Húngaro, o filósofo marxista István Mészáros nasceu em 19 de dezembro de 1930 em Budapeste. Radicado na Inglaterra, morreu em 1 de outubro de 2017 em Londres.
De origem operária, graduou-se em filosofia na Universidade de Budapeste. Em 1951, tornou-se assistente de Georg Lukács (1885-1971) no Instituto de Estética dessa universidade, na qual defendeu sua tese de doutorado em 1954. Exilou-se em decorrência da crise húngara de outubro de 1956, quando os tanques russos tomaram Budapeste. Trabalhou em várias universidades: Turim (Itália), St. Andews (Escócia), York (Canadá) e Sussex (Inglaterra), na qual recebeu o título de Professor Emérito, em 1991.
Através da coleção Mundo do Trabalho, coordenada por Ricardo Antunes, a editora Boitempo publicou vários livros de Mészáros: A crise estrutural do capitalismo; O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI; A educação para além do Capital; Estrutura social e formas de consciência; Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação; Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição; O poder da ideologia; O século XXI: socialismo ou barbárie; A teoria da alienação em Marx; Atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa radical ao sistema parlamentar. Este último, , que Mészáros dedicou a um militar português da Revolução dos Cravos – “Em memória do general Vasco Gonçalves (1922-2005), socialista radical profundamente comprometido e primeiro-ministro do governo revolucionário português” – é na verdade o capítulo 18 de Para além do Capital, acrescido de uma substanciosa introdução, que ocupa 39 das 186 páginas escritas pelo autor.
Em Atualidade histórica da ofensiva socialista, Mészáros considera que
“a atual ‘crise do marxismo’ se deve principalmente ao fato de que muitos dos seus representantes continuam a adotar uma postura defensiva, numa época em que, após uma página histórica importante ter sido virada, deveríamos nos engajar numa ofensiva socialista em sintonia com as condições objetivas”.
Essa tese polêmica (e digo polêmica porque polemiza abertamente com a práxis dos “marxismos oficiais”, tanto os dos PC quanto os das social-democracias, e seus impasses históricos) é sequenciada em quatro complexos de questões: 1. A ofensiva necessária das instituições defensivas; 2. Das crises cíclicas à crise estrutural; 3. A pluralidade de capitais e o significado do pluralismo socialista; 4. A necessidade de se contrapor à força extraparlamentar do capital.
A sequência expositiva traz a ideia de que é preciso operar a passagem das formas de luta, consciência e organização próprias do período da defensiva estratégica para novas formas adequadas à ofensiva estratégica, que se projeta amplamente determinada por uma situação objetiva em que as crises cíclicas do capitalismo cedem o passo à crise estrutural do sistema do capital em sua totalidade, emergindo daí duas questões essenciais: a do pluralismo e a da luta extraparlamentar.
Na avaliação de Mészáros, monetarismo e keynesianismo são duas faces de uma mesma moeda:
“É profundamente enganoso representar estes dois [monetarismo e keynesianismo] como polaridades opostas, com a sugestão de que o segundo introduz algumas inovações importantes em relação ao primeiro. De fato, por muito tempo, cada variedade de keynesianismo foi uma aventura quixotesca que carregava dentro de si o seu Sancho Pança friedmanesco – fase ‘stop’ de sua política semafórica de ‘stop-go’ – e vice-versa. Mas talvez um modo mais adequado de captar a sua verdadeira significação e o seu impacto seja reconhece-los como um câncer nos intestinos um do outro, intensificando reciprocamente as consequências de suas ações separadas. O fato de que o câncer do monetarismo teve que emergir recentemente de forma particularmente funesta das entranhas do keynesianismo – apoiando abertamente com sua alegada visão ‘iluminada’ a maioria das brutais ditaduras militares, do Chile a El Salvador, para não mencionar o todo-poderoso complexo industrial-militar norte-americano – só mostra que o desenvolvimento que se pretende não problemático (na verdade desenvolvimento modelo) já não se sustenta mais. Enquanto isso, lenta mas seguramente, aumenta a aceleração, na direção oposta, de mais uma oscilação do pêndulo: sem dúvida, em pouco tempo seremos apresentados à outra variante keynesiana do milagre., mesmo que por um período muito mais curto do que os ‘dias felizes’ da expansão do pós-guerra. Nesse sentido, os apologistas do capital continuam a nos lembrar da frase de que verdadeiramente ‘não há alternativa’. Mas esperar pela restauração da saúde do capital a seu estado vigoroso anterior pela ação de qualquer um dos dois, ou realmente dos dois juntos, é – ao lado do fiat de sanidade – outro notável exemplo da perigosa doce ilusão que domina nossa vida socioeconômica na atualidade”.
