A aceleração da inflação e a perda de dinamismo da economia mundial são sintomas inequívocos do agravamento da crise que abala o funcionamento da ordem global. As consequências econômicas da guerra deprimiram a taxa de lucro e desorganizaram o sistema produtivo mundial, colocando em perspectiva um período de grande instabilidade econômica. A decisão das autoridades econômicas dos países centrais de enfrentar a situação dobrando as apostas no receituário neoliberal reforçará as tendências recessivas, intensificará a instabilidade financeira e aprofundará ainda mais o caráter regressivo do capitalismo contemporâneo. As economias subdesenvolvidas, sobretudo as mais dependentes de importação e capital estrangeiro, serão duramente atingidas pelo baixo crescimento do comércio internacional e pelo movimento de fuga de capitais para a segurança. O fantasma da dívida externa voltará a rondar as economias latino-americanas. Os trabalhadores em geral e os precarizados em particular, especialmente os que vivem na periferia do sistema, serão as maiores vítimas da nova tempestade que se aproxima. No Brasil, os efeitos da inflexão na conjuntura internacional em 2022 serão temporariamente mascarados pelas medidas de ocasião de transferência de renda a famílias em situação de pobreza, assim como pelos expedientes de curta duração de repressão dos aumentos de preços para camuflar a inflação. A conta chegará dobrada em 2023.
1. Economia Mundial
1. Problemas recorrentes com a manutenção do fluxo de oferta de mercadorias causados pela pandemia de COVID-19 e pela guerra na Ucrânia comprometeram definitivamente a recuperação da economia mundial.
2. À medida que o ano de 2022 avança, os organismos internacionais rebaixam sistematicamente as expectativas de crescimento da economia mundial. O mais provável é que a expansão fique abaixo da média do período posterior à grande crise de 2008.
Estimativas para o crescimento da economia mundial em 2022 – Até dez.-2021/jan.-2022 e de mar.-2022/jun.2022 %
FMI | BANCO MUNDIAL | UNCTAD | OCDE | CEPAL | |||||
4,4 | 3,2 | 4,1 | 2,9 | 3,6 | 2,6 | 4,5 | 3,0 | 4,3 | 3,3 |
3. A Organização Mundial do Comércio, no cenário mais negativo, para o qual parece evoluir a conjuntura, prevê que o comércio internacional crescerá apenas 2,5% em 2022 – quase a metade da previsão anterior. (https://www.wto.org/english/news_e/pres22_e/pr902_e.htm)
4. A escalada da inflação revelou-se renitente. As expectativas sobre a evolução dos preços foram desorganizadas pelo efeito combinado da desorganização das cadeias de valor pela pandemia e pela guerra com a sustentação da demanda agregada por medidas de gasto público anticíclico.
5. Nos Estados Unidos, o índice de preços ao consumidor saltou de 1,4% no final de 2020, para 7,0% em 2021, e para uma taxa anualizada superior a 8% em meados de 2022. Na Zona do Euro, o salto da inflação foi ainda maior, escalando de -0,3% para 7,0%% e 7,4%, respectivamente. (https://www.cepal.org/es/publicaciones/47912-repercusiones-america-latina-caribe-la-guerra-ucrania-como-enfrentar-esta-nueva).
6. O temor do grande capital de que o processo inflacionário desencadeie uma espiral salário-preços, reverberado pela sabedoria convencional, não encontra o mínimo respaldo nas evidências empíricas. Na realidade, tem ocorrido o inverso. Os salários não têm acompanhado a inflação. (ver https://michael-hudson.com/2022/06/the-feds-austerity-program-to-reduce-wages/)
7. A inflação foi puxada pelo aumento nas margens de lucro das grandes corporações, que aproveitaram seu poder de monopólio na produção e comercialização para compensar a queda na taxa de lucro provocada pelo aumento de custos e contração de mercados. (ver https://www.project-syndicate.org/onpoint/us-inflation-supply-side-causes-and-solutions-by-joseph-e-stiglitz-and-dean-baker-2022-07?barrier=accesspaylog; e também https://unctad.org/system/files/official-document/tdr2021-update1_en.pdf, p. 19)
8. A instabilidade cambial e a especulação com commodities, sobretudo energia e alimentos, agravaram o problema. Mesmo antes da eclosão da guerra na Ucrânia, os preços do petróleo tinham aumentado em cerca de 50% em relação a meados de 2021. Unctad FAO, bis
Chart 2: Monthly average prices for crude oil and natural gas, January 2018 – March 2022
US$ per barrel and US$ per million Btu
Source: World Bank, US Energy Information Administration, Federal Reserve Bank of St. Louis.
