de classes na Itália é a fase que precede: ou a conquista do poder político por parte do proletariado revolucionário” – sustenta ele – “ou uma tremenda reação por parte da classe proprietária e da casta governamental”.  A fórmula do “ou… ou” descarta qualquer determinismo unilateral. E isso é muito característico da dialética gramsciana.

Gramsci e seus camaradas de L’Ordine Nuovo ficam à margem da delegação do PSI (integrada pelas correntes de Serrati e Bordiga) ao II Congresso da IC, justamente a que aprovou as 21 condições para o ingresso na III Internacional. Não obstante o alijamento de Gramsci,  o 17º ponto das Teses sobre as tarefas fundamentais do Segundo Congresso da Internacional Comunista, escritas por Lenin, dizia claramente: “No que tange ao Partido Socialista Italiano, o segundo Congresso da III Internacional considera substancialmente justas as críticas do partido e as propostas práticas, publicadas como propostas ao Conselho Nacional do Partido Socialista Italiano, em nome da seção turinesa do próprio partido, na revista L’Ordine Nuovo de 8 de maio de 1920, que correspondem plenamente a todos os princípios fundamentais da III Internacional.” 

O II Congresso da IC começa em 19 de julho e se encerra em 7 de agosto de 1920. Lenin, contestando Serrati, declara na sessão de 30 de julho: “O que temos a dizer simplesmente aos companheiros italianos é que a linha dos militantes do L’Ordine Nuovo, e não a da atual maioria dos dirigentes do Partido Socialista e do seu grupo parlamentar, é que corresponde à linha da Internacional Comunista […] Por Isso afirmamos aos companheiros italianos e a todos os partidos que têm uma ala direita: a tendência reformista não possui nada em comum com o comunismo. ”

E, na sessão de 2 de agosto, Lenin dirige-se a Bordiga. “Você, companheiro Bordiga, sabe que na Rússia demonstramos, não somente na teoria, mas também na prática, a nossa vontade de destruir o parlamento burguês. Mas esqueceu que isso é impossível sem uma preparação bastante longa e que, na maioria dos países, é ainda impossível destruir o parlamento de um golpe só. Nós somos obrigados a conduzir também no parlamento a luta pela destruição do parlamento […] Diz-se que que o parlamento é um instrumento do qual se serve a burguesia para enganar as massas. Mas este argumento pode ser dirigido contra você, companheiro Bordiga, ele se volta contra as suas teses. Como mostrar às massas efetivamente atrasadas e enganadas pela burguesia o verdadeiro caráter do parlamento? Como denunciar esta ou aquela manobra parlamentar, a posição deste ou daquele partido, se não se entra no parlamento, se procuramos nos manter fora do parlamento […] por hora, o parlamento também é uma arena da luta de classes. ”

Em 14 de outubro, Serrati escreve no L’Humanité: “Todos nós somos pelas 21 condições de Moscou. Trata-se de sua aplicação. Afirmo que é preciso depurar o partido dos elementos nocivos e eu propus a expulsão de Turati; contudo, não devemos perder a massa dos inscritos nos sindicatos e nas cooperativas. Os outros desejam uma cisão radical. É aí que reside o dissenso”.   

Lenin contra-argumentou. “Serrati teme que a cisão enfraqueça o partido, em particular os sindicatos, as cooperativas e as prefeituras. Os comunistas, ao contrário, temem a sabotagem da revolução por parte dos reformistas. Contando com reformistas em suas próprias fileiras, não se pode vencer na revolução proletária, não se pode defendê-la. Por conseguinte, Serrati põe em risco a sorte da revolução para não prejudicar a administração municipal de Milão.”

Serrati replicou. “Nós não somos defensores dos reformistas. Defendemos o partido, o proletariado, a revolução por um desejo ardente de destruição e demolição. Defendemos a unidade do movimento socialista italiano para que ele possa enfrentar as dificuldades e os sacrifícios do amanhã para a obra de reconstrução. ” E prossegue. “Iniciou-se hoje o período do contra-ataque burguês em resposta ao ataque descerrado pelas classes trabalhadoras desde o dia do armistício até hoje. O capitalismo italiano – garantido pelo Estado, pela sua polícia e magistratura, pelo Exército que ainda tem toda a eficiência – não está disposto a ceder as armas e vai se organizando crescentemente, cerrando as próprias fileiras. As últimas eleições administrativas e os recentes episódios ocorridos em algumas cidades italianas provaram muito bem como a classe dominante pretende opor o seu próprio bloco, unidíssimo, ao procedimento resoluto da classe operária. ”

Numa nota de 24 de outubro, A Fração Comunista, Gramsci diz que “os comunistas pretendem organizar-se difusamente e conquistar o governo do Partido Socialista e da Confederação Geral do Trabalho”. Mas o fato é que na fração comunista havia duas posições antitéticas: romper com o PSI (posição de Bordiga) ou tentar renová-lo (posição de Gramsci). E prevaleceu a posição de Bordiga.

