Ideologia e inconsciente

Esquadrinhando o fenômeno ideológico, Leandro Konder (“A questão da ideologia”) debruça-se sobre a intersecção entre ideologia e inconsciente. O filósofo marxista observa notadamente que Freud1 relaciona as limitações do “órgão do pensamento” ao anseio que as pessoas sentem com respeito ao paradigma paterno, associado fortemente à figura de Moisés na cultura judaica: uma autoridade admirada, “por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados” (FREUD, “Moisés e o monoteísmo”).

Como se sabe, o criador da psicanálise não nutria simpatias pelos pensadores de esquerda, que lhe pareciam ingênuos. Tinha afinidades intelectuais com Schopenhauer e Nietzsche, situando-se nas vizinhanças da perspectiva de Gustave Le Bon. Seus autores prediletos invectivavam contra a igualdade e a democracia.

Freud avaliava que “as massas são preguiçosas e pouco inteligentes” (“O futuro de uma ilusão”). Na sua opinião, a multidão “é desprovida de senso crítico”. E, mais do que isso, para ele, “o que a multidão exige dos seus heróis é a força, ou mesmo a violência” (“Psicologia coletiva e análise do eu”).

Não obstante, Freud constata que a opressão da maioria por uma minoria de privilegiados é uma característica que permeia todas as sociedades de sua época. E, sobre isso, ele desenvolve uma reflexão que é até certo ponto surpreendente.

“Se nos voltarmos para as restrições que só se aplicam a certas classes da sociedade, encontraremos um estado de coisas que é flagrante e que sempre foi reconhecido. É de esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e façam tudo o que podem para se liberarem de seu próprio excesso de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus participantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior — e este é o caso em todas as culturas atuais—, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão preparadas para reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a própria cultura e, se possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se baseia. A hostilidade dessas classes para com a civilização é tão evidente, que provocou a mais latente hostilidade dos estratos sociais mais passíveis de serem desprezados. Não é preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura.”

FREUD, “O futuro de uma ilusão”, 1927

Entretanto, Freud admite que “as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os seus ideais”. E conclui que,

“A menos que tais relações de tipo fundamentalmente satisfatório subsistam, é impossível compreender como uma série de civilizações sobreviveu por tão longo tempo, malgrado a justificável hostilidade de grandes massas humanas.”

FREUD, “O futuro de uma ilusão”, 1927

Para Freud, a arte cumpre uma função ideológica nessas sociedades marcadas pela desigualdade, favorecendo uma satisfação compensatória. Ele aponta que

“um tipo diferente de satisfação é concedido aos participantes de uma unidade cultural pela arte, embora, via de regra, ela permaneça inacessível às massas, que se acham empenhadas num trabalho exaustivo, além de não terem desfrutado de qualquer educação pessoal”.

FREUD, “O futuro de uma ilusão”, 1927

Por um lado, 

“a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização.” 

FREUD, “O futuro de uma ilusão”, 1927

Mas isso não é tudo.

“Por outro lado, as criações da arte elevam seus sentimentos de identificação, de que toda unidade cultural carece tanto, proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente valorizadas. E quando essas criações retratam as realizações de sua cultura específica e lhe trazem à mente os ideais dela de maneira impressiva, contribuem também para sua satisfação narcísica.”

FREUD, “O futuro de uma ilusão”, 1927

E, desse modo, oferecendo “satisfações substitutivas” e favorecendo “sentimentos de identificação”, a arte promove “uma internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas”, preservando a “unidade cultural”, com base na “satisfação narcísica”. 

Freud também vê a arte como uma “técnica para afastar o sofrimento” que “reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade”. Ele considera que “a tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo”. E diz que,

“Para isso, ela conta com a assistência da sublimação dos instintos. Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós.”

FREUD, “O mal-estar na civilização”, 1930

Esse tipo de satisfação é exemplificado pela “alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias”. Apesar de “tais satisfações parecerem ‘mais refinadas e mais altas'”, a intensidade delas “se revela muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos grosseiros e primários”, pois “ela não convulsiona o nosso ser físico”.

Freud observa que,

“À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores. As pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não obstante a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real.”

FREUD, “O mal-estar na civilização”, 1930

Desse modo, Freud vê a arte como um narcótico de efeito atenuado.

A divulgação destas reflexões de Freud têm um interesse particular. Primeiro porque são opiniões de um psicanalista sobre estética, matéria fora de seu domínio específico. Mas também porque são reflexões de um conservador que se dá conta da barbárie capitalista e da sua mistificação, da manipulação alienadora a que a arte (penso na indústria cultural e mais especificamente no kitsch) pode se prestar.

Destaco nesses textos três ideias do mestre da psicanálise:

  1. “uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura” (“O futuro de uma ilusão”, 1927)

2) “as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os seus ideais” (“O futuro de uma ilusão”, 1927)

  1. “não obstante a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real” (“O mal-estar na civilização”, 1930)

Essa reflexão freudiana merece ser levada em conta quando se analisa o enquadramento da subjetividade que modela as lutas de classes na história concreta.

Referências

  1. Sigismund Schlomo Freud (Freiberg in Mähren, 6 de maio de 1856 — Londres, 23 de setembro de 1939), mais conhecido como Sigmund Freud, foi um médico neurologista criador da psicanálise. Freud nasceu em uma família judaica, em Freiberg in Mähren, na época pertencente ao Império Austríaco (atualmente, a localidade é denominada Příbor, e pertence à República Tcheca).

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *