Mais do que nunca precisamos sonhar

Uma velha amiga, dos anos 80, sempre presente, mas que andou sumida, reapareceu. Ouvimos Ponto de Equilíbrio e conversamos. Depois, com a conversa, a música e o noticiário na cabeça, fui me dedicar à tarefa de escrever minha coluna para o Contrapoder.net.

“Será que percebeu que a cada ano que passa, ano após anos, ano após ano,
E a cada hora que passa, a Terra vai esquentando
Eles fazem reuniões, depois divulgam na imprensa, mas não vai adiantar,
Pois, o que eles querem mesmo é lucrar, lucrar, lucrar”1

Chaplin, no meio da barbárie, sonhou. Martin Luther King também. Antes deles, Lenin já lembrava que não basta sonhar. “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles.”2

Mas teriam esses sonhadores, diante das barbáries de suas épocas, se perguntado se ainda seria possível sonhar? E nós, diante do colapso ambiental, ainda podemos sonhar?

A história é imprevisível e, a princípio, enquanto existirmos, poderemos sonhar. A necessidade de sobreviver sempre jogou um papel muito importante na construção dos sonhos. Desafios duríssimos virão, mas os sonhos de superá-los também.

“Crer em nosso sonho”: onde estaríamos se a humanidade não fosse capaz de sonhar? Sonhar e lutar pelos sonhos? E quanto mais coletivo, mais forte o sonho. “Sonho que se sonha junto é realidade” 3, cantou outro sonhador. Sonhos são poderosos, para o bem e para o mal.

“Observar com atenção a vida real”: na nossa época nada é mais importante do que observar o desenrolar do colapso ambiental da sociedade industrial, que, a partir de um ponto de virada incerto, pode provocar o fim da nossa espécie. Já somos os autores da extinção de muitas espécies, continuamos extinguindo-as todos os dias e, mesmo que paremos agora, muitas outras já estão condenadas. Precisamos mais do que nunca sonhar juntos! Sonhar com o direito de sonhar, sonhar com sua condição existencial básica: com a sobrevivência dos sonhadores.

“Confrontar a observação com nosso sonho”: notícias dos últimos dias trazem de volta a amarga sensação de que a realidade transcorre sempre pior do que eu tinha conseguido imaginar no período anterior. 

“CLIMA DO PLANETA INGRESSA EM TERRITÓRIO DESCONHECIDO
Comunidade científica observa perplexa uma sucessão de recordes e extremos sem precedentes na atmosfera e nos oceanos”4

“Secretário-geral da ONU diz que as mudanças climáticas estão fora de controle.
A declaração foi dada justamente na semana em que o planeta bateu vários recordes de calor. Nesta quinta-feira (6), foi o dia mais quente já registrado na terra. A temperatura média global bateu 17,23°C.”5

Diante da crise existencial, no sentido de possibilidade de existir, a sobrevivência é condição para a realização de qualquer sonho.

A realização de todo e qualquer sonho neste momento passa em primeiro lugar por deter os mecanismos que vêm produzindo o colapso ambiental e pela luta para garantir a sobrevivência do máximo de pessoas possível. E quem sabe sobreviver com dignidade. Infelizmente, muitas vidas já foram perdidas. 

O tempo da sociedade industrial chegou ao fim.  A era do consumismo também. Os sacrifícios e desafios do futuro próximo superam qualquer coisa que vivemos no século XX.

A História e a Arqueologia nos ensinam que muitas civilizações desapareceram em razão de mudanças climáticas, algumas por causa de sua forma de se relacionar com a Natureza. Nenhuma delas tinha o poder da sociedade industrial: de encerrar definitivamente a aventura humana na Terra.

“Ciência diz que é preciso contrair escala, mas capital não admite recuo”6

Mais do que nunca precisamos sonhar com o fim do capitalismo. Sonhar juntos e realizar o necessário para podermos continuar a sonhar. Sonhar sem esquecer de confrontar os sonhos com a realidade. Não adianta sonhar com capitalismo verde, com socialismo liberando as forças produtivas, com todo mundo vivendo como classe média ou ainda sonhando com uma tecnologia salvadora que vai resolver milagrosamente todos os problemas. O Dr. Spock também não vai descer de uma nave espacial e nos iluminar.

Vivemos uma crise de modo de produção que só pode ser superada pela superação do modo de produção em crise. A sociedade industrial transformou-se em um morto-vivo. Incapaz de morrer, ameaçará existencialmente a humanidade até o fim. A não ser que lhe decepem a cabeça.

“Realizar escrupulosamente nossas fantasias”: sonhadores de hoje, de amanhã e, tomara, de depois de amanhã, nunca foi tão importante sonhar. Nunca foi tão importante lutar por nossos sonhos. Precisamos que nossos sonhos mostrem o caminho, que os sonhadores se tornem bilhões e que a força dos bilhões destrone definitivamente os bilionários.

A Natureza, soberana, declarou: Mudem! Mudem profundamente! Mudem rapidamente! Ou morram!

Terremotos, maremotos, tsunamis, vulcão em erupção.
Calor, muito calor.
Muita poluição, muita poluição.7

Referências

  1. “Calor”, Ponto de Equilíbrio.
  2. Atribuído ao Lenin, mas não encontrei a fonte.
  3. “Prelúdio”, Raul Seixas
  4. Ver: https://metsul.com/clima-do-planeta-ingressa-em-territorio-desconhecido/
  5. Ver: https://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2023/07/07/secretario-geral-da-onu-diz-que-as-mudancas-climaticas-estao-fora-de-controle.ghtml
  6. Ver: https://www.holofotenoticias.com.br/eco/mudancas-climaticas-demonstram-inviabilidade-do-capitalismo-ciencia-diz-que-e-preciso-contrair-escala-mas-capital-nao-admite-recuo
  7. “Calor”, Ponto de Equilíbrio.

Renato Cinco

sociólogo, ex-vereador carioca e coordenador do Grupo de Estudo Ecologia e Marxismo.

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