Ao colocar em questão a própria sobrevivência da ordem global, a guerra na Ucrânia aprofundou a crise econômica mundial. Suas consequências imediatas serão sentidas na forma de menor crescimento econômico, aumento das pressões inflacionárias, maior volatilidade nos mercados financeiros e guinada conservadora na política econômica dos países centrais. Seus efeitos de longo prazo manifestar-se-ão por meio de um processo de desglobalização cujos desdobramentos são imprevisíveis. As economias que apostaram todas as fichas na inserção especializada na divisão internacional do trabalho, como é o caso do Brasil, encontram-se particularmente vulneráveis. O baixo dinamismo, a imensa desigualdade estrutural, os efeitos internos devastadores da pandemia – como insegurança alimentar, desemprego, inflação e queda no nível de renda das famílias – evidenciam os estreitos limites dos ciclos de bonança primário-exportadora impulsionados por ondas especulativas de commodities.
1. Economia Mundial
1. A persistência da pandemia de coronavírus e as consequências comerciais e financeiras da guerra na Ucrânia comprometem irremediavelmente a recuperação da economia mundial. A UNCTAD estima que a economia global crescerá apenas 2,6% em 2022, menos da metade do ano anterior (5,6%).
2. O conflito fez disparar os preços das commodities. Rússia e Ucrânia respondem por 53% da produção mundial de óleo de girassol e sementes e 27% do trigo. A Rússia é o segundo maior exportador de petróleo (5 milhões de barris/dia) e o maior ofertante de produtos químicos.
3. Contrariando a expectativa de que a inflação global seria temporária, a drástica elevação nos preços internacionais de petróleo e alimentos – a maior em décadas – e a desorganização das cadeias de valor apontam para a presença de um processo inflacionário renitente.
3. A inflação dos produtos alimentares verificou-se particularmente elevada. Em março de 2022, o índice de preços dos alimentos da FAO subiu 12,6% em relação a fevereiro. A inflação de alimentos foi liderada pelos preços de vegetais, grãos e carne.
5. Impotentes para enfrentar as causas da inflação – os choques de oferta provocados pela desorganização das cadeias de valor e pela guerra –, as economias centrais dão sinais de que recorrerão a métodos ortodoxos de contenção do mercado interno como freio à elevação dos preços.
6. A combinação de choques de oferta e contração da demanda agregada engendra um cenário de estagno-inflação. Sob uma crescente precarização do trabalho, ampliação do desemprego e redução salarial, os trabalhadores serão os maiores prejudicados.
7. Mesmo antes da guerra na Ucrânia, a OIT já previa que o desemprego global alcançaria 205 milhões de pessoas em 2022, um aumento de 18 milhões em relação ao nível de 2019. Mulheres e jovens são as maiores vítimas da depressão do mercado de trabalho.
8. Os desdobramentos imprevisíveis da guerra e os problemas provocados pelas draconianas sanções contra a Rússia geram um estado de incerteza estrutural que deprime as expectativas de investimento e exacerba a aversão ao risco dos capitais.
9. A combinação de inflação elevada, baixo crescimento e juros reais nas economias centrais potencializa a instabilidade do sistema financeiro internacional. O risco de fuga de capitais para a segurança deixa os países sobre-ndividados sob a ameaça de estrangulamento cambial.
10. Evidentemente, as economias subdesenvolvidas que mais dependem da importação de alimentos e combustíveis e que são mais suscetíveis à fuga de capitais serão as mais penalizadas pela deterioração da conjuntura econômica mundial.
11. Na América Latina e Caribe, o impacto de curto prazo é contraditório: países dependentes da importação de petróleo serão fortemente afetados, enquanto países exportadores de petróleo, cobre, ferro, milho, trigo poderão se beneficiar.
12. O combate à inflação por meio de elevação da taxa de juros nos países centrais deve pressionar ainda mais os juros nos países subdesenvolvidos, aumentando a volatilidade cambial e a vulnerabilidade da região ante à reversão dos fluxos financeiros.
