Marxismo e marxistas

  • Marx (1818 – 1883) avisou que não era marxista. Engels (1820 – 1895) advertiu que a concepção de Marx não era uma doutrina, e sim um método. O marxismo foi uma criação de Kautsky (1854 – 1938), que selecionou um corpo teórico extraído da obra de Marx e Engels, e se tornou, como testamenteiro de Engels em substituição a Bernstein (1850—1932), guardião da ortodoxia.
  • Lênin (1870- 1924) postulou, então, que o marxismo é a análise concreta da situação concreta. Acertou em cheio e, secundado por Trotsky (1879 – 1940), liderou a primeira revolução socialista vitoriosa. Mas boa parte da obra de Marx ainda não fora publicada na época de Lênin (a Ideologia Alemã, por exemplo, só foi publicada em 1933).
  • Num ensaio denso, intitulado a Revolução Russa – e que, em vida, ela não se dispôs a publicar -, Rosa Luxemburg (1871-1919) emite opiniões duras sobre certas opções e algumas das concepções de Lenin e de Trotski na condução do processo revolucionário dos bolcheviques. A certa altura do texto, a revolucionária polaco-alemã expressa-se com todas as letras: “Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente”.
  • Em seguida, com a morte de Lenin, travou-se uma disputa acirrada pelo seu espólio político-ideológico, na qual plasmaram-se dois marxismo-leninismos inconciliáveis: o estalinista (oficial) e o trotskista (proscrito). Assim, no movimento comunista internacional, surgiu o marxismo-leninismo como uma invenção de Stalin (1878 – 1953) e da sua Academia de Ciências, e consistiu em formatar uma doutrina a partir da interpretação de obras de Marx, Engels e Lênin.
  • Gramsci (1891 – 1937), que, como Lênin, tampouco leu toda a obra de Marx (os Grundrisse só foram publicados em 1941), deu uma contribuição fundamental ao que se convencionou chamar de marxismo ocidental ou dialético, surgido a partir das obras “malditas” História e consciência de classe (1923) de Georg Lukács (1895 – 1971) – para quem a ortodoxia marxista se atém às questões  metodológicas – e Marxismo e filosofia (1923) de Karl Korsch (1886-1961), em contraposição ao marxismo soviético oficial ou escolástico, sem prejuízo da significativa contribuição dos marxistas soviéticos não oficiais ou heterodoxos como Vigotsky (1896 – 1934) e Bakhtin (1895 – 1975), entre outros.
  • No pensamento inspirado em Marx, vale registrar ainda  Walter Benjamin (1892-1940), Herbert Marcuse (1898-1979), Theodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), expoentes da escola de Frankfurt, os quais desenvolveram variantes heterodoxas do marxismo conhecidas como pensamento crítico.
  • Mas o marxismo é uma vertente do pensamento iminentemente voltada para a prática política.  Isso nos obrigar a considerar duas revoluções que repercutiram grandemente e fundaram duas correntes do movimento comunista internacional: a Revolução Chinesa (1949), lidera por Mao Tsé-Tung (1893-1976), e a Revolução Cubana (1959), liderada pelos guerrilheiros Fidel Castro (1926-2016) e Che Guevara (1928-1967).
  • Mao  se notabilizou pela vitória revolucionária de 1949, realizando o cerco da cidade pelo campo, mas também pela Revolução Cultural chinesa, processo que liderou de 1966 a 1976. Seus seguidores constituíram o maoísmo, corrente dissidente do movimento comunista internacional.
  • Com Fidel e o Che, os comunistas cubanos também constituíram uma corrente internacional, com grande influência no Terceiro Mundo e, em especial, na América Latina.

Comunistas

  • Este é o sentido que Marx atribuiu ao termo no Manifesto do Partido Comunista (1848):

“Os comunistas não formam um partido distinto, oposto aos outros partidos operários. 
“Não têm nenhum interesse que não sejam os interesses do conjunto do proletariado.
“Não proclamam princípios especiais sobre os quais queiram modelar o movimento operário.
“Os comunistas só se distinguem dos outros partidos operários em dois pontos: 1. Nas diferentes lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem valer os interesses comuns a todo o proletariado, independentemente da nacionalidade; 2. Nas diferentes fases por que passa a luta entre proletários e burgueses, representam sempre os interesses do movimento no seu conjunto.
“Praticamente, os comunistas são, pois, o setor mais resoluto dos partidos operários de todos os países, têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma clara compreensão das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário.”

