Jogando o Jogo da Oca e chutando o tabuleiro

Araraquara, 13 de abril de 2024

Foi dito que a primeira e talvez a única estampa profana xilográfica foi a folha destinada ao Jogo da Oca. Os antigos estampadores imprimiram profusamente jogos da oca, quando iam por esses mundos vendendo livros, com o saco nas costas, ofereciam um Jogo da Oca àqueles que tinham rejeitado comprar um volume, a fim de compensar a energia perdida.

O Jogo da Oca, Joan Armades (1950)

Folha mais antiga do Jogo da Oca que se conserva, de 1640.

Popular na Grécia clássica como jogo de azar, assim se disseminou pela Europa atravessando o Mediterrâneo. Em sua origem, porém, era um procedimento adivinhatório sobre o futuro, a verdade oculta ou o diagnóstico médico, algo assim como um oráculo: sobre um tabuleiro com as 24 letras do alfabeto grego, com um grão de trigo ou cevada sobre cada letra, soltava-se um frango, que, pela ordem em que comia os grãos, ia “escrevendo” a resposta à pergunta antes formulada. (Transformações semelhantes resultaram no jogo da amarelinha.) Aos poucos, o frango foi substituído por um ganso (a oca). Fazia-se um mosaico no chão, com azulejos, com diferentes “obstáculos” desenhados em cada uma das casas ordenadas em sequência numérica. E substituiu-se também o animal sôfrego, ou preguiçoso, por comer os grãos por um dado. E o tabuleiro foi desenhado ou impresso num pergaminho e, depois, em papel, mantendo os desenhos nas casas. De toda maneira, o tabuleiro continuou sendo chamado de “jardim da oca”, em lembrança dos azulejos fixados antes num jardim, com uma oca no centro. 

Durante o período conhecido na Europa como “idade média”, as vicissitudes apresentadas em cada casa davam ao jogo um caráter francamente militar e bélico, assim como acontecia com o xadrez e com as damas. Quando o desenho da casa representava a morte, era preciso retornar ao início da sequência. Quando caia na figura de um tonel ou de uma copa, supõe-se que o jogador tinha que pagar uma rodada na taberna. Em alguns tabuleiros vemos um jardim no centro, onde se encontra o final da sequência, com árvores ou moedas. É provável que se jogasse por dinheiro, ou, talvez, pelo privilégio de bailar com uma moça, como em alguns jogos.

Em todo caso, o jogo revela uma maneira de ver o mundo, e sua prática a reproduz. A venda de estampas/tabuleiros do Jogo da Oca para aqueles que não queriam comprar livros é também um indício do lugar que ocupam os jogos na vida dos grupos humanos, como reprodutores de uma ideologia. O Jogo da Oca, cujas origens não foram completamente rastreadas, surgiu, sem dúvida, nas civilizações antigas, junto com uma visão de mundo lineal e com possibilidades predeterminadas dentro do tabuleiro. Foi se afirmando, aos poucos, a ideia de progresso associada à competição, a ganhar ou perder dentro de regras aceitas de antemão para jogar, e à guerra.

Vejamos um exemplo, vivido pelo povo Guarani e Kaiowá, com território localizado no que hoje é o estado de Mato Grosso do Sul.

A constituição brasileira promulgada em 1988 estabelece em seu artigo 231 a demarcação de terras indígenas. Parecia que tínhamos avançado muitas casas. Porém, das 725 áreas em processo de demarcação desde então, foram demarcadas apenas cerca de 500. Esses processos demarcatórios vêm se desacelerando ao longo do tempo. Em mais de uma ocasião, uma terra a ponto de ser demarcada fica com sua homologação adiada pela emergência de algum empreendimento extrativista ou de infraestrutura para o extrativismo interessado na área em questão. É preciso, então, passar uma rodada sem jogar os dados. Em várias oportunidades tratou-se de introduzir o marco temporal de presença indígena anterior a 1988 no território. É como se, no Jogo da Oca da demarcação, fosse introduzido um novo e inesperado obstáculo que pode fazer o jogador retroceder à primeira casa no meio do jogo.

As regras estabelecidas não se adequam ao devir da vida. Em 1925 foi criado o posto que viria a ser reserva indígena no município de Dourados, em Mato Grosso do Sul. As reservas são áreas de confinamento, onde os povos não contam com a terra necessária para reproduzir seu modo de vida. Em 3.000ha vivem mais de 15000 indígenas de diferentes povos. Foram destinados para ali os expulsos das terras entregues pelo Estado brasileiro para grandes proprietários. Pretendia-se que os indígenas se transformassem em assalariados rurais ou pequenos camponeses. A população indígena cresceu nesse pequeno espaço sem que se realizasse uma demarcação para restituir seus territórios originais. Hoje, os Guarani e Kaiowá fazem retomadas para recuperar terras para o nhanderekó (modo de vida guarani), avançando sobre as áreas que fazem divisa com a reserva. O crescimento da cidade de Dourados fez da área que circunda a reserva alvo da cobiça do negócio imobiliário, e os proprietários legais dessas terras especulam com elas. As retomadas em torno da reserva resultam espaços de permanente ataque de pistoleiros pagos pelos proprietários, acobertados pelas diferentes instituições policiais. Situações parecidas acontecem em outras reservas do estado de Mato Grosso do Sul. Além das duras condições das retomadas de terras ocupadas pelo agronegócio exportador de soja e carne, e pela cana de açúcar para produzir etanol, estão os acampamentos na beira da estrada.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva comprometeu-se em abril de 2023 a demarcar todas as terras em processo de demarcação até o final de seu mandato, que começou com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, para o qual foi nomeada Sônia Guajajara, liderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e com a incorporação de indígenas como funcionários de Estado em tal ministério e na Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Tudo isso faz pensar que os dados nos foram favoráveis. No entanto, a promessa de reconhecimento das terras indígenas pelo Estado cambaleia na medida em que o governo tenta agradar interesses divergentes.

O presidente Lula acaba de visitar o estado de Mato Grosso do Sul para festejar junto com a JBS, principal rede de frigoríficos, os convênios para a exportação de carne para a China. “[…] Vamos mostrar para o Xi Jinping o povo batendo palma no dia que estamos embarcando a carne, que daqui alguns dias, essa carne que colocamos a mão vai ter muito chinês comendo”. Lula falou isso junto ao governador do estado, Eduardo Riedel, que tinha dirigido a Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul) em 2013, quando a federação organizava leilões de gado para patrocinar a contratação de pistoleiros e atacar indígenas. No mesmo discurso, Lula dirigiu-se ao governador para propor a compra conjunta de terras para “salvar” os indígenas de Dourados. Quer dizer, propõe voltar à casa anterior a 1988, ignorando o que supostamente foi conquistado dentro do marco legal: já não se trata de demarcações como direito constitucional, senão de ações caritativas. O momento em que chuta o tabuleiro coincide com a prioridade dada para a exportação de commodities. A exportação de commodities, portanto, tem prioridade sobre as regras do jogo.

Esse Jogo da Oca não é nosso jogo. Para os povos da abundância, essas regras não podem se antepor às necessidades da vida dos territórios. Mas é a civilização que viola constantemente suas próprias regras para acelerar a acumulação do capital.

Na língua falada pelos Guarani e Kaiowá, a palavra “oka” é usada para designar o pátio que circunda a ogá pysy, a casa de reza, onde são tomadas as decisões. Lugar de encontro e reprodução da vida. Nem guerra, nem competição. Mutualidade, reciprocidade. É esse o jogo da oka que nos interessa.

Oka, frente ao Ogá Pysy (casa de reza).

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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