9. A inflação mundial é condicionada estruturalmente pelas transformações provocadas pela desarticulação da ordem global, que desorganizam as cadeias de valor, a logística de transporte, os custos de energia e alimentos, bem como a dinâmica dos mercados de trabalho.
10. A decisão dos países centrais de combater a inflação com aperto monetário e elevação da taxa de juros não será capaz de restaurar o regime de estabilidade dos últimos quarenta anos, agravará a tendência recessiva e aumentará a instabilidade financeira. (Sobre o assunto, ver: https://www.project-syndicate.org/commentary/stagflationary-debt-crisis-by-nouriel-roubini-2022-06?barrier=accesspaylog)
11. O movimento de fuga de capitais para a segurança, provocado pelo aumento das taxas de juros das economias centrais e pela incerteza estrutural gerada pela desorganização da ordem econômica internacional, coloca em pauta o espectro de crises financeiras sistêmicas. (https://www.bis.org/publ/arpdf/ar2022e.pdf)
12. A elevada vulnerabilidade externa das economias subdesenvolvidas torna-as particularmente susceptíveis de sofrer crise de dívida externa.
13. Dentro dos países ditos “emergentes”, a UNCTAD adverte para a situação particularmente delicada dos chamados “cinco frágeis” a mudanças na política monetária dos Estados Unidos – Brasil, Índia, Indonésia, África do Sul e Turquia. (https://unctad.org/system/files/official-document/tdr2021-update1_en.pdf)
2. Economia brasileira
2.1. Atividade econômica
1. A economia brasileira apresentou um fraco crescimento entre o 1º trimestre de 2021 e o 1º trimestre de 2022 (1,9%). Em perspectiva de longa duração, a economia brasileira encontra-se estagnada.
2. O modesto aumento do consumo das famílias (2%) na mesma comparação trimestral, devido a medidas de estímulo à renda e de atenuação da alta dos combustíveis, contribuiu para que a situação econômica não se tornasse ainda mais grave.
3. A balança comercial registrou um aumento de 8% nas exportações. As elites agrárias agradecem. Beneficiando-se da especialização da economia brasileira, o setor agropecuário obteve um aumento de 63,1% de suas exportações, devido, sobretudo, ao aumento dos preços internacionais.
4. A produção brasileira cresceu sob a liderança dos serviços. O setor cresceu 3,7% na comparação trimestral, com destaque para os segmentos: outras atividades de serviços (12,6%), transporte e armazenagem (9,4%) e informação e comunicação (5,5%).
5. A fragilidade do dinamismo econômico fica ainda mais evidente quando se constata o baixo desempenho do setor industrial. Tanto a indústria de transformação quanto os setores industriais em geral encontram-se estagnados. Trata-se de uma crise estrutural de décadas.
6. Os efeitos do aperto monetário sobre a demanda e o menor dinamismo do crescimento mundial devem afetar negativamente a economia no próximo semestre. O impacto negativo deverá ser mitigado pelas medidas temporárias de estímulo à renda e de alívio da alta dos combustíveis.
2.2. Inflação
1. O IPCA de junho apresentou um aumento de 0,67%, 0,20 ponto acima do registrado em maio. No ano, o IPCA acumula alta de 5,49% e, nos últimos 12 meses, de 11,89%, acima dos 11,73% observados nos 12 meses imediatamente anteriores.
2. Com exceção dos preços administrados, todas as demais categorias aceleraram suas taxas de inflação em doze meses a partir de maio, segundo o IPEA. A maior contribuição à alta dos preços livres tem sido dos alimentos.
3. O aumento da inflação não pode ser reduzido às explicações de um excesso monetário ou de demanda e não será resolvido promovendo-se recessão econômica com o aperto monetário.
4. Fenômeno de caráter estrutural, a inflação advém da desorganização da produção e quebra da cadeia de suprimentos provocadas pela desarticulação da ordem global. Sua aceleração foi induzida pelo aumento das margens de lucro do grande capital e choques negativos de oferta.
5. As consequências distributivas da inflação, particularmente a pressão exercida sobre o poder aquisitivo dos trabalhadores, são muito sérias. As mais prejudicadas são as famílias com as rendas mais baixas, que absorvem o aumento dos alimentos.
2.3. Emprego, desigualdades e crise social
1. O mercado de trabalho brasileiro segue deprimido. A modesta recuperação da taxa de participação não superou o nível pré-pandemia e, no trimestre fechado em maio, combinou um desemprego na ordem de 10,6 milhões de pessoas.