Em resposta ao discurso neoliberal da ideologia dominante, a narrativa de Margaret Thatcher (1925 — 2013) de que “não há alternativa” (TINA – There Is No Alternative) ao regime do capital, Mészáros postula que,
“embora passe a ser uma dolorosa obviedade o fato de as alternativas do capital se limitarem cada vez mais a flutuações manipuladoras entre variedades de keynesianismo e monetarismo, com movimentos oscilatórios cada vez menos eficazes, que tendem de maneira perigosa ao ‘repouso absoluto’ de uma contínua depressão, a recusa socialista à falta de alternativa deve ser articulada positivamente com objetivos intermediários, cuja realização possa promover avanços estratégicos no sistema a ser substituído, mesmo que apenas parciais num primeiro momento.”
O que Mészáros está a nos dizer tem uma apreciável complexidade dialética. Estamos diante do projeto de uma ofensiva propositiva que se configura, no plano estratégico, como um reformismo revolucionário. E isso porque, a seu juízo, “o que decide o destino das várias forças socialistas na sua confrontação com o capital é o grau de sua capacidade de fazer mudanças tangíveis na vida cotidiana, hoje dominada por manifestações ubíquas das contradições subjacentes”.
Mészáros fala em “combinar, num todo coerente, com implicações socialistas em última análise inevitáveis, uma grande variedade de demandas e estratégias parciais que, em si e por si, não precisam ter em absoluto nada de especificamente socialista”. Ele pondera que essas demandas não atendidas, apesar de não serem propriamente socialistas, consideradas em conjunto, são “partes do complexo global que as reproduz de modo constante como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis”. Por isso, considera que “o que decide a questão é sua condição de realização”. E adverte que “ o que está em jogo não é a enganosa ‘politização’ dessas questões isoladas, […] mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas ‘não socialistas’ largamente automotivadoras no front mais amplo possível”. Daí o pluralismo das formas de luta, consciência e organização engajadas na ação comum de forças diversas que se articulam na prática (ação comum que não implica unificação, mas apreço à diversidade).
Mészáros lembra a crítica de Engels a Wilhelm Liebkncht, principal redator do Programa de Gotha: “Da democracia burguesa ele trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação”. Marx alertou para o alto custo dessa “mania de unificação”. Em seu lugar, recomendou a fidelidade aos princípios socialistas e a negociação de programas de ação concretos, viáveis e flexíveis em torno dos objetivos comuns. No entanto, paradoxalmente, essa “mania de unificação” grassou por longo tempo nas esquerdas, resultando nas manipulações das bases pelas burocracias partidárias e sindicais, e nas concessões de princípio ao capital.
Essas considerações de Mészáros, embora anteriores às jornadas de junho de 2013, a elas se ajustam como uma luva. E não só quanto ao caráter não socialista das bandeiras levantadas nas manifestações de protesto, mas sobretudo quanto ao inequívoco caráter anticapitalista que elas adquirem quando vistas em seu conjunto, exatamente por se contraporem à lógica de valorização do capital, ou seja, o que dá no mesmo, por serem “irracionais” no contexto da gestão global do sistema capitalista. Vale dizer, elas são anticapitalistas acima de tudo porque, no seu todo, só podem ser satisfeitas como parte de uma política anticapitalista consequente. É o ponto de vista da totalidade que nos permite enxergar o anticapitalismo delas.
