
Recentemente foi lançada uma nova versão, dirigida por Robert Eggers, do filme Nosferatu. O filme retoma uma adaptação da história de Drácula, que, anteriormente, ganhou duas versões clássicas, uma dirigida por F. W. Murnau em 1922 e outra por Werner Herzog em 1979. Contudo, embora seja uma história contada e recontada diversas vezes, a nova versão consegue trazer alguns elementos novos, ao mostrar, de forma mais evidente, a representação do vampiro na era do imperialismo.
Em seu livro Signos e estilos da modernidade, o teórico literário italiano Franco Moretti dedica um dos textos a discutir a literatura de horror. No livro, Moretti explora a relação entre a literatura e a modernidade, analisando como a forma literária reflete e influencia a experiência humana na era moderna. Entre os temas discutidos na obra, encontra-se a construção da imagem do monstro, entre os quais o autor destaca Drácula e a criação do Dr. Frankenstein. Nessa discussão, Moretti afirma que a literatura de horror “nasce exatamente do terror de uma sociedade dividida e do desejo de curá-la”.1
Na discussão que realiza sobre a figura do vampiro, Moretti identifica duas diferentes representações desenvolvidas ao longo do século XIX, ambas expressões do contexto em que foram produzidas. Na análise da obra O Vampiro (1819), escrita por John William Polidori, Moretti afirma: “o vampiro de Polidori ainda é um senhorzinho feudal obrigado a viajar pela Europa estrangulando jovens damas com o propósito miserável de sobreviver. O tempo está contra ele, contra os seus desejos conservadores”.2
Moretti mostra o contraste dessa representação com a do vampiro em Drácula, obra de Bram Stoker, publicada em 1897. Segundo Moretti, na obra de Stoker, ao contrário do que se encontra em Polidori, o vampiro “é um empresário racional que investe o seu ouro para expandir o seu domínio: conquistar a cidade de Londres”.3 Moretti, então, aproxima o vampiro de Stoker do capital analisado por Karl Marx, citando uma famosa passagem em que o filósofo alemão afirma que
“[…] o capital tem um único impulso vital, o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor, de absorver, com sua parte constante, que são os meios de produção, a maior quantidade possível de mais-trabalho. O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou do trabalhador. Se este consome seu tempo disponível para si mesmo, ele furta o capitalista”.4
Essa é uma famosa passagem em que Marx compara o vampiro ao capital, diferenciando a forma de exploração capitalista daqueles que existiram anteriormente. Segundo Moretti, Drácula “não gosta de derramar sangue; ele precisa de sangue. Suga somente o necessário e nunca desperdiça uma gota. Sua meta final não é destruir a vida dos outros por um capricho, desperdiçá-la, mas sim usá-la”.5
Na comparação, Moretti chama a atenção para o fato de o vampiro ser um morto-vivo, ou seja, um ser que “consegue viver graças ao sangue que suga dos vivos. A força destes torna-se sua força. Quanto mais forte fica o vampiro, mais fracos ficam os vivos”.6 Nesse ponto, chama a atenção para outra passagem de Marx, em que este afirma: “o capitalista não enriquece como o fazia o entesourador, em proporção ao seu trabalho e não-consumo pessoais, mas quando suga força de trabalho alheia e obriga o trabalhador a renunciar a todos os desfrutes da vida”.7
Em sua análise, Moretti chama a atenção para a dinâmica do capitalismo, que, nas últimas décadas do século XIX, começa a passar por transformações que viriam a se materializar no imperialismo. O vampiro de Stoker é expressão de uma fase ainda de desenvolvimento do capital. Para Moretti, “como o capital, Drácula é impelido a um crescimento contínuo, a uma expansão ilimitada de seu domínio; a acumulação é inerente à sua natureza”.8 Drácula, segundo Moretti, “é um verdadeiro monopolista: solidário e despótico, não tolerará competição. Como o capital monopolista, sua ambição é subjugar os últimos vestígios da época liberal e destruir todas as formas de independência física e moral de suas vítimas”.9
Essa comparação entre Drácula e o capital monopolista está evidente no próprio livro, quando um personagem fala que o vampiro “tem força de vinte homens e astúcia que ultrapassa dos meros mortais, pois é acúmulo de muitos séculos”.10 Em comparação, se Drácula encarna, como o capital, a força de séculos de acúmulo de riquezas, o vampiro de Polidori, um nobre da época feudal, é uma criatura deslocada no capitalismo. Quando tenta se inserir na sociedade burguesa, se mostra como alguém “que se fazia notar muito mais por suas peculiaridades que pela posição social”, contemplando “a alegria à sua volta como se dela não pudesse participar”.11
Moretti, ao analisar a representação do vampiro ao longo do século XIX, mostra a dinâmica do capitalismo no período. Em um primeiro momento, ainda em expansão, o capitalismo se mostra, em certo sentido, progressista, tendo como principais inimigos a serem derrotados os resquícios feudais. Contudo, com o desenvolvimento da economia, o capital se torna monopolista e, além de avançar na exploração do proletariado, precisa se expandir para outras regiões do globo. Na época vivida por Stoker, “a Inglaterra alcançava o ápice do desenvolvimento econômico como líder da Revolução Industrial. O capital espalhava-se por todo o mundo sob a forma imperialista repartindo o globo em possessões sob tutela das grandes potências ocidentais”.12
Drácula, como o capital monopolista, apesar de todos os seus poderes, também possui seus limites, necessitando expandir sua dominação para se manter vivo. Segundo um personagem do livro, Drácula está “tão preso quanto um condenado às galés ou um louco na cela, porque não pode ir aonde quer”.13 O imperialismo é a forma do capital monopolista que busca, ainda que explicitando suas contradições, expandir sua dominação e derrubar as barreiras criadas pelos limites de sua própria natureza.