Nas eleições administrativas realizadas de 31 de outubro a 7 de novembro de 1920, o PSI repete os bons resultados eleitorais de 1919. Conquista a maioria em 2.612 de oito mil prefeituras (inclusive Milão e Bolonha). Obtém a maioria em 26 de 69 províncias. Mas a reação estava excitada. Grupos fascista armados atacaram a multidão que comemorava a vitória socialista em Bolonha, deixando um rastro de dez mortos e 58 feridos. Os atentados fascistas se multiplicavam. Um mês depois, atacaram em Ferrara, quando três fascistas forram mortos pelos guardas vermelhos.  Nesse clima de exasperação do confronto, Serrati temia que a cisão dos comunistas enfraquecesse a esquerda diante da ofensiva fascista.

Gramsci participou do XVII Congresso do PSI, que ocorreu entre 15 e 21 de janeiro de 1921, em Livorno. Teve uma participação apagada. Sequer fez uso da palavra nos debates congressuais. Os maximalistas de Serrati (corrente “comunista unitária”) obtêm 98.028 votos; o grupo de Imola (fração comunista de Gramsci e Bordiga), 58.783; e os reformistas de Turati, 14.685. Os maximalistas de Serrati, majoritários, não aceitam duas das condições ditadas pela Internacional Comunista: mudar o nome de Partido Socialista para Comunista e expurgar a minoria reformista. Diante do impasse, o grupo de Ímola, fração comunista do PSI (respaldada na Internacional Comunista), retira-se do Congresso e consuma a cisão partidária, fundando o Partido Comunista da Itália, Seção Italiana da Internacional Comunista (PCI) em 21 de janeiro de 1921.

Para a fundação do PCI concorreram o grupo ordenovista, que agrupava Gramsci, Terracini e seus camaradas; a corrente comunista de Amadeo Bordiga, os “maximalistas abstencionistas”, que desde 1919 se nucleavam em torno do jornal napolitano Il Soviet; uma ala dos maximalistas majoritários liderada por Gennari ; e alguns parlamentares agrupados em torno de Graziadei e de Marabini. É composto um Comitê Central de 15 membros, encabeçado por Bordiga. Apenas dois dos quinze – Gramsci e Terracini – eram do grupo ordenovista. O grupo de Bordiga (Il Soviet) é amplamente majoritário. Ficou com 8 integrantes. E o grupo maximalista de esquerda, com cinco.  Gramsci foi descartado na composição da Executiva de cinco membros, que ficou formada por Bordiga e mais três de seu grupo, e Terracini. Gramsci, entretanto, permanece como diretor de L’Ordine Nuovo.

São muito nítidas as diferenças de ponto de vista entre o comunista sardo e o napolitano. “O maximalismo” – pensa Bordiga – “terá sua primeira vitória com a conquista de todo o poder pelo proletariado. Antes disso, ele nada mais tem a fazer além de promover a organização cada vez mais vasta, consciente e homogênea da classe operária no terreno político. ” Mas só mais tarde essas diferenças vão aflorar abertamente. Para essa omissão inicial de Gramsci, Togliatti explica que o sardo, em conversas particulares, tecia críticas às políticas de Bordiga, mas não as publicizava, pois temia favorecer a ala minoritária de ‘direita’ no PCI, formada por Tasca e Graziadei, que ambicionava o respaldo da Internacional Comunista para assumir a direção do partido italiano. 

Desde 1918, Lenin sinalizara que nos países de capitalismo desenvolvido a conquista do poder seria mais difícil do que fora na Rússia; em contrapartida, a construção do socialismo seria mais fácil.  Com o fracasso da revolução mundial após a Primeira Grande Guerra, nos anos 1918-1920, Lênin e os dirigentes da Internacional Comunista ensaiam um giro estratégico, admitindo que seria preciso passar do ‘ataque frontal’ ao ‘assédio’ ao poder, o que equivale, nos Cadernos do Cárcere, à passagem da ‘guerra de movimento’ à ‘guerra de posição’.  