2. Economia brasileira
2.1. Atividade econômica
1. Em 2021, o PIB do Brasil cresceu 4,6%. Esse foi o maior crescimento econômico dos últimos 11 anos. No entanto, quando posto em perspectiva, tal desempenho deve ser relativizado. A expansão da economia em 2021 deve-se em boa medida à baixíssima base de comparação.
2. Em 2020, a economia brasileira tinha sofrido a maior queda do PIB dos últimos 30 anos. A elevação da produção em 2021 apenas compensou a queda do ano anterior, mantendo-se ainda abaixo do nível verificado em 2013.
3. Como a população continuou aumentando, o PIB per capita, que mede a renda que caberia a cada indivíduo se todos recebessem partes iguais, apresentou trajetória ainda pior. Em 2021, o produto per-capita do Brasil ficou abaixo da verificado em 2010.
4. Pela ótica dos setores produtivos, pode-se alimentar a ilusão de que teria havido uma melhora da economia brasileira, uma vez que a indústria, setor mais dinâmico de uma economia, foi a principal impulsionadora desse desempenho, junto com o setor de serviços.
5. O crescimento da indústria, porém, decorreu da grande queda em 2020. A indústria havia caído 3,4% e os serviços 4,3%, em 2020. Na série de longo prazo, a indústria encontra-se num patamar abaixo do verificado em 2008.
6. Para 2022, as perspectivas para a indústria não são boas, o que agravará a crise estrutural desse setor, que já vem há décadas.
7. Impactada pela quebra das cadeias globais de produção, desencadeada pela pandemia e aprofundada pelo conflito entre Rússia e Ucrânia, a indústria será afetada pela escassez e encarecimento dos insumos.
8. Além do mais, inflação global elevada e política monetária dos EUA restritivas colocam no horizonte um cenário de aumento das taxas de juros, o que desestimula os investimentos. A projeção do IPEA é que a indústria tenha queda de 0,8% em 2022.
9. A expectativa de desempenho da agropecuária não é alvissareira. Apesar da tendência de alta dos preços das commodities, o setor provavelmente será prejudicado pela quebra de safra em decorrência das condições climáticas adversas. O IPEA estima um crescimento de 1% em 2022.
10. Impulsionado pela volta das atividades com o arrefecimento da pandemia, o setor de serviços terá um dinamismo um pouco melhor. A perspectiva é de expansão de 1,8%, que não será suficiente para impulsionar o crescimento da economia.
11. Com isso, a projeção atual do mercado (medido pelo Boletim Focus – Banco Central) para 2022 é de crescimento do PIB de apenas 0,5%. Para o IPEA, a expansão será um pouco maior, mas ainda de mísero 1,1%.
12. Com a segunda maior taxa real de juros do mundo, atrás apenas da Rússia, que passa por severas sanções por conta da guerra, a política monetária restritiva agrava a situação, deixando a economia numa camisa de força.
13. A política de Teto de Gastos deixa o país sem raio de manobra para enfrentar a crise econômica e social. A perspectiva é de que a austeridade fiscal seja mantida nos próximos anos, uma vez que a revogação do Teto de Gastos é um debate interditado pela plutocracia.
2.2. Emprego, desigualdades e crise social
1. A COVID e as consequências econômicas do conflito na Ucrânia, potencializadas pelas restrições da política econômica de Bolsonaro, comprometem a geração de empregos e perpetuam o padrão de absorção da população economicamente ativa em atividades de baixa produtividade.
2. Em 2022, a modesta recuperação na taxa de participação da população economicamente ativa no mercado de trabalho veio acompanhada de forte deterioração da qualidade do emprego. O IBGE estima que, das ocupações existentes, 38,3 milhões são informais, e que 6,6 milhões trabalham menos do que desejariam.
3. O desemprego atinge 12 milhões de pessoas, e os trabalhadores subutilizados (desempregados + desalentados + subutilizados) chegam a 27,6 milhões, quase 1/4 de toda a força de trabalho.
4. A recuperação do emprego formal exaltada pelo governo federal resulta basicamente da combinação de três fatores: 1) formalização de empregos informais; 2) novos postos de trabalho de baixo salário; e 3) elevação de contratos intermitentes e parciais.
