Passados dois anos desde o 8 de janeiro, é possível fazer uma avaliação mais precisa sobre o ataque bolsonarista e sua relação com as instituições. Desde os ataques que levaram à depredação de prédios públicos em Brasília, foi possível, por meio das investigações, provar inclusive as intenções golpistas do próprio Jair Bolsonaro, ainda que não tenha conseguido o apoio necessário para essa empreitada.
Essas movimentações da burguesia para deter ações do bolsonarismo, utilizando as instituições do Estado, ainda que recebam o apoio de setores da esquerda institucional, mostra que as classes dominantes estão buscando estabilizar o regime político diante dos impactos da crise econômica que teve início por volta do segundo semestre de 2019. Nesse cenário, se confirma a possibilidade de que a figura de Jair Bolsonaro, como representante da direita, “diante de alguma crise, poderia vir até mesmo a ser abandonada, sendo substituída por outra no médio prazo”.1 O recente processo eleitoral municipal mostrou a tendência de crescimento de setores de centro-direita, consolidando o caminho para uma candidatura construída por esses setores no próximo pleito presidencial.
O governo Bolsonaro foi equivocadamente caracterizado como fascista por setores da esquerda institucional. Marcado por crises permanentes, seu governo foi incapaz de aplicar até mesmo os elementos mais básicos de sua esdrúxula pauta ideológica. O conceito mais correto para caracterizar seu mandato seria o de bonapartista, ou seja, esforço para aparentar um governo acima das disputas de classe ou mesmo das instituições. Contudo, o bonapartismo tentado por Bolsonaro se mostrou bastante frágil, afinal “outras instituições, como o Judiciário e o Congresso Nacional, se mostraram eficientes tanto para amortecer os impactos da polarização de classes como para legitimar os constantes ataques aos direitos dos trabalhadores”.2
Portanto, as próprias instituições burguesas controlaram qualquer ação bolsonarista que pudesse colocar em risco a estabilidade econômica e política. Com isso, diante do dia 8 de janeiro, as instituições se viram diