Incentivar cesarianas ajuda a reduzir a mortalidade materna?

Cesáreas ou partos cesarianos são procedimentos cirúrgicos, utilizados apenas quando há riscos para mães e bebês, quando o parto vaginal pode levar à morte da gestante ou da criança. Estima-se que a prática foi iniciada por volta de 1500 DC por um castrador de porcos suíço que abriu a barriga da mulher, que estava há alguns dias em doloroso trabalho de parto. O procedimento, que depois foi aperfeiçoado pela medicina, deveria se restringir ao caso que o suscitou: concluir o nascimento de uma criança com vida e sem maiores sofrimentos para a parturiente.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) produziu e publicou um guia para profissionais da saúde com o intuito de reduzir os números de cesáreas desnecessárias.

Esse guia, lançado em outubro de 2018, revela um diagnóstico global assustador. Em todo o mundo, no período compreendido entre 1990 a 2014, a média global da taxa de cesárea praticamente triplicou. Passou de 6,7% para 19,1%. Na América Latina e no Caribe esse aumento foi bem significativo: pulou de 22,8% para 42,2%.

Essa é uma questão que preocupa os órgãos internacionais de monitoramento há alguns anos. Desde 1985 a comunidade internacional de saúde considera que a taxa de cesáreas aceitável é algo em torno de 10 a 15% do total de partos realizados. Mas os números brasileiros estão longe desse patamar de segurança.

Em maio de 2016 a OMS divulgou um alerta sobre os países que fazem cesáreas em excesso e o Brasil apareceu como único do mundo com mais da metade dos nascimentos feitos com esse procedimento cirúrgico: 53,7%. A República do Chipre, no Oriente Médio, registrou o segundo maior aumento, chegando perto de 50,9%.

Nesse mesmo ano, o Ministério da Saúde publicou um protocolo incentivando o parto normal. Segundo a OMS, são necessários padrões de atendimento para reduzir intervenções desnecessárias no parto, diante desse quadro de epidemia de cesáreas no mundo. Mesmo assim os índices não só não diminuíram como apresentaram aumento na rede pública e privada brasileira de saúde.

Em 2018, segundo levantamento do Ministério da Saúde, 56% dos partos realizados no Brasil foram feitos através de cirurgias. Apenas 44% se deram pelas vias “naturais”. O Brasil figura, a partir daí, como o 2º país com maior taxas de cesáreas no mundo, perdendo apenas para a República Dominicana. Na rede pública, 40% dos partos foram através de cirurgia. Na rede privada esse número chega a inacreditáveis 84% dos partos realizados.

Segundo a OMS, a ampliação exponencial de cesáreas no mundo implica no aumento de mortes maternas. É de 2018 seu estudo que aponta que 52% das mortes maternas têm causa associada ao parto cesariano. Das que tiveram seus filhos através de parto vaginal, o índice fica em torno de 23%. Além disso, a OMS nos informa que há seis vezes mais riscos de morte e cinco vezes mais riscos de infecção no parto cesariano do que no parto vaginal.

É nesse contexto internacional e nacional de epidemia da cesárea que foi aprovado, há alguns dias atrás, na Assembleia Legislativa de São Paulo, um projeto de lei bastante preocupante. A deputada estadual Janaina Paschoal (PSL/SP) apresentou o PL 435/2019 e o aprovou em regime de urgência. Em comum acordo, PSDB e PSL realizaram apenas uma audiência pública e um debate técnico. Nesses dois espaços, a maioria dos especialistas da área de saúde foram contrários à proposta, que foi vista como um incentivo à prática da cesariana no serviço público de saúde. Apesar dessas manifestações em contrário, o projeto foi aprovado por maioria na ALESP, já foi sancionado pelo atual governador e se fortalece como inspiração de semelhante iniciativa em âmbito federal — como declarou a deputada Federal Carla Zambelli (PSL/SP).

A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP) declarou que não houve nenhum estudo que justifique a necessidade da iniciativa parlamentar e que a medida pode estimular taxas indiscriminadas de cesáreas em São Paulo(1).

A OMS recomenda cesáreas apenas quando medicamente necessárias, pois o procedimento cirúrgico pode ser acompanhado de complicações significativas à mulher e ao bebê. Por isso não é incentivada como método para prevenir a violência obstétrica dentro do SUS. Muito menos pode ser compreendida como método a ser incentivado. Ao contrário, são necessárias medidas urgentes para reverter o aumento dos índices de cesarianas no Brasil.

Sabemos que a recente lei é direcionada às usuárias do serviço público de saúde. O parto vaginal no serviço público é, em geral, bastante doloroso. A posição não recomendada (deitada), a aplicação de ocitocina — para acelerar a dilatação e aumentar as contrações-, o corte no períneo (muita das vezes desnecessário), a ausência de analgesia e o medo do parto vaginal (em decorrência da ausência de informações seguras e completas), deixa as mulheres em situação de muita vulnerabilidade.

Em um contexto de corte de verbas por 20 anos em saúde, de privatização dos equipamentos de atendimento primário e de crise econômica as mulheres mais pobres serão afetadas. Dessas, a maioria é negra. Nesse quadro, vale a pergunta: “a quem interessa o incentivo de cesarianas?” Para os médicos obstetras, a cesária é prática porque o parto deixa de seguir o seu tempo natural e pode ser agendado de acordo com suas conveniências.

Os argumentos utilizados pela deputada proponente ignoram que a humanização do parto, que precisa ser estendida plenamente ao serviço público, diminui o tempo de trabalho de parto, reduz a necessidade de analgesia e de cesáreas, aumenta a taxa de parto vaginal espontâneo e a satisfação materna. A presença de doulas também contribui para o parto vaginal sem maiores traumas, sendo recomendada pela OMS e pelo Ministério da Saúde em todas as fases do nascimento.

A deputada acerta quando diz que há obstinação pelo parto vaginal por parte de intelectuais e artistas. Não precisa ser intelectual ou artista para compreender que nosso país segue privatizando o SUS a passos largos. Que desrespeita protocolos de urgência como os da OMS sobre o aumento de cesáreas. Que ignora uma das maiores unanimidades científicas — a de que o nascimento é feito por parto vaginal e que a cirurgia é exceção para salvar vidas, nunca regra. Somos obstinadas pela vida sim, deputada. Plena e segura. Seguiremos nesse caminho.

(1) Disponível em https://www.sogesp.com.br/noticias/posicionamento-da-sogesp-em-relacao-ao-pl-4352019/

Liliana Maiques

Militante feminista e ecossocialista, bacharel em direito.

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