2. As estimativas do IBGE revelam que, no mesmo período, 25,4 milhões de trabalhadores encontram-se desempregados, desalentados ou trabalhando menos horas do que gostariam. Embora esteja diminuindo, a subutilização corresponde a ⅕ da força de trabalho ampliada.
3. O FMI/WEO1 estimou que o Brasil, com sua taxa de desemprego observada em 2020, estava entre as 10 piores taxas dos ditos países emergentes e em desenvolvimento.
4. Os empregos informais crescem mais que os empregos formais no setor privado e, no trimestre fechado em maio, a informalidade atinge seu maior número desde 2016, 39,1 milhões de pessoas. Estima-se que os trabalhadores informais representem 40% de todos os ocupados da economia.
5. O DIEESE mostrou que 3 de cada 4 trabalhadores que passaram a trabalhar por conta própria na pandemia não tinham CNPJ e não contribuíam com a previdência, em razão tanto das incertezas e baixa remuneração dos negócios, quanto das preocupações com o endividamento da regularização.
6. O acanhado aumento das ocupações formais está associado às tendências estruturais de geração de empregos de baixa qualidade da economia. De 2006 a 2020, mais de 50% dos empregos formais foram abertos por postos de trabalho com até 2 salários-mínimos.
7. Abalado pelas consequências da estagflação e por uma política econômica abertamente recessiva, o mercado de trabalho deve desacelerar seu ritmo de recuperação no segundo semestre em virtude das projeções de um desempenho mais moderado da atividade econômica.
2.4. Salário e custo de vida
1. De acordo com o DIEESE, em junho de 2022, o salário-mínimo para cobrir as necessidades estabelecidas pela Constituição de 1988 deveria ser de R$ 6.527,67. Isso equivale a 5,4 vezes o piso nacional, de R$ 1.212,00.
2. Na cidade de São Paulo, um trabalhador remunerado com um salário-mínimo comprometeu em média, em junho de 2022, 64% de seu rendimento para adquirir os produtos da cesta básica calculada pelo DIEESE.
3. Como resultado da estagnação econômica, da inflação e da depressão do mercado de trabalho, o rendimento médio dos trabalhadores encontra-se em queda livre. Entre 2020 e 2022, houve uma perda de 10% do poder aquisitivo.
4. Em junho de 2022, apenas 37% dos reajustes salariais tiveram ganhos reais, segundo o DIEESE. Apesar de ser um percentual maior se comparado a junho de 2021, a maioria dos reajustes ou é abaixo da inflação (27%) ou igual à inflação (37%).
2.5. ICMS
1. O teto de 17% de ICMS sobre os combustíveis deve impactar muito pouco a inflação, uma vez que as alíquotas sobre o diesel – o principal combustível responsável pela inflação – já eram baixas na maioria dos estados, além de que a medida deve durar somente até o final do ano.
2. A redução do ICMS sobre a gasolina tem se mostrado uma medida eleitoreira para agradar à classe média usuária de transporte individual e que não usa os serviços públicos de educação básica e saúde.
3. Se a medida for mantida, estima-se que a queda de arrecadação anual de estados e municípios será de R$84 bilhões, sendo R$20 bi só da educação, comprometendo ainda mais os já precários ensino básico municipal e ensino médio estadual.
2.6. FGTS
1. Nos últimos 5 anos, os governos têm criado diferentes medidas para utilizar o estoque de cerca de R$500 bi do FGTS para incentivar o consumo em um cenário de altíssimo desemprego, comprometendo o principal fundo nacional de financiamento imobiliário.
2. Apesar de ser uma expectativa de rentabilidade maior para a parcela dos 42 milhões de trabalhadores habilitados, como pela compra de ações na privatização da Eletrobrás, os saques de até mil reais têm possibilitado, para a maioria das pessoas, apenas o pagamento de contas atrasadas.
3. Mais uma vez, ao invés de taxar banqueiros e os mais ricos, o governo sangra a classe trabalhadora, compromete o financiamento imobiliário e deixa os trabalhadores sem fundo de reserva para enfrentar um futuro incerto.
Referências
- International Monetary Fund (FMI), World Economic Outlook Database, publicado em abril de 2022. A maioria dos dados dos países selecionados são de publicações nacionais entre os anos de 2020 e 2021. Dos 156 países ditos emergentes e em desenvolvimento, 62 detinham informações estatísticas disponíveis. Destes 62 países, o Brasil é o 9º pior país. Os cálculos do FMI diferem das estatísticas de desempregados apresentadas nesta nota de conjuntura.