Nem tão sólida ou muito democrática

Por Gilson Amaro1

Todos sabemos que golpes de Estado não são simples de ocorrer. Há vários fatores que os tornam possíveis e também há diversos outros elementos que os impossibilitam. Geralmente se debate a questão analisando as possibilidades do golpe, partindo das movimentações das forças que o intentam, e que, em muitos casos, pela debilidade, não será capaz de fazer frente aos fatores que impedem o golpismo. E é justamente na supervalorização dos fatores anti-golpistas principalmente os digamos assim, endógenos, que vemos um misto de ingenuidade e erro de análise no caso brasileiro.

A decisão da cúpula do Exército, deixando impune o general Eduardo Pazuello, é um inegável sinal do avanço golpista de Bolsonaro. Pazuello cometeu uma explícita transgressão disciplinar ao participar de uma manifestação política e deveria ser punido, inclusive com prisão. Mas o que vimos apenas confirma um dado perigoso, ou seja, que de fato o presidente, aparentemente, não blefa quando fala “meu exercito”.

Para afastar a ingenuidade, é preciso admitir o óbvio: não existem “fortes instituições” com vocação “democrática” no Brasil. O genocídio como política de Estado não começou com a pandemia, lembremos que as populações pobres negras e periféricas sofrem sistemático processo de extermínio de forma ininterrupta, e isso não mudou com a CF88. A razão de ser do Estado brasileiro, para as classes dominantes, é manter um sistema de segregação social por meio da violência e do terror aberto, sempre que necessário.

O pouco que existe de direitos e liberdades, formalizados na CF88 e existentes no nosso cotidiano, é fruto de muita luta popular e está sempre sob ataque e desmonte. Já perdemos a previdência, direitos trabalhistas e muitas outras conquistas democráticas fundamentais e não foi necessário um golpe militar para tanto. Destaco ainda que as supostas “forças ou instituições democráticas” não frearam este processo, ao contrário, o patrocinaram e seguem patrocinando.

Portanto, é fato digno de curiosidade constatar o quanto se deposita de confiança em algo que inexiste no Brasil, ou seja: uma suposta solidez institucional democrática, como se o Estado brasileiro existisse para garantir direitos e liberdades, e estivesse historicamente exercendo este papel. Alguns, inclusive na esquerda, até alimentam uma confiança abobada de que as forças armadas seriam uma contra-mola ao golpismo bolsonarista, dado ao seu papel de “instituição permanente de Estado”. Desconhecem que ao longo de toda história republicana brasileira, as forças armadas sempre foram elementos de desestabilização democrática, muito além de 1964.

Ideologicamente as forças armadas já eram hegemonicamente “bolsonaristas” antes mesmo do bolsonarismo existir como fenômeno político de agregação do reacionarismo, até então disperso e difuso em nossa atual quadra histórica. O mesmo vale para as Polícias Militares, que existem para manter pela força e violência o controle de um sistema de segregação social e são indissociáveis de uma política de segurança pública autoritária. O policiamento de cidadãos por militares em uma suposta democracia, já é um sinal claro da farsa de uma sociedade militarizada e antidemocrática como a brasileira. A ditadura passou, a militarização se fortaleceu e a manutenção da militarização vai cobrar seu preço, enquanto deveríamos ter desmilitarizado a polícia, agora vemos militarizarem a educação.

A intervenção militar na política teve seu início mais explícito no período recente com o general Villas Bôas, comandante do exército nos governos Dilma e Temer, ao divulgar um tuíte, (após ter debatido com o Alto-Comando das Forças Armadas conforme descobrimos posteriormente) com evidente ameaça golpista, em caso de decisão favorável ao ex-presidente Lula em 2018. Mesmo que existam militares que não admitem o golpismo e intervencionismo, isto não regra e tampouco condiz com a história recente do Brasil.

Quando Bolsonaro interviu na cúpula das Forças Armadas, logo após trocar o general Fernando Azevedo e Silva por Braga Netto no Ministério da Defesa, foi uma reorganização, afastando os elementos divergentes do alto comando de posições vitais e fortalecendo sua influência. Ele fez este movimento como resposta à fragmentação política da sua base de apoio direitista que ocorreu com a perda de apoiadores lavajatistas e antipetistas e pelo desastre econômico, que seguirá crescendo e derretendo ainda mais sua popularidade. Diante disso, Bolsonaro precisava dobrar a aposta no controle, sobretudo do exército e das PMs. Resta evidente que o processo eleitoral não é viável para sua manutenção no poder, ele sabe que será derrotado nas urnas, mas agora este não é o jogo dele e com os meios e instrumentos da presidência da república ele busca outros caminhos de permanência no poder.

O projeto de manutenção e ampliação do poder “bolsonarista” no Estado brasileiro não poderia deixar de ter típicos traços milicianos. De um lado ele aposta na criação de grupos paramilitares com sua política de liberação das armas, em outra frente ele busca a insubordinação das PMs nos estados e, praticamente toda semana, Bolsonaro visita quartéis para fazer sua pregação para oficiais de baixa patente. Por mais que ele aposte suas fichas na baixa patente das PMs e Exército, ele também precisa avançar na cooptação das cúpulas, o que faz com milhares de cargos no governo. A impunidade de Pazuello mostra que seu jogo está avançando e ao falarmos em golpismo, não estamos nos referindo a um processo igual ao de 1964. Hoje ele tem outras características, fruto da atual realidade nacional e internacional.

Quando se debate o que fazer para combater o genocídio e o golpismo, somente nos restam as ruas e a necessária construção de um movimento extraparlamentar para deposição do presidente e a criação de um processo político de mudanças radicais na economia e sociedade brasileira. O embate eleitoral também é importante, mas o que enfrentamos é um ajuntamento golpista que já anunciou que, caso seja derrotado nas urnas significará que a eleição foi fraudada. A tarefa imediata e prioritária é a mobilização popular para derrubar Bolsonaro e enquadrar o reacionarismo no Brasil.

Outro dado preocupante é que muitos setores, inclusive da esquerda, vislumbram que o processo de transição do comando da república pela via eleitoral em 2022 está dado. E assim, apostam em uma unidade programática com as forças da ordem que constroem projetos eleitorais subordinados ao grande capital em aliança com fisiologismo da nova República, assim, esperam voltar a um passado que julgam progressivo, mas que ao não romper com as estruturas de segregação do Brasil e com os instrumentos permanentes de repressão, são parte do agravamento da crise que nos trouxe a Bolsonaro. Somente um projeto e movimento radical podem construir a saída da crise brasileira que passa pela ruptura com o neoliberalismo

Referências

  1. Gilson Amaro é integrante da coordenação do coletivo Anticapitalistas e membro do diretório estadual do PSOL/SP

Anticapitalistas

Coletivo interno do PSOL

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