Este é o ponto em que se pode inserir o personagem Nosferatu e, mais precisamente, o vampiro mostrado recentemente no filme por Eggers. Se Drácula foi construído como expressão do monopólio em seu auge, Nosferatu representa o imperialismo, o que, nos termos propostas por Lenin, significa falar de “capitalismo de transição ou, mais propriamente, de capitalismo agonizante”.14 No imperialismo, segundo Lenin, “estamos diante do estrangulamento por parte dos monopolistas de todos aqueles que não se submetem ao monopólio, ao seu jugo, à sua arbitrariedade”.15
Na época imperialista, os monopólios precisam expandir sua dominação para tentar se manter vivo. O imperialismo, entendido como
“[…] domínio do capital financeiro, é um patamar superior do capitalismo em que essa separação adquire proporções imensas. O predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital denota uma posição dominante do rentismo e da oligarquia financeira”.16
O imperialismo é uma época de destruição. Quando o capitalismo atinge o estágio imperialista, a partir do começo do século XX, “o desenvolvimento – mesmo freado e retardatário – das forças produtivas não é mais compatível com o modo de produção capitalista”, observando-se a tendência de “transformação das forças produtivas em forças destrutivas”.17
Esse processo de transformação se expressa também na representação do vampiro. Em Polidori, no começo do século XIX, o vampiro ainda era um velho senhor feudal. O vampiro do capitalismo do final do século XIX, a exemplo de Drácula, é uma criatura que rejuvenesce e se fortalece sugando a vida de suas vítimas. Em Drácula, um personagem afirma que “o vampiro vive eternamente e não sucumbe à mera passagem do tempo, prospera com sangue de vivos”.18
Nosferatu, como expressão da época do imperialismo, é uma figura envelhecida e agonizante. Sua aparência física foi descrita, em referência ao recente filme, como “uma figura de quase morto-vivo de cor cinzenta pútrida”.19 Outro comentário, que também menciona suas “feições pútridas”, descreve o vampiro do recente filme como “um cadáver em decomposição, bigodudo, pálido e anêmico, com fios de cabelo soltos nas laterais do crânio”.20 Como o capital na época imperialista, Nosferatu mais parece um cadáver agonizante que precisa percorrer o mundo na busca por encontrar formas de se manter com alguma força.
Na época imperialista, o vampiro é uma criatura que acumulou tantas riquezas, espalhadas pelo mundo, que sequer é capaz de conseguir usufruir delas. Esse vampiro, representado como uma figura agonizante cheia de feridas, não quer outra coisa que não saciar sua vontade com o sangue daqueles que domina. Nosferatu, preso nos limites de sua própria natureza, encontra na destruição da vida das vítimas o seu mais poderoso instinto. Por um lado, se diferencia do vampiro de Polidori por ter acumulado riquezas. Por outro, Nosferatu se diferencia do vampiro de Stoker, representado como forte e poderoso, ao se mostrar um ser cansado que busca exaurir sua vítima até levá-la à morte.
O vampiro da época do imperialismo mostra as ações de uma criatura agonizante que representa uma força destrutiva que não é capaz de produzir nada além de morte.
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.
Referências
- MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 105.
- MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 106.
- MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 106.
- MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, Livro I, p. 307.
- MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 113.
- MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 114.
- MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, Livro I, (p. 669).
- MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 114.
- MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 115.
- STOKER, Bram. Drácula. Rio de Janeiro: Darkside, 2018, p. 276.
- POLIDORI, John. O Vampiro. In: O vampiro antes de Drácula. São Paulo: Aleph, 2024, p. 59
- LIMA, Ricardo Kaate. “Nosferatu: quando o Mal é o outro”, Le Monde Diplomatique Brasil, https://diplomatique.org.br/nosferatu-quando-o-mal-e-o-outro/
- STOKER, Bram. Drácula. Rio de Janeiro: Darkside, 2018, p. 279.
- LÊNIN, Vladimir, Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 152.
- LÊNIN, Vladimir, Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 45.
- LÊNIN, Vladimir, Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 81.
- BLOCH, Gerárd. Ciência, luta de classes e revolução. São Paulo: Palavra, 1980, p. 79.
- STOKER, Bram. Drácula. Rio de Janeiro: Darkside, 2018, p. 278.
- VIEIRA, João Estróia. “Nosferatu, de Robert Eggers: um clássico reinventado num novo feito cinematográfico”, Comunidade Cultura e Arte, https://comunidadeculturaearte.com/nosferatu-de-robert-eggers-um-classico-reinventado-num-novo-feito-cinematografico
- VIEIRA, João Estróia. “Nosferatu, de Robert Eggers: um clássico reinventado num novo feito cinematográfico”, Comunidade Cultura e Arte, https://comunidadeculturaearte.com/nosferatu-de-robert-eggers-um-classico-reinventado-num-novo-feito-cinematografico