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Grandes incêndios iniciaram-se há um mês em Puelmapu, território Mapuche hoje ocupado pelo Estado argentino, distribuído entre várias províncias. Calculam-se mais de 30 mil ha destruídos. Muitos fatores propiciaram o desastre. O primeiro tem a ver com a mudança climática que provocou uma seca pronunciada e fortes ventos, mas ainda há a retirada de recursos do Estado argentino que estavam alocados na prevenção e combate aos incêndios dos bosques. Essa retirada não responde apenas às políticas de ajuste do governo Javier. A destruição dos bosques favorece os interesses dos capitais com concessões mineiras, a cadeia da celulose e o negócio imobiliário vinculado ao turismo de luxo. Mesmo as políticas de instalação de Parques Nacionais têm sido desfinanciadas. Há uma intenção de mudar o uso do solo na região.
Essa descrição da dinâmica do capital é, porém, uma parte da questão. O Puelmapu é o território ancestral dos mapuches. Diferentemente de outras regiões do continente, só foi integrado efetivamente ao Estado argentino (e à economia capitalista dependente) nas últimas décadas do século XIX, no contexto da “segunda onda de invasão”1, numa ação que exterminou um grande número de mapuches e expulsou e escravizou sobreviventes: a assim chamada “campanha do deserto”. Enquanto isso, o Estado chileno realizava um movimento equivalente, a assim chamada “pacificação da Araucanía”. Nem todos os mapuches foram exterminados. Ainda que empurrados para um território reduzido, muitos permaneceram no Puelmapu. Muitos dos descendentes dos que foram expulsados retornaram. Nem todo o território foi completamente integrado à produção de commodities. Muitos trabalhadores não mapuches foram morar na região sem intenção de mercantilizar a terra. Essas gentes que compartilham o território têm sido um obstáculo ao avanço da intensidade da pilhagem do capital.
Mesmo com todas as perdas, essas gentes têm se auto-organizado, formando brigadas para defender teimosamente a integridade dos bosques, dos rios, dos lagos, da terra e de toda a vida que nesse território prospera. As ameaças não são apenas de incêndios. O Estado vem impulsionando a construção de hidrelétricas e de estradas transoceânicas para ativar projetos extrativos que adquirem personificação em empresas como a do britânico Joe Lewis (que cerca ilegalmente um lago, o Lago Escondido), a transnacional Benetton (com negócios de diferentes ramos e concessões mineiras), como também empresas de capitalistas do Qatar.
No contexto do combate aos incêndios, foram presos brigadistas acusados de incendiários. Um caso especialmente paradoxal é o de um trabalhador que viaja à região durante a temporada de verão à procura de serviço. Ele arregaçou as mangas para ajudar, somando-se aos brigadistas. Eis que a polícia julgou o gesto solidário altamente suspeito. Para um Estado que propicia o individualismo e o “salve-se quem puder” essa deve de ser uma atitude realmente suspeita. Quando os vizinhos se mobilizaram diante da delegacia de El Bolsón para libertar os brigadistas, foram cercados e atacados a chicotadas pelas milícias de Joe Lewis e do prefeito da cidade, Bruno Pogliano, que já foi contador do mencionado Lewis. Tudo sob o olhar impávido da polícia.
O Estado achou o momento particularmente oportuno para criminalizar os Lof (as comunidades mapuche), que já vinham sendo despejados de suas terras com mil subterfúgios. Acusam os mapuches de terroristas, para intimidá-los, quebrar os laços de solidariedade com os não mapuches e provocar divisões entre eles. Por sua perspectiva de mundo e sua maneira de estar no território, o povo Mapuche constitui a resistência mais radical às dinâmicas do capital na região.
Durante o atual governo, aprovou-se o Regime de Incentivos para Grandes Investimentos (RIGI), que cria condições excepcionais para a implantação de projetos extrativistas. Entre essas condições, estão os incentivos fiscais, alfandegários e cambiários. O RIGI é complementado com o Programa de Segurança Produtiva, lançado em junho de 2024 pela ministra de Segurança Patricia Bullrich e que visa a militarização dos empreendimentos empresariais. Blindam assim a intensificação do extrativismo.
No Puelmapu, as comunidades mapuches e seus vizinhos concentram todas suas forças em defender a vida do território.
Acabo de receber mensagem de uma moradora da região: hoje choveu em El Bolsón.
Referências
- Sobre a segunda onda de invasão, ver: “Las cadenas de extracción y los pueblos preexistentes”. In: Varios Autores. Nuestra América en la encrucijada: pandemia, rebeliones y estados de excepción. 1ª. ed. volume combinado. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Herramienta; Contrahegemoníaweb; México: Incendiar el océano, 2020.