Isso é quando o líder bolchevique escreve A Doença Infantil do ‘Esquerdismo’ no Comunismo. “Depois da vitória da revolução proletária, ainda que seja apenas em um dos países avançados” – diagnosticaria Lenin -, “a Rússia se converterá não num país modelo, mas novamente num país atrasado (no sentido ‘soviético’ e socialista). ” Ou seja, como Gramsci diria mais tarde, nos Cadernos do Cárcere, é preciso saber distinguir o ‘Ocidente’ do ‘Oriente’.

Os anos 1921-1922 encerram uma grande complexidade na Itália. Nesse sentido, Lenin teria aconselhado Serrati em 1921: “primeiro, é preciso romper com Turati e com os reformistas; depois, é preciso fazer aliança com eles”. Mas a grande questão na conjuntura italiana era a emergência do fascismo. E Gramsci começou a analisar o conteúdo de classe do fascismo em uma série de artigos.

Em O povo dos macacos, artigo em L’Ordine Nuovo de 2 de janeiro de 1921, Gramsci diz que “o fascismo foi a última ‘representação’ oferecida pela pequena burguesia urbana no teatro da vida política nacional”. O sardo sinaliza que a pequena burguesia vive um processo de desagregação que data da última década do século XIX, dado o “desenvolvimento da grande indústria e do capital financeiro”. Em função disso, ela “torna-se uma classe puramente política e se especializa no ‘cretinismo parlamentar’”. Por sua vez, “corrompido até a medula”, o Parlamento “perde qualquer prestígio junto às massas populares”, que se convencem de que “a ação direta“ é o único instrumento disponível. A pequena burguesia “macaqueia a classe operária […] nos modos e nas formas possíveis a uma classe de falastrões, de céticos, de corruptos”. Gramsci analisa que “a pequena burguesia, que se pusera a serviço do poder governamental por meio da corrupção parlamentar, modifica a forma de sua prestação de serviços, torna-se antiparlamentarista e busca corromper as ruas”. 

A pequena burguesia, argumenta Gramsci, cultiva a ilusão “de ter realmente realizado este objetivo, de ter realmente posto fim à luta de classe, de ter conquistado a direção da classe operária e camponesa, de ter substituído a ideia socialista, imanente às massas, por uma estranha e bizarra mistura ideológica de imperialismo nacionalista, de ‘verdadeiro revolucionarismo’, de ‘sindicalismo nacional’’’. E conclui: “A pequena burguesia, depois de ter arruinado o Parlamento, está arruinando o Estado burguês: ela substitui, em escala cada vez maior, a ‘autoridade’ da lei pela violência privada; exerce (e não pode agir de outro modo) essa violência de modo caótico, brutal, e faz com que se ergam contra o Estado, contra o capitalismo, segmentos cada vez mais amplos da população. ” Quer dizer, na avaliação de Gramsci, os fascistas reduzem o Estado burguês ao emprego da pura coerção, perdendo a capacidade de organizar o consenso.

Em Subversivismo Reacionário, de 22 de junho, Gramsci foca a apresentação do líder fascista como deputado. Observa que “Mussolini, em sua estreia, resolveu recordar, como um mérito, suas origens subversivas”. O ex-socialista evocou o blanquismo, mas, observa Gramsci, “do blanquismo, Mussolini conservou apenas o aspecto formal”. O blanquismo fascista, diz Gramsci, equivale a uma “revolução sem programa”. Mussolini, caracteriza Gramsci, “não passa de um teórico (…) e de um encenador de golpes de mão”.   

Numa formulação que soa sectária, Gramsci coloca num mesmo plano os dirigentes da CGL e do PSI com os burgueses e os fascistas: “A incapacidade de articular entre si os elos de uma construção histórica é tão grande neste epilético quanto o é no subversivismo malthusiano dos D’Aragona e dos Serrati1. São todos de uma só família. Representam, tanto um como os outros, a mesma impotência. ” E conclui: “Os políticos da burguesia, que julgam a partir de sua impotência e de seu medo, falam de um subversivismo reacionário. Para nós, e para todos os que compreendem algo do jogo de forças que constitui a política, trata-se apenas de um presunçoso [Mussolini]. ”

O II Congresso do PCI em janeiro de 1922 aprova as Teses de Roma, que são desaprovadas pela Internacional Comunista, por considerá-las ‘esquerdistas’, em desacordo com a linha de frente única. Exceto o grupo de Tasca, de ‘direita’, ninguém mais se opôs às teses de Roma. Gramsci explicou a omissão diante das teses de Bordiga recorrendo a razões de conveniência. “Em Roma, aceitamos as teses de Amadeo [Bordiga] porque elas eram apresentadas como uma opinião para o Quarto Congresso [da IC] e não como uma linha de ação. Procurávamos manter o partido unido em torno de seu núcleo fundamental, pensávamos em poder fazer esta concessão a Amadeo, devido ao importante papel por ele representado quando da organização do partido. Não nos arrependemos disso: politicamente seria impossível dirigir o partido sem a ativa participação nos trabalhos centrais de Amadeo e seu grupo […] Preferimos nos retirar e a retirada devia ser feita de modo ordenado, sem novas crises e novas ameaças de cisão no interior do nosso movimento, sem acrescentar novos fermentos desagregadores àqueles que a derrota já determinava de per si no movimento revolucionário. ”

Em 1922, Gramsci parte para Moscou, para representar o PCI junto ao Comitê Executivo da Internacional Comunista (IC). Lá, participa da II Conferência do Executivo Ampliado e passa a fazer parte desse organismo de direção da IC. Esgotado, foi internado numa clínica para tratamento de doenças nervosas, ocasião em que conheceu Julia Schucht, que se tornaria sua mulher e mãe de seus filhos.

Em carta a Togliatti, Terracini e outros, de fevereiro de 1922, Gramsci aponta as determinações das realidades distintas que ele caracterizaria nos Cadernos do Cárcere como ‘Ocidente’ e ‘Oriente’. “Na Europa Central e Ocidental, o desenvolvimento do capitalismo não apenas determinou a formação de amplos estratos proletários, mas também, e em consequência, criou o estrato superior, a aristocracia operária, com seus anexos de burocracia sindical e de grupos sociais-democratas. A determinação, que na Rússia era direta e lançava as massas às ruas para o assalto revolucionário, complica-se na Europa Central e Ocidental por causa de todas essas superestruturas políticas, criadas pelo maior desenvolvimento do capitalismo; elas fazem com que a ação das massas seja mais lenta e mais prudente, e exigem, por conseguinte, que o partido revolucionário desenvolva toda uma estratégia e uma tática bem mais complexa e de longo alcance do que as que foram necessárias aos bolcheviques no período compreendido entre março e novembro de 1917.”

Em agosto de 1922, fracassa uma greve geral convocada pelo Confederação Geral do Trabalho em apoio à entrada do PSI no governo. A greve foi duramente reprimida pelas forças policiais e violentamente combatida por uma grande mobilização fascista. Em consequência da derrota, muitos grevistas forram demitidos e perseguidos, sendo obrigados a emigrar. Os comunistas foram os mais atingidos. Os industriais consolidam sua aliança com a monarquia. E os fascistas ganham condições mais propícias para a preparação de um golpe de Estado.

Em 28 de outubro de 1922, acontece a Marcha sobre Roma,que foi uma multitudinária manifestação fascista de características golpistas. Este evento culminou com o colapso da democracia liberal italiana e a ascensão ao poder do Partido Nacional Fascista (PNF), resultando na nomeação de Benito Mussolini para a chefia do governo pelo rei Vitor Emanuel III.

Na sessão de junho de 1923, Gramsci sai em defesa do PCI contra os ataques a sua linha política formulados pela direção da IC. Zinoviev, presidente da IC, replica à intervenção de Gramsci e o acusa de duplicidade, reiterando os ataques contra os graves erros estratégicos e táticos da direção do PCI, à qual responsabiliza pelo fracasso da fusão com os socialistas e, em consequência, pela ascensão do fascismo.

Em novembro de 1923, Gramsci é transferido para Viena, com a incumbência de fazer a ligação da IC com os partidos europeus. Nessa fase de Viena, desenvolveu uma intensa correspondência com seus antigos camaradas de L’Ordine Nuovo. Tinha o propósito de organizar um novo grupo dirigente no PCI, alinhado à política de frente única da IC.

O PSI sofre uma cisão com a saída das correntes ligadas a Treves, Turati e Matteotti, que fundam o Partido Socialista Unitário. Os maximalistas de Serrati, que recusam a colaboração com a burguesia, reiteram apoio à IC, que delibera pela reunificação de socialistas e comunistas.

