Notas sobre História Econômica, Racismo e Mestiçagem no Brasil

Por Juliano Cesar Ferreira da Silva1, para o Coletivo Clóvis Moura

Ao longo do tempo, parte da historiografia econômica esteve encarregada do estudo de “grandes eventos” ligados a constituição da nossa sociedade. A passagem do feudalismo para o capitalismo, o amadurecimento deste novo modo de produção e as sucessivas crises do capitalismo são alguns de seus objetos centrais. Sobre estes, há variados olhares possíveis para apreender e explicar o decorrer histórico, sendo uma delas, a visão de que a história da nossa sociedade é marcada por rupturas e conflitos entre classes sociais. Como Karl Marx levantou, sendo a história na verdade a história da luta de classes, entender as relações sociais sob o capitalismo é compreender necessariamente relações de dominação e exploração dentro da sociedade. Assim, partindo desta linha de pensamento, como devemos apreender certas relações raciais, de gênero e classe dentro da estrutura do modo de produção? Tal resposta tem sido buscada por uma série de novos pesquisadores cujo as ideias nestes ensaios organizamos sobre o nome de “Economia Antinormativa”.

No que tange minha pesquisa, dentro da História Econômica, meu esforço tem sido de desenvolver que o modo de produção especificamente capitalista, tendo como lógica última a acumulação incessante de capital – a reprodução inexorável do valor que se valoriza –, utiliza de relações de dominação como racismo. Assim, o racismo, visto por essa perspectiva, é compreendido como uma relação que surge, na forma moderna, a partir da base produtiva do capitalismo, tendo a função de manter a reprodução do próprio sistema. É equivalente a dizer que, sendo o modo de produção capitalista um eixo que orienta o tecido social (relações socioeconômicas, cultura, política etc), a presença de relações que colocam grupos de pessoas em posições desfavoráveis como o racismo, não podem ser vistas como simples heranças arcaicas, mas sim, como relações constituintes do próprio sistema. Em resumo, desenvolver pesquisas com esta abordagem – ligação capitalismo e racismo – significa investigar a presença permanente do racismo em nossa atual sociedade. Partindo desta abordagem, comento um breve caso abaixo.

Kabengele Munanga, antropólogo e primeiro negro docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, nas mais recentes edições de “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, comentou algumas críticas recebidas por seu posicionamento referente ao sistema de cotas e a problemática do “mestiço” no Brasil. As críticas que recebeu versam no suposto ponto de que defender o sistema de cotas implicaria suprimir a condição do mestiço e levar o Brasil a uma situação bipolar, uma divisão entre “brancos” e “negros”. Sob esta alegação, sobraria ao professor Munanga, por defender esse tipo de política afirmativa, até mesmo a alcunha de “racialista”, pois estaria se valendo de práticas que no passado eram usadas por correntes pseudocientíficas para hierarquizar raças. Assim, a então divisão entre “brancos” e “negros” criada pela política de cotas – segue a crítica –, não absorveria a complexidade miscigenada do país em que os mestiços brasileiros não querem ser nem “brancos” ou “pretos”. 

Munanga rebateu tal crítica, apontando que “racialismo” vem do pensamento dito científico do século XIX, que criou, se valendo de teorias biológicas, comparações entre seres humanos cristalizando conceitos de raças inferiores e superiores. Tal prática nada tem a ver com as políticas afirmativas cujo o intuito é fornecer um espaço para ascensão de minorias historicamente lesadas no país, não simplesmente separar a população entre pretos e brancos. Dentro deste ponto, Munanga evidencia a questão do mestiço, posicionamento que o autor toma mas que não é compreendido por muitos no Brasil, a saber nas próprias palavras do autor: “A estratégia defendida é a de que, considerando-se que os mestiços são ao mesmo tempo afrodescendentes e eurodescendentes, estes deveriam se unir aos pretos, de acordo com o princípio  ‘a união faz a força’, para lutar contra o inimigo comum que os vitimiza, o racismo sui generis brasileiro, ancorado no mito da democracia racial.”

Para além da resposta do professor Munanga, é interessante pensar, partindo de críticas como a recebida pelo autor, que até quando há um caminho visando uma “identidade positiva” em torno da luta política contra o racismo, que una os sujeitos políticos (pretos, pardos etc.), há um contraponto argumentativo que acaba por separar estes sujeitos. Há então a busca por evidenciar a mistura racial brasileira, e que mestiços, são mestiços e não são pretos, o que os livraria de opressão racial. Este embate no campo político, e o último contraponto é emblemático, parece surgir de certas variedades de ver o problema do racismo no país. Visões que continuam permeadas pela narrativa construída de que as relações raciais no Brasil de alguma forma foram construídas harmonicamente. 

Como Graziella Silva e Luciana Leão apontam no texto “O Paradoxo da Mistura”, os pontos centrais no debate brasileiro girariam em torno de duas questões fundamentais: i) a definição de quem é negro no Brasil e ii) o peso que a discriminação tem como um fator explicativo para as desigualdades raciais. Tais questões pertinentes ao debate geram turbulentas contradições em torno das narrativas das questões raciais no Brasil, que culminam em críticas como a apresentada acima. Uma crítica ao sistema de cotas que evidencia exclusivamente a presença do mestiço parece enfatizar erroneamente a primeira questão em detrimento da segunda. O ponto principal não está, como o próprio Munanga aponta, em definir a questão em torno de “catalogação de raça”, mas sim em compreender como o racismo condena suas vítimas no todo social brasileiro.

Entretanto, mesmo assim, vem a questão: “Como falar de racismo sem saber quem é negro?” Tal questão só pode ser levantada desta forma se o ângulo para se entender o racismo está completamente focado no sujeito que o sofre, e assim se individualmente não há a consciência do racismo não se pode atestar a presença deste. Esta forma de ver o problema limita a compreensão de que o racismo, como relação de dominação, foi criado ao longo da história e, desse modo, está ligado a diversas esferas da vida, que vão logicamente da subjetividade individual até as estruturas das relações sociais (cultura, política, economia, etc). A ideologia de raça, ou seja, o conjunto de ideias que categorizam pessoas por fatores biológicos como a cor da pele, foi forjada arbitrariamente na medida que as sociedades foram se formando. 

Frente a esta visão da construção do racismo como relação histórica, o campo da História Econômica se apresenta fértil para buscar a compreensão interdisciplinar de que o racismo é parte integrante do nosso sistema econômico atual, ou seja, do capitalismo. As condições socioeconômicas entre pretos e pardos (o que se chama de mestiço) são muito similares justamente porque a situação dessas camadas populares são fruto das mesmas relações de dominação que foram desenvolvidas ao longo da história brasileira. Os séculos de escravidão, as relações patriarcais com a presença de estupro, a marginalização e subalternização de pretos e pardos no mercado de trabalho em um capitalismo nascente são relações que não podem ser ignoradas. A complexidade dos efeitos de relações raciais conflituosas, que trazem consequências sociais paras as vítimas que as sofrem, estão ligadas ao modo como o tecido social (instituições e a socialização das pessoas ao longo do tempo) está estruturado por relações racistas. Como aponta Silvio Almeida, o racismo é um processo histórico e político, e tal processo cria condições propícias para que grupos sejam racialmente identificados de forma sistemática. Não há assim forma de desvencilhar uma análise que trate de relações raciais desiguais sem compreender o racismo como componente da própria sociedade.

