Mundo do Trabalho Associado e Educação para além do capital no Uruguai

O Uruguai é um dos países mais fortes da América Latina no campo do trabalho associado e da educação para além do capital. Pequeno, pobre e complexo, de economia dependente, situado na ponta leste do continente americano, possui cerca de 3 milhões e meio de habitantes.

Como todos os países da América Latina, há ali pobres, trabalhadores informais, favelas, transporte precário, mas nada que se pareça a proporção da miséria e desigualdade social de países como Brasil, México, Colômbia e Argentina verdadeiras máquinas de moer gente. Ali também teve uma sanguinolenta ditadura, que foi retratada recentemente no filme “Uma noite de 12 anos”.

É provável que seja no Uruguai onde se deu levou a cabo com mais força a separação  Igreja e Estado. Foi ali também que os princípios republicanos ganharam força. A educação laica, gratuita e de qualidade, para a classe trabalhadora faz parte da vida do povo.  As Universidades privadas praticamente não fazem parte da educação. O Ensino Superior público foi massificado. A educação básica, para os padrões latino-americanos, é de altíssima qualidade. Mais recentemente, direitos a interrupção da gravidez, direito a fumar maconha, casamento homossexual, dentre tantos outros foram conquistados.

É nos anos 1950-60 que se desponta no Uruguai um outro direito, o direito ao trabalho associado. Cooperativas e associações de trabalhadores se multiplicaram pelo país. Destaco aqui a mais importante de todas, a FUCVAM – Federação Uruguaia das Cooperativas de Habitação e Ajuda Mútua. Na América Latina a FUCVAM é certamente uma referência. Conquistaram a lei da propriedade coletiva, certamente um triunfo da classe trabalhadora contra a moradia privada. A FUCVAM construiu casas populares baseadas na propriedade comunal (não há donos das casas), sem exploração do trabalho (não há empreiteiras que constroem casas), construção de casas através de cooperativas de trabalho durante a semana e mutirão nos fins de semana. A FUCVAM se propõe não só a construir casas e edifícios sem exploração do trabalho como também constrói valores anticapitalistas como a solidariedade, o trabalho coletivo, a vida coletiva e a luta por uma outra sociedade. Mas há também um limite que a FUCVAM isoladamente não consegue “resolver”. Na ausência de transformações mais amplas e radicais no sentido do trabalho na sociedade uruguaia, a superação do trabalho explorado bem como a criação de cooperativas habitacionais tende a ser anulada pela sociedade uruguaia.

A Frente Ampla deu um impulso a criação de cooperativas e associações através do INAES, sem obviamente ter um projeto de poder que contestasse as relações capital-trabalho. No Brasil tivemos a Secretaria Nacional de Economia Solidária, comandada por Paul Singer. Em outros países os arranjos foram muito parecidos, criam-se pedras protossocialistas em colares pró capital financeiro. Todas essas políticas na América Latina se deram dentro de um contexto mais amplo de tentativas de fazer reformas no capitalismo. Muitos chamaram essa estratégia de democrático-popular ou simplesmente melhoristas.

No Uruguai, foram criadas inúmeras cooperativas sociais, em geral para trabalhadoras e trabalhadores mais vulneráveis. Elas foram criadas através de “compras” públicas de serviços demandados pelo Estado. Ao invés de licitar serviços de limpeza, manutenção, etc. de uma empresa capitalista qualquer, o Estado, nos governos da Frente Ampla, contrataram as cooperativas. Pela lei, as cooperativas sociais não podem ter lucro e a remuneração deve ser a fixada pelo Estado para a categoria. Por um lado as cooperativas sociais criaram novas oportunidades para parcelas da classe trabalhadora que viviam no subemprego.  Na falta delas, seriam trabalhadores terceirizados numa pequena empresa capitalista qualquer. Por outro lado,  academia uruguaia desconfia se houve realmente um avanço em termos de formação política da classe. Em geral trabalhadoras e trabalhadores criaram essas cooperativas mais pelo desespero econômico do que pelo amor ao trabalho associado. Ademais, o trabalho de formação política em geral foi comandado por ONGs e raramente cooperativas de educadores para o cooperativismo e associativismo com um viés mais crítico ou pelos setores de esquerda das universidades públicas.

No campo da educação para além do capital, destacaria aqui a “conversão” de ONGs educacionais em cooperativas educacionais. Nos anos 1990 e início dos anos 2000, os presidentes uruguaios colocaram a educação primária nas mãos de ONGs, na perspectiva neoliberal de entregar para a pequena burguesia serviços outrora estatais. A Frente Ampla suspendeu a contratação de ONGs e passou a contratar cooperativas de educadores, financiadas pelo Estado. Até onde percebi, a precarização e flexibilização do trabalho docente é praticamente anulada ou minimizada nestas cooperativas.  Mas isso não significa que nas cooperativas educacionais estejam presentes professores necessariamente revolucionários, que estão se contrapondo a educação estatal para a dominação e forjando a educação para além do capital. Elas até existem, mas são poucas.

O mundo do trabalho, em especial o mundo do trabalho associado no Uruguai não pode ser analisado sem levar em consideração as agências formativas. Destacaria aqui a Unidade de Estudos Cooperativos (UEC-Universidade da República), a Escola Nacional de Formação (Enforma-FUCVAM), a Federação de Cooperativas de Produção Uruguaias (FCPU), e uma enorme quantidade de ONGs que se encarregam da formação cooperativista. Os objetivos e métodos dessas agências formativas diferem radicalmente. Em geral tendem a ser pragmáticos, para ajudar a classe trabalhadora a fazer sua cooperativa produzir, comprar, vender, não se diferenciando muito das ações do tipo SEBRAE. Na outra ponta, destacam-se a Enforma e a UEC, com um projeto mais crítico, que muito provavelmente estão caminhando rumo a educação para além do capital.

Henrique Tahan Novaes

Professor da FFC e do PPGE Unesp, autor de “O fetiche da tecnologia - a experiência das fábricas recuperadas” entre outros títulos, pesquisado da área produção destrutiva, cooperação, autogestão, agroecologia e escolas de agroecologia.

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