Em 1923, o PSI expulsa um grupo de redatores da revista teórica Pagine Rose [Página Vermelha], entre eles Serrati. Gramsci, então, defende a unificação dos comunistas com os ‘terceiristas’ de Serrati. A proposta de Gramsci, que acabaria se concretizando, restaura o prestigio do comunista sardo – que saíra bastante abalado do duro embate com Zinoviev – entre os dirigentes da IC.

Em 9 de fevereiro de 1924, em carta a Togliatti, Terracini e outros, Gramsci sugere a necessidade de reconstrução do Partido Comunista. “Considero que chegou o momento de dar ao Partido uma orientação diversa daquela que ele teve até agora. […] O erro do Partido foi o de ter colocado em primeiro plano e de modo abstrato a organização partidária, o que, de resto, queria dizer tão somente criar um aparato de funcionários que fossem ortodoxos em relação à concepção oficial. Acreditava-se e ainda se acredita que a revolução depende somente da existência de um tal aparelho; e chega-se mesmo a acreditar que uma tal existência possa produzir a revolução. […]. Qualquer participação das massas na atividade e na vida interna do Partido que não fosse a que tem lugar em grandes ocasiões e em decorrência de uma ordem formal do centro dirigente era vista como um perigo para a unidade e para o centralismo. Não se concebeu o Partido como resultado de um processo dialético no qual convergem o movimento espontâneo das massas revolucionárias e a vontade organizativa e dirigente do centro […].  Sem essa dialética, há uma cristalização que é contraproducente, pois, “historicamente, um partido não é e jamais será definitivo. ”

Em abril de 1924, Gramsci é eleito deputado pelo distrito de Vêneto. Em maio, regressa à Itália, após dois anos de exílio, e participa da I Conferência Nacional do PCI, em Como, na qual critica a linha política de Bordiga, sendo eleito para o Comitê Executivo do Partido… Em torno de suas propostas se formara o grupo ‘leninista-centrista’ – que se colocaria entre a ‘esquerda’ bordiguiana e a ‘direita’ de Tasca -, modelando a maioria da Executiva. Enquanto isso, em Moscou, Julia dá à luz ao primeiro filho de Gramsci, Delio.

Em Depois da Conferência de Como, Gramsci analisou: “Foi na última Conferência do Partido que nosso Partido colocou explicitamente, pela primeira vez, o problema de se tornar o partido das mais amplas massas italianas, de se tornar o partido que realiza a hegemonia do proletariado no amplo quadro da aliança entre a classe operária e as massas camponesas”.  A Conferência de Como, portanto, culmina a derrota da concepção de ‘partido de quadros’ de Bordiga e consagra a prevalência da linha de ‘partido de massas’ de Gramsci.

O ano de 1924 ficou marcado pelo caso Matteotti. Giacomo Matteotti (1885-1924) era um deputado socialista italiano. Em 1924, Matteotti denunciou no parlamento, num discurso muito bem fundamentado, a violência fascista que originou a falsificação dos resultados das eleições de abril de 1924.  A 10 de junho, Matteotti foi assassinado em Roma por um comando fascista, após a publicação de seu livro Os fascistas expostos: um ano de dominação fascista e de dois discursos que fez na Câmara dos Deputados, denunciando os fascistas.  Durante a execução do sequestro de que foi vítima, ao ser empurrado para dentro de um carro, foi apunhalado várias vezes. Após uma extensa busca, seu cadáver foi encontrado perto de Riano, a 20 quilômetros de Roma, em 16 de agosto de 1924.

Cinco homens foram presos poucos dias depois do sequestro: Amerigo Dumini, um proeminente membro da Ceka, a polícia secreta fascista; Giuseppe Viola; Albino Volpi; Augusto Malacria; e Amleto Poveromo. Apenas três (Dumini, Volpi e Poveromo) foram condenados e logo depois liberados, anistiados pelo rei . Um deles, Filippo Panzeri, conseguiu escapar da prisão. Antes do julgamento contra os assassinos, o Tribunal Superior do Senado iniciou um processo contra o general Emilio De Bono, comandante dos paramilitares fascistas, os camisas negras, o qual, no entanto, acabou sendo liberado.2