  • Essa perspectiva é essencial, sobretudo hoje em dia, quando se cristalizou uma diversidade de tradições políticas e ideológicas que alimentam rivalidades na esquerda mundial, fruto de experiências históricas muito diversificadas e, por vezes, traumáticas, que deixaram marcas no movimento operário e popular.  Isso implica uma concepção pluralista de organização.
  • A ideia de uma textura organizacional pluralista contrasta, sem dúvida, com a concepção leninista do  partido de novo tipo.  Mas que partido era aquele? Ele foi pensado como instrumento para a realização de qual tarefa política? Aquele era um partido para a insurreição. E foi eficaz no que se propunha. Era um partido talhado para a luta política nas condições históricas do que Gramsci chamou de “Oriente”, nas quais o Estado era tudo e a “sociedade civil” gelatinosa, o que permitia que a luta política fosse conduzida como uma “guerra de movimento”. Lá, o Estado era fundamentalmente um aparelho repressivo em respaldo a um comitê gestor dos negócios comuns às classes dominantes A tomada do poder burocrático-militar de Estado se colocava como objetivo central. O requisito era a presteza de agrupar forças no momento e no ponto decisivos. Em contrapartida, dizia Gramsci, no “Ocidente”, só a “guerra de posição” é viável. Porque aí o Estado é “sociedade política + sociedade civil”, “coerção + consentimento”. Tem-se uma formação social solidamente articulada pela ideologia. Em consequência, os aparelhos ideológicos de Estado assumem uma importância estratégica. O poder de Estado se legitima em uma zona de hegemonia sócio-política que abarca toda (ou quase toda) a sociedade. É preciso, nessas condições, ter um partido capaz de disputar a hegemonia na sociedade. E então já não se postula um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, porque isso já não teria eficácia nas condições da democracia política.
  • Nessa nova situação, ganha o primeiro plano a necessidade de um partido de massas, articulado por quadros intermediários, capaz de realizar tarefas de convencimento. Um partido necessariamente de massas porque a capilaridade, a disseminação é condição indispensável para se fazer o trabalho de convencimento em toda a extensão da sociedade. O requisito é a capacidade de argumentação, a perseverança para persuadir e a tolerância com a diferença. Nesse partido, o centralismo democrático não tem mais vigência. É um anacronismo. A unidade desse partido não se faz pela subordinação imposta disciplinarmente pela maioria à minoria, mas pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política.
  • Mas, se, por um lado, o movimento anticapitalista se complexificou com uma pluralidade de correntes, por outro lado, ao mesmo tempo que a democracia promete muito mais do que o capitalismo pode conceder, foi-se configurando a crise da política com o consequente esvaziamento da democracia representativa.  Nesse contexto, a rejeição aos partidos só poderá ser superada com um choque de democracia no interior da esquerda, de modo a retomar o espaço partidário para o exercício da livre cidadania do homem comum e, do mesmo modo, o espaço sindical e os outros sujeitos coletivos.

A esquerda brasileira

  • A esquerda brasileira expressou-se através do anarcossindicalismo nas origens do movimento operário em nosso país.  Podemos situar essa esquerda anarcossindicalista a partir do início do século XX, com a chegada dos imigrantes europeus.  O anarcossindicalismo foi a principal base de reivindicações trabalhistas e de grandes greves como a de 1917.  Podemos identificar o declínio do anarcossindicalismo no Brasil com a fundação do Partido Comunista (PCB) em 1922.  De 1922 a 1964, tem-se um período de construção da hegemonia do PCB na esquerda brasileira.  Essa hegemonia é posta em xeque pelo golpe de 64.  Abre-se, então, um período de dispersão, com o surgimento de organizações político-militares empenhadas na luta armada contra a ditadura.  A esquerda armada foi dizimada pela repressão.  Mas, com o desgaste da ditadura, surge a abertura político do regime militar.  Nesse contexto, produz-se a articulação do Partido dos Trabalhadores, que se organiza como nova força hegemônica na esquerda brasileira.  Não demorou muito, entretanto, para o PT se esgotar como instrumento de transformação social.  Com a eleição de Lula em 2002 e a Carta aos Brasileiros, o destino do PT é uma teia tramada no jogo dos atores políticos: as concessões e as alianças que se fazem ditam o espaço do que é permitido e do que não é tolerado; a opção pelo pragmatismo obriga à assimilação dos valores dominantes em detrimento da radicalidade dos princípios; o trânsito da contestação à integração é um deslocamento que submete o transeunte à lógica política e econômica que é o fundamento mesmo da miséria moral e social brasileira. Não foi por acaso que o PSOL foi expelido do PT.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Um comentário sobre “Marxismo e marxistas

  • 6 de abril de 2020 at 3:50 pm
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    Granja,
    Bom trabalho…
    “O homem é produto das circunstâncias” (Gasset&Garret) sintetiza o movimento da história um dos fundamentos do marxismo e da própria ciência, em que se insere o próprio marxismo. Pois bem…
    Nossa realidade ou circunstância se mostra numa tal complexidade que ultrapassa análises com base em teorias clássicas, a tal ponto que antevejo a necessidade de um novo renascimento, para qual precisaremos de um Comênius que formule um ponto de partida que utilize o instrumental tecnológico hoje disponível auxiliar ao repensar de revisão e atualização histórica à realidade e forneça elementos à práxis revolucionária.
    O marxismo apontou e acertou num momento das lutas de classe, a qual vejo se desenrolando. No entanto, não mostrou, e nem poderia mostrar, a paisagem, as circunstâncias da luta de classes numa escala global do séc. XXI.
    Com esta concepção, penso chegado o momento que os estudiosos marxistas devam se debruçarem urgentemente, pois este fenômeno sociológica está ocorrendo disperso, ou seja, sem diretrizes, podendo dar vantagem ao retrocesso histórico que chamamos de barbárie.
    abs

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