Lukács: O processo de democratização

Carlos Nelson Coutinho (1943–2012) publicou em 1979 um ensaio que causou enorme reboliço na esquerda brasileira: “A democracia como valor universal”. Dizia nele que sem democracia não há socialismo, mas também que o socialismo é condição para a plena realização da democracia. Tive a oportunidade de entrevistá-lo em 2008 e ele reiterou, no essencial, as ideias expostas no polêmico ensaio, com uma ressalva: estaria melhor colocado falar em democratização em vez de democracia, concedia. Quando li “O processo de democratização” de György Lukács (1885–1971), pude finalmente esclarecer a ressalva de Carlos Nelson. Lukács diz, significativamente, que seu ensaio é sobre a democratização (não sobre a democracia como forma ideal), dado que, “segundo uma abordagem ontológica, trata-se sobretudo de um processo e não de uma situação estática”.

Façamos uma digressão no tempo. Em agosto de 1968, as tropas do Pacto de Varsóvia invadiram a Tchecoslováquia e reprimiram a “Primavera de Praga”. Lukács negou-se, então, a condenar publicamente a intervenção soviética. Tal negativa talvez estivesse vinculada à sua readmissão, pouco antes da invasão, no Partido Comunista da Hungria, após longa exclusão. Mas, em privado, teria comentado que se tratava de uma tragédia para o movimento operário, só comparável à adesão da socialdemocracia à guerra imperialista de 1914.

Lukács escreveria, em fins de 1968, aos 83 anos, “O processo de democratização”, provavelmente sob o impacto dos tanques russos em Praga. Como diria em carta a seu editor, tratava-se de “um amplo ensaio sobre os problemas ontológico-sociais da democratização (em ambos os sistemas)”. Para escrever o ensaio, precisou interromper seu trabalho na “Ontologia do ser social”, obra à qual se dedicou durante anos. Porém, por imposição do partido húngaro, “O processo de democratização” só pode ser publicado em 1985. A obediência de Lukács aos ditames do autoritarismo húngaro possivelmente se devesse à sua inabalável convicção de que “o pior socialismo é melhor que o melhor capitalismo”.

O ensaio sobre a democratização abre-se com as “Observações preliminares de método” e prossegue subdividindo-se em dois grandes capítulos: “A democracia burguesa como falsa alternativa para uma reforma do socialismo” e “A verdadeira alternativa: stalinismo ou democracia”.

O capítulo sobre “A democracia burguesa” está subdividido em três abordagens: “Pluralidade das bases econômicas das democracias”, “As tendências evolutivas necessárias da democratização burguesa” e “A democracia burguesa hoje”.

O capítulo sobre “A verdadeira alternativa” está subdividido em quatro partes: “Premissas teóricas e históricas de uma concreta colocação do problema”, “A vitória de Stalin sobre seus rivais”, “O método de Stalin” e “O XX Congresso e suas consequências”.

Nas “Observações”, Lukács aponta a “monumental redução, no Manifesto Comunista, do desenvolvimento histórico a uma explicitação da luta de classes” e diz que, com base nesse reducionismo, prosperou uma vertente de intérpretes de Marx que se fixaram em “uma posição sociológica abstrata”.

Polemizando contra essa “posição sociológica abstrata”, destacou-se uma corrente de críticos que, segundo Lukács, “afirmam a absoluta ‘unicidade’ de todo fenômeno histórico” e, dessa forma, recusam a legalidade e excluem os conceitos universais.

Lukács adverte que essa contraposição teórica do ser-precisamente-assim à legalidade na história conduz a teorias irracionalistas e, no plano prático, à Realpolitik, favorecendo “tendências manipulatórias de caráter neopositivista”. Não é preciso muito tino para perceber que tanto o reformismo socialdemocrata quanto o stalinismo se aninham em nichos situados no bojo dessas “tendências manipulatórias”. Afinal, como Leandro Konder já observou com muita propriedade, o traço ideológico característico do stalinismo não é um “desvio” de direita ou de esquerda, mas um oportunismo de viés pragmático.

O filósofo húngaro critica ainda “as teorias políticas influenciadas ideologicamente pela ciência natural”, cujas orientações metodológicas ”referendadas por venerandas tradições”, nomeadamente Aristóteles e Rousseau, resultam na concepção da “democracia como forma ideal adequada”.

Para ele, “tais tendências se opõem ao marxismo”, pois o ser-precisamente-assim é “o modo necessário pelo qual se apresenta o jogo contraditório das forças sócio-econômicas que operam em determinado momento no interior de um complexo social situado num estágio específico de seu desenvolvimento histórico”. Desse modo, para a teoria e para a práxis, conhecer a legalidade do ser-precisamente-assim é tão relevante quanto o conhecimento das determinações e legalidades universais. E, para a práxis, que só pode se realizar no aqui e agora concreto de uma situação histórico-social, a compreensão do ser-precisamente-assim é ainda prioritária.

“O 18 Brumário de Luís Bonaparte” fornece, de acordo com Lukács, o modelo metodológico para a análise concreta da situação concreta: “em tal obra, todas as classes e todos os movimentos das classes, todas as reformas do Estado e do governo aparecem sempre no quadro daquele concreto ser-precisamente-assim gerado pela Revolução de 1848 exatamente na França”.

Neste capítulo introdutório de seu ensaio, Lukács insiste em que a democratização deve ser avaliada “de um ponto de vista histórico, como concreta força política ordenadora daquela particular formação econômica sobre cujo terreno ela nasce, opera, torna-se problemática e desaparece”.

A Editora UFRJ publicou em 2008 “O processo de democratização” no volume “Socialismo e democratização: escritos políticos 1956–1971”, junto com outros textos de György Lukács: os ensaios “Meu caminho para Marx”, “A luta entre progresso e reação na cultura contemporânea” e “Para além de Stalin”, e a entrevista “Testamento político”.

Os escritos políticos de Lukács são textos primorosos, de extraordinária erudição. E, embora às vezes se possa dissentir do grande filósofo ou não concordar integralmente com algumas de suas avaliações, problemáticas talvez, ele certamente merece ser lido por todo marxista, pois sua leitura abre perspectivas enriquecedoras às possibilidades de conhecimento proporcionadas pelo método de Marx.

LUKÁCS, György. Socialismo e democratização: escritos políticos 1956–1971. Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Neto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

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