Lenin falecera em 21 de janeiro de 1924. Em 6 de novembro, Gramsci escreveu no L’Unità o artigo Lênin, líder revolucionário, no qual registra notadamente: “Todo Estado é uma ditadura. ” Para um leitor desapercebido, isso pode soar destoante da concepção de Estado gramsciana. Mas esse estranhamento não procede. Gramsci nunca abandonou a concepção de Estado que se encontra em Marx, Engels e Lênin. Ao contrário, ele ampliou a concepção marxista do Estado, considerando o desenvolvimento do capitalismo. Para ele, o Estado continua a ser uma ditadura de classe, mas não só. Há uma ampliação. Trata-se, não obstante, de uma ampliação dialética. Como explica Carlos Nelson Coutinho, “os elementos novos aduzidos por Gramsci não eliminam o núcleo duro da teoria de Marx e Engels (ou seja, o caráter de classe e o momento repressivo de todo poder estatal), mas o desenvolvem no sentido de acrescentar-lhe novas determinações”. Carlos Nelson considera que “a real originalidade de Gramsci – as novas determinações que ele aduz ao conceito marxista de Estado – manifesta-se em sua definição da ‘sociedade civil’ que […] indica uma nova esfera do ser social que surge com os processos de socialização da política”.

Nesse artigo, Gramsci considera que “o camarada Lenin foi o iniciador de um novo processo de desenvolvimento da história, mas o foi por ser também o expoente e o último momento mais individualizado de todo um processo de desenvolvimento da história passada, não só da Rússia, mas do mundo inteiro. ” Mais adiante, faz uma comparação com o fascismo: “A ditadura do proletariado é expansiva, não repressiva. […] Benito Mussolini conquistou o governo e o mantém por meio da mais violenta e arbitrária repressão. [..] Sua doutrina está toda contida na máscara física, no modo de girar os olhos nas órbitas, no punho fechado sempre ameaçador”.

Em fevereiro de 1925, em Roma, Gramsci conhece Tatiana Schucht (“Tania”), irmã de Julia, que se tornaria sua interlocutora no período carcerário. Em março, participa da V Sessão do Executivo Ampliado da IC. E em 2 de julho, no L’Unità, escreve o artigo Maximalismo e extremismo, no qual sacramenta o seu leninismo alinhado com O ‘Esquerdismo’, a Doença Infantil do Comunismo. “O camarada Lenin nos ensinou que, para vencer nosso inimigo de classe – que é poderoso, que tem muitos meios e reservas à sua disposição –, temos não só de aproveitar todas as fissuras apresentadas pelo seu bloco, mas também de utilizar todo aliado possível, ainda que incerto, oscilante e provisório. Ensinou-nos que, na guerra dos exércitos, não se pode atingir o objetivo estratégico, que é a destruição do inimigo e a ocupação de seu território, sem ter antes atingido uma série de objetivos táticos, visando a desagregar o inimigo antes de enfrentá-lo em campo aberto. Todo o período pré-revolucionário se apresenta como uma atividade predominantemente tática, voltada para a aquisição pelo proletariado de novos aliados, para a desagregação do aparelho organizativo de ataque e de defesa do inimigo, para o conhecimento e esgotamento de suas reservas. ”

Embora Gramsci nunca tenha lido Lukács, pode-se observar o interessante paralelismo entre a ideia gramsciana de que “o período pré-revolucionário se apresenta como uma atividade predominantemente tática” e a formulação lukacsiana de que para a teoria e para a práxis, conhecer a legalidade do ‘ser-precisamente-assim’ é tão relevante quanto o conhecimento das determinações e legalidades universais; e, para a práxis, que só pode se realizar no aqui e agora concreto de uma situação histórico-social – sublinha Lukács –, a compreensão do ‘ser-precisamente-assim’ é ainda prioritária.

Gramsci apresenta no III Congresso do PCI, em 23-26 de janeiro de 1926, em Lyon, as Teses de Lyon, alinhadas com a diretriz de frente única da IC.  Nesse Congresso, o grupo de Gramsci recebe 90,2% dos votos, vitória acachapante que equivaleu a uma refundação do PCI. A linha política que Gramsci buscava implementar contemplava três eixos principais: a proposta do partido de massas (em contraposição à de partido de quadros), a proposta da frente única como unidade de todas as forças anticapitalista (inclusive os anarquistas) e a proposta da costura da aliança entre os operários do Norte e os camponeses e pastores do Sul.