Na esteira da compreensão do racismo como relação histórica concreta dentro da formação do sistema capitalista, o autor martiniquenho Frantz Fanon, nos anos 1950 e 1960, já fornecia análises sobre como o racismo está enraizado em várias esferas da sociedade e como essas relações de dominação foram criadas. Para Fanon, o racismo atua em níveis nas diversas esferas da sociedade. Num nível mais geral, o racismo, ou o domínio de um grupo de pessoas por outro calcado na raça, é parte das formas de expansão violenta das relações produtivas do capitalismo fora da Europa. O racismo neste nível é justificativa para o domínio de outros povos, que no caso da história do colonialismo implementado pelas nações europeias, foi pretexto para subjugação militar e invasão de território. Ainda, a imposição violenta do domínio pela força calcada no racismo como justificativa, vai com o tempo estruturalmente reproduzir relações raciais desiguais. Seja por meio das relações de produção, no âmbito socioeconômico, pela etnização da força de trabalho. Seja num âmbito subjetivo na alienação de negros e mestiços em torno de uma “mística de branqueamento”.

Os dois últimos pontos podem ser observados na realidade brasileira. Por aqui, a população economicamente ativa preta e parda ocupa majoritariamente postos do mercado de trabalho sem carteira assinada, de emprego doméstico, trabalhos por conta própria e sem ensino superior completo. Este é um retrato do espaço no mercado de trabalho que é reservado à população negra, é o quadro do processo de etnização que mantém certos grupos raciais em posições subalternas. O segundo ponto, a alienação que o racismo causa em suas vítimas, pode ser visto justamente pela situação dos pardos no país. No ano de 2008, numa publicação do Datafolha, foi possível levantar que historicamente, apesar de pretos e pardos terem situações sociais similares, pardos identificam menos discriminação racial. Sobre este ponto Munanga levanta baseado em Fanon, que sendo o padrão da sociedade o padrão branco, e tendo sido imposta no Brasil uma ideologia que ao longo da história buscou o branqueamento, o racismo cria em suas vítimas uma alienação de sua própria condição de oprimido. Tal condição é bem exemplificada na situação de grande parte da população parda brasileira que se vê muitas vezes numa classificação ambivalente entre brancos ou pretos a depender da situação econômica em que se encontra. No entanto, o ponto fundamental é que o racismo envolve suas vítimas num ideal de branqueamento que não pode ser atingido, já que ele está demarcado pela diferença quanto ao branco. “Mestiço” como um termo utilizado visando críticas como a recebida por Munanga, somente exprimem imprecisão na forma de lidar com a narrativa histórica brasileira e com a forma que se deram as relações raciais no país.

No mais, imprecisões na forma de abordar o problema racial no Brasil e em outros lugares no mundo trazem consequências políticas para os movimentos antirracismo por gerar divisões desnecessárias. A crítica exposta acima é somente uma delas. Como Fanon nos lembra, o intelectual de um povo oprimido deve buscar “escrever para abrir o futuro, convidar à ação e fundar a esperança”. Munanga cumpre bem este papel, assumindo seu ponto: “[…] a ideia que defendo e assumo ideologicamente é a de que o ideal de branqueamento, que muitos negros e mestiços (digo muitos e não todos) acreditavam ser salvador, teria impedido muitos mestiços de se unirem a negros para construir uma identidade política mobilizadora na luta contra as práticas de discriminação racial das quais ambos são vítimas.” 

Por fim, a História Econômica deve servir como um campo capaz de apreender a complexidade das relações de dominação raciais nas mais variadas esferas da vida, no qual o eixo econômico tem impacto decisivo, podendo ser caminho auxiliar na desmistificação dos mecanismos estruturais do racismo. Esse apoio é entender que raça e racismo foram formados historicamente, por processos concretos, e ter consciência de uma narrativa estrutural do problema. Isto é, assim podemos rechaçar o sectarismo disposto pela separação, no campo político, do “mestiço” – ou pardo, mulato, moreno, quaisquer que sejam as denominações – e do preto. E fazemos isso para contestar a ideologia de raça no Brasil e não cairmos justamente no mito da “democracia racial” que se quer combater.

Referências

  1. Graduando em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da UNICAMP

Coletivo Clóvis Moura

Coletivo de pesquisadoras e pesquisadores negros. Sua luta é pela projeção da interlocução negra na academia.

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