Mas as jornadas de junho de 2013 ilustram também outro aspecto salientado por Mészáros: o da luta extraparlamentar. Esse movimento de massas, que se alastrou por mais de 400 municípios, levando milhões às ruas, em poucos dias colocou na pauta política questões que as bancadas de esquerda não tiveram condições de levantar com sucesso em anos de atuação parlamentar. E isso apesar da bancada do PSOL e de outros representantes da constelação de forças ‘progressistas’ estarem sempre entre os parlamentares reconhecidamente mais atuantes.
Mészáros sublinha que “a importância da luta política e da crítica radical ao Estado – inclusive a suas ‘instituições democráticas’, em especial o Parlamento – nunca foi tão grande quanto na atual fase histórica de aparente ‘encolhimento dos limites do Estado’”. Para ele, “até a forma mais avançada de Estado do sistema do capital, o Estado liberal-democrático, com sua representação parlamentar e suas garantias democráticas formais e institucionalizadas de ‘justiça e imparcialidade’, bem como suas apregoadas garantias contra o abuso de poder, fracassou em cumprir todas as promessas alegadas que o legitimavam”. Ele adverte que “ a crise da política em todo o mundo, incluindo as democracias parlamentares dos países capitalistas mais avançados – que assume com frequência a forma de uma compreensível amargura e um resignado afastamento da atividade política das massas populares -, é parte integrante do agravamento da crise estrutural do sistema do capital”.
Mas ele vai além e submete a representação da esquerda ao escrutínio de uma crítica radical à ilusão na instituição parlamentar:
“Quando concedido aos representantes da esquerda, o título de ‘grande parlamentar’ é usado pelo sistema conservador […] como uma farsa de auto congratulação e autoelogio. Tais personalidades políticas são tidas como ‘grandes parlamentares’ porque, segundo a lenda, ‘aprenderam a dominar as regras do procedimento parlamentar’ e, com a ajuda delas, ‘continuam a levantar os assuntos desagradáveis’. Entretanto, a verdade de fato desagradável é que os assuntos assim considerados são sempre ignorados ou declarados ‘fora de pauta’ pelo próprio Parlamento. […] Futilidade e marginalização política são os critérios para ser promovido ao alto posto de ‘grande parlamentar’ na esquerda.”
No caso das jornadas de junho de 2013, a crítica radical ao Estado liberal-democrático fez-se na prática das lutas de massa ao testar a tolerância da nossa democracia burguesa à contestação extraparlamentar.
Mészáros adverte:
“na medida em que o capitalista não é apenas ‘a personificação do capital’, mas simultaneamente ‘a personificação do caráter social do trabalho enquanto tal’ [Marx: Manuscritos econômico-filosóficos], o sistema pode alegar que representa o poder de produção vitalmente necessário para a sociedade vis-à-vis aos indivíduos, incorporando os interesses de todos”.
O que implica dizer que “o capital é a força extraparlamentar par excellence, cujo poder de controle sociometabólico não pode ser politicamente constrangido pelo Parlamento”.
Mészáros destaca que
“a questão vital, da qual tudo depende, é que ‘as condições objetivas do trabalho não aparecem subsumidas ao trabalhador’, mas, ao contrário, ‘ele aparece subsumido àquelas’ [Marx: Manuscritos econômico-filosóficos], por isso mesmo nenhuma mudança significativa é viável sem que se volte a essa questão, tanto por meio de políticas capazes de desafiar o poder e os modos de ação extraparlamentares do capital como na esfera da reprodução material”.
E sublinha:
‘a razão pela qual as instituições políticas hoje estabelecidas resistem com sucesso a mudanças significativas para melhor é serem elas próprias parte do problema, e não da solução, pois em sua natureza imanente elas são a personificação das determinações e contradições estruturais subjacentes pelas quais o Estado capitalista moderno – com sua rede ubíqua de componentes burocráticos – foi articulado e estabilizado no curso dos últimos quatrocentos anos.”
O Parlamento é “dominado pelo poder extraparlamentar do capital”. Exatamente por isso não é permeável a uma dinâmica democrática, ainda que minimamente. “O poder extraparlamentar do capital só pode ser enfrentado pela força e pelo modo de ação extraparlamentares do trabalho”.
Excelente contribuição ao debate.