Em agosto, Gramsci desfruta de férias com o filho Delio e a mulher Julia, que chegaram da Rússia. Julia retorna a Moscou grávida e dá à luz Giuliano, o segundo filho de Gramsci, ao qual ele não chegaria a conhecer.  Nesse mês, na sua última intervenção em reunião do Comitê Central do PCI, poucos meses antes de ser preso, analisa: “Se é verdade que politicamente o fascismo pode ter como sucessor a ditadura do proletariado, já que nenhum partido ou coalizão intermediária está em condições de dar nem mesmo uma satisfação mínima às exigências econômicas das classes trabalhadoras, que irromperiam violentamente no cenário político no momento da ruptura das relações existentes, não é certo, porém, e nem sequer provável, que a passagem do fascismo à ditadura do proletariado seja imediata.” Gramsci tem em vista a possibilidade de que fases intermediárias (ou ‘suplementares’) se façam necessárias entre a queda do fascismo e a ditadura do proletariado. Daí a necessidade do partido se preparar política e programaticamente para não ser surpreendido e poder influir nos acontecimentos.

Nessa época, Gramsci estava muito preocupado com as divergências que confrontavam o triunvirato de Zinoviev, Kamenev e Stalin, num bloco, contra Trotsky, do lado oposto. Ele considerava que eram fundadas as denúncias que Trotsky fizera sobre o perigo de burocratização do aparelho partidário e concordava com a abordagem de Trotsky em carta publicada no Pravda sobre o vínculo entre centralismo democrático e liberdade de crítica. Por isso, em carta a Julia, criticou o ataque de Stalin a Trotsky na XII Conferência do PC da URSS como “bastante irresponsável e apressado”.

Em 14 de outubro, em nome do Birô Político do PCI, enviou carta ao Comitê Central do PC soviético, na qual abordava a luta interna no partido russo “às vésperas da XV Conferência do PCR”. Num tom que soa ingênuo, argumenta: “Parece-nos que a atual atitude do bloco de oposição e a dureza das polêmicas no PCR exijam a Intervenção dos partidos irmãos. Foi partindo desta precisa convicção que tomamos a decisão de lhes enviar esta carta”. Gramsci considera que, no mérito, a defesa da NEP, feita pela maioria, está correta e corresponde à linha leninista de edificação da hegemonia do proletariado na aliança operário-camponesa. Mas quer preservar a unidade do partido e não aceita o esmagamento da minoria. 

Nesse sentido, faz um apelo. “ Os companheiros Zinoviev, Trotsky, Kamenev contribuíram poderosamente para nos educar para a revolução; algumas vezes nos corrigiram com muita energia e severidade. Foram nossos mestres. Especialmente a eles nos dirigimos como aos maiores responsáveis pela atual situação, já que gostaríamos de estar seguros de que a maioria do Comitê Central do PC da URSS não pretende vencer de modo esmagador esta luta e está disposta a evitar medidas excessivas. A unidade de nosso partido irmão da Rússia é necessária para o desenvolvimento e o triunfo das forças revolucionárias mundiais: todo comunista e internacionalista deve estar disposto a fazer os maiores sacrifícios para que tal necessidade se realize. Os prejuízos de um erro cometido pelo partido unido são facilmente superáveis; os prejuízos de uma cisão ou de uma prolongada situação de cisão latente podem ser irreparáveis e mortais”.

Ainda em outubro, redige o ensaio Alguns temas da questão meridional, que fica inconcluso. Este foi o mais importante escrito teórico do comunista sardo antes dos Cadernos do Cárcere. ”No campo proletário – analisa Gramsci -, os comunistas de Turim tiveram um ‘mérito’ incontestável: o de obrigar a vanguarda operária a se ocupar da questão meridional, apontando-a como um dos problemas essenciais da política nacional do proletariado revolucionário”.

Para Gramsci, “O proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classe, que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora. Na Itália, nas reais relações de classes existentes na Itália, isso significa: na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas camponeses. Mas a questão camponesa na Itália é historicamente determinada, não é a ‘questão camponesa e agrária em geral’; na Itália, a questão camponesa, como consequência da específica tradição italiana, do específico desenvolvimento da história italiana, assumiu duas formas típicas e peculiares, ou seja, a questão meridional e a questão vaticana”.

