México: Um novo papel para as forças armadas?

As transformações no papel das forças armadas mexicanas, propiciadas pelo governo de Andrés Manuel López Obrador, podem ser olhadas como ensaio de um novo padrão de dominação para a América Latina, mais de acordo com o atual modelo de acumulação, baseado em cadeias de alcance planetário. O exército mexicano será responsável pela construção da infraestrutura de logística, conectividade, considerada de “segurança nacional“, e operará como empresa que poderá não apenas construir, mas também explorar ferrovias, aeroportos etc1. Assim, além de contar com a parcela de orçamento nacional a ele destinado, poderá obter recursos próprios dessa atividade econômica. Blindando militarmente tais atividades perante a resistência de comunidades afetadas e ambientalistas, garantirá o fluxo de valor por meio das cadeias de acumulação. Mas, ao tratar essas atividades econômicas como questão de segurança nacional, a instituição não estará completamente submetida ao controle da sociedade, nem sequer pela via das instituições formalmente republicanas.

Se as formas de democracia representativa vêm sendo cada vez mais uma casca esvaziada, na qual nem mesmo as classes dirigentes vêm dirimindo seus pleitos, as mudanças que se insinuam no papel das instituições militares são um indício revelador de sua obsolescência. As decisões sobre o que interessa à dinâmica do capital vêm sendo tomadas em outro lugar. Ao mesmo tempo, a aceleração da expansão espoliadora precisa da mão legal do Estado, com seus instrumentos legais e coercitivos, e, também, de sua mão ilegal, de milícias, paramilitares, parapoliciais e organizações delituosas com uma atuação cada vez mais diversificada. Essa forma compósita revela-se contingente, operando na transição para um outro modelo. E o crescente poder outorgado ao exército mexicano é indício do que pode se perfilar no continente.

O financiamento das forças armadas por meio das atividades econômicas extrativas já acontece no Chile desde 1976, quando o então presidente Augusto Pinochet determinou que 10% dos lucros da estatal do cobre, a Codelco, estariam destinados às forças armadas, com um piso mínimo de 90 milhões de dólares anuais2. Atualmente, no Ngulumapu (território mapuche ocupado pelo Estado chileno) há participação direta da marinha de guerra em negócios com as empresas da cadeia da pasta de celulose, como é o caso das licitações para cultivo de espécies exóticas (pinho e eucalipto) em áreas pertencentes a essa instituição3.

Em 2017, o presidente de Venezuela Nicolás Maduro criou a Zona Econômica Militar no Arco do Orinoco, que faculta à Fuerza Armada Nacional Bolivariana proteger a região e comercializar o minério4. Formou-se, inclusive, a Compañía Minera Militar Anónima, denominada CAMIMPEG.

No Brasil, a integração da Amazônia às cadeias de acumulação não aconteceu nem na primeira fase da invasão do continente, iniciada em 1492, nem na segunda, nas últimas décadas do século XIX, se não levarmos em conta o breve ciclo da extração de borracha, de 1880 a 1910. A integração intensa do território inaugura-se com a ditadura iniciada em 19645. As forças armadas brasileiras mapearam e abriram o território à exploração intensa, seja agropecuária seja de mineração. A transição para o governo civil, na década de 1980, tinha como cláusula tácita (e pétrea) a permanência da presença militar em toda a região. Durante os quatro anos do governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, o controle militar sobre a Amazônia aumentou, organizando e garantindo a atividade extrativa, tanto a legal quanto a ilegal. Militares aposentados, associados com fundos de investimento de diferentes procedências, exploram minério na região6. Provavelmente, a continuidade desse controle militar seja um dos principais acordos de governabilidade que pretendem selar com o coordenador da transição e vice-presidente eleito no domingo passado, 31 de outubro, Geraldo Alckmin.

Esses exemplos de Chile, Venezuela e Brasil são apenas alguns indícios de que o que se perfila em México talvez não seja uma singularidade do país “tão longe de deus e tão próximo dos Estados Unidos”, como já disse o escritor Juan Rulfo. Ainda que o México esteja mais exposto às demandas estadunidenses por insumos, em especial aqueles que servem para a indústria 4.07, talvez estejamos diante de uma tendência que devemos considerar para preparar nossa resistência. Como vemos, tal modalidade, que inclui o autofinanciamento das instituições militares, blinda atividades vinculadas à exportação de matérias-primas, ante governos de diferentes cores que, porventura, venham a se revezar e possam, eventualmente, provocar “distúrbios” na continuidade do fluxo de exportações. Ainda que essas exportações não sejam em absoluto incompatíveis com as propostas neodesenvolvimentistas, que combinam o consenso das commodities com políticas de alívio à pobreza gerada pela própria matriz exportadora de matérias-primas. E mais, a extração de riquezas para exportação é justificada com o argumento de que é o superávit de exportações que permite reunir recursos para as políticas sociais dirigidas aos mais pobres. A participação direta das instituições militares – que possuem o monopólio legal da violência – nas atividades econômicas, seja de logística de exportação, seja de extração propriamente dita, garante de maneira mais eficiente a espoliação. Diante dessa nova modalidade em desenvolvimento, os territórios precisam se organizar com previsão e astúcia.

Referências

  1.  Ver: <https://www.forbes.com.mx/sedena-pide-un-presupuesto-de-4-mil-748-mdp-para-sus-empresas/> e<https://www.forbes.com.mx/politica-entrega-obras-de-infraestructura-al-ejercito-es-para-evitar-su-privatizacion-amlo/>
  2. Segundo o decreto 1.530/1976.
  3. Informação de membro da Asamblea de Defensa del Valle de Elki.
  4. Ver: decreto 2231/fevereiro de 2018 <https://efectococuyo.com/economia/fanb-firme-con-la-logistica-de-seguridad-en-el-arcominero/
  5.  Ver: <https://contrahegemoniaweb.com.ar/2022/10/14/la-soledad-indigena-en-el-mundo-infierno-de-la-amazonia-a-solidao-indigena-no-mundo-inferno-da-amazonia/>
  6. Ver, novamente: <https://contrahegemoniaweb.com.ar/2022/10/14/la-soledad-indigena-en-el-mundo-infierno-de-la-amazonia-a-solidao-indigena-no-mundo-inferno-da-amazonia/>
  7. Ver: <https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2022/10/Biden-Harris-Administrations-National-Security-Strategy-10.2022.pdf>

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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