5. Em 2020, mais de 50% dos trabalhadores formais recebiam até 2 SM.
6. De acordo com o DIEESE, em março, o salário mínimo para cobrir as necessidades estabelecidas pela Constituição de 1988 deveria ser de R$ 6.394,76 (6,36% acima do mês de fevereiro). O salário mínimo necessário equivale a 5,28 vezes o piso nacional, de R$ 1.212,00.
7. A renda média dos trabalhadores observada no 4º trimestre de 2021 foi de R$ 1.378,35, (Observatório das Metrópoles). Trata-se da pior renda média já observada na série histórica iniciada em 2012 – 4,6 vezes inferior ao salário mínimo de referência do DIEESE.
2.3. Inflação e Petrobras
1. A inflação encerrou o ano de 2021 em 10,06%. A expectativa de uma desaceleração da inflação em 2022 parece definitivamente comprometida. Nos três primeiros meses do ano, o IPCA já acumula alta de 3,2%. Nos últimos doze meses essa alta está em 11,3%.
2. A inflação dos primeiros meses de 2022 foi impulsionada pelos preços monitorados, como energia, combustíveis e alimentos, como ocorreu em 2021. A perspectiva é de continuidade do aumento de preços de energia e alimentos.
3. A escalada dos preços de alimentos remonta a 2020, quando a inflação dos alimentos foi de 14,1%, bem superior ao IPCA de 4,5%. Assim, nos últimos dois anos a inflação de alimentos acumulada ultrapassou 20%.
4. A comparação dos preços da cesta básica, medidos pelo DIEESE, com o salário mínimo mostra a dimensão da crise. Em 2018, a média mensal do custo da cesta básica em SP representava 46,6% do salário mínimo. Já em 2021 passou a ser quase 60%.
5. Em 2021, a inflação dos combustíveis foi de quase 50%. A alta foi potencializada pela política de preços da Petrobrás, que transfere automaticamente para os consumidores os aumentos do petróleo no mercado internacional e as desvalorizações da moeda em relação ao dólar.
6. Apesar de parcela significativa dos custos de produção da Petrobrás (cerca de 40%, segundo Eduardo Pinto) não ser influenciada pelo dólar e pelo preço internacional, desde 2016 as variações dos preços internacionais do petróleo são integralmente repassadas aos consumidores.
7. A partir dessa data, a Petrobras deixou definitivamente de funcionar como instrumento de política energética, com o objetivo de garantir a segurança do abastecimento e o acesso energético aos mais vulneráveis, tornando-se uma empresa preocupada única e exclusivamente com o lucro.
8. Prova disso é que, em 2021, a Petrobrás teve recorde de R$106,6 bilhões de lucro. Esse lucro foi majoritariamente (95%) distribuído aos seus acionistas, grande parte deles estrangeiros.
9. A impotência do governo brasileiro para controlar os preços internos de combustíveis foi agravada pela privatização das refinarias da Petrobrás. Atualmente, apenas 75% da capacidade das refinarias é usada, obrigando o país a importar o restante. Apesar da crise energética, a Petrobrás planeja privatizar 7 de suas 12 refinarias.
2.4. Setor elétrico
1. O governo federal anunciou em abril o fim da bandeira de escassez hídrica, que representava um acréscimo de aproximadamente 20% na conta de energia elétrica. Os consumidores não devem sentir grande diferença no bolso, já que ANEEL tem aprovado reajustes tarifários médios de 17%.
2. Esses aumentos só não foram maiores porque o governo autorizou a realização de um novo empréstimo, de R$10,5 bilhões, às custas do consumidor. Em 2020, o governo já havia organizado um empréstimo de R$14,8 bilhões, que ficou conhecido como conta COVID.
3. A novidade é a institucionalização da cobrança de juros na conta de energia elétrica. O empréstimo de R$14,8 bilhões já está sendo cobrado dos consumidores, com juros de CDI+3,79%. O novo empréstimo será pago a partir de 2023 por meio de um encargo na conta de luz.
4. Enquanto os cidadãos arcam com a conta de energia elétrica acrescida de juros, os bancos e as distribuidoras privadas agradecem. Em 2021, os Bancos e as empresas de energia elétrica distribuíram, conjuntamente, mais de R$68 bilhões em dividendos aos seus acionistas.