E conclui: “Portanto, conquistar a maioria das massas camponesas significa, para o proletariado italiano, assumir como próprias estas duas questões do ponto de vista social, compreender as exigências de classe que elas representam, incorporar tais exigências de classe que elas representam, incorporar tais exigências em seu programa revolucionário de transição, pôr tais exigências entre suas reivindicações de luta. ”

Gramsci considera que “nenhuma ação de massas é possível sem que a própria massa esteja convencida das finalidades que quer alcançar e dos métodos a serem aplicados”. Na sua opinião, “o Sul pode ser definido como uma grande desagregação social; os camponeses, que constituem a grande maioria da população meridional, não têm nenhuma coesão entre si”. Ele constata que “a sociedade meridional é um grande bloco agrário constituído por três estratos sociais: a grande massa camponesa amorfa e desagregada; os intelectuais da pequena e média burguesia rural; e os grandes proprietários agrários e os grande intelectuais. (…) Giustino Fortunato e Benedetto Croce (…) representam as bases de sustentação do sistema meridional; e, num certo sentido, são as duas maiores figuras da reação italiana. ”

E destaca: “Acima do bloco agrário, funciona no Sul um bloco intelectual que, até agora, serviu praticamente para impedir que as fissuras do bloco agrário se tornassem demasiado perigosas e provocassem uma ruptura. Expoente deste bloco intelectual são Giustino Fortunato e Benedetto Croce, os quais, por isso, podem ser considerados os reacionários mais atuantes da península. ”

Os intelectuais cumprem uma função crucial na questão meridional, segundo a abordagem de Gramsci. “Os intelectuais se desenvolvem lentamente, muito mais lentamente do que qualquer outro grupo social, por causa de sua própria natureza e de sua função histórica. Eles representam toda a tradição cultural de um povo; querem resumir e sintetizar toda a história deste povo. E isso vale sobretudo para o velho tipo de intelectual, aquele nascido no terreno camponês. Supor exequível que ele possa, enquanto massa, romper com todo o passado para se pôr completamente no terreno de uma nova ideologia é absurdo. É absurda para os intelectuais enquanto massa; e talvez seja absurdo também para muitíssimos intelectuais tomados individualmente, apesar de todos os esforços honestos que eles fazem e querem fazer neste sentido. Ora, os intelectuais nos interessam enquanto massa e não só enquanto indivíduos. Decerto, é importante e útil para o proletariado que um ou mais intelectuais adiram individualmente ao seu programa e sua doutrina, confundam-se com o proletariado, tornem-se e se sintam partes integrantes dele. O proletariado, como classe, é pobre de elementos organizativos; não tem e não pode formar um extrato próprio de intelectuais a não ser muito lentamente, de modo muito trabalhoso e só depois da conquista do poder estatal. Mas é também importante e útil que, na massa dos intelectuais, ocorra uma fratura de caráter orgânico, historicamente caracterizado; ou seja, que se crie, como formação de massa, uma tendência de esquerda, no significado moderno da palavra, isto é, uma tendência orientada para o proletariado revolucionário. A aliança entre proletariado e massa camponesa exige essa formação; e tanto mais a exige a aliança entre o proletariado e as massas camponesas do Sul. O proletariado destruirá o bloco agrário meridional na medida em que conseguir, através de seu Partido, organizar em formações autônomas e independentes massas cada vez mais notáveis de camponeses pobres; mas o êxito maior ou menor nesta sua inescapável tarefa será também determinado, ainda que subordinadamente, por sua capacidade de desagregar o bloco intelectual que é a armadura – flexível, mas extraordinariamente resistente – do bloco agrário. ”

A reflexão gramsciana sobre os intelectuais será retomada e desenvolvida nos Caderno do Cárcere.

Notas:

1 Ludovico D’Aragona, reformista, foi por muito tempo secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho (Confederazione  Generale del Laborto – CGL); enquanto Giacomo Menotti Serrati (1857-1926), líder dos maximalistas e, durante muito tempo, principal dirigente do PSI, em 1924, minoritário entre os socialistas, migrou com a corrente ‘terceirista’ (em alusão à III Internacional) para o PCI.

2 Após a Segunda Guerra Mundial, em 1947, o julgamento contra Francesco Giunta, Cesare Rossi, Dumini, Viola, Poveromo, Malacria, Filippelli e Panzeri foi reaberto. Dumini, Viola e Poveromo foram condenados à prisão perpétua.

Biibliografia:

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

COUTINHO, Carlos Nelson (org.). O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2011.

FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci; tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LAJOLO, Laurana. Antonio Gramsci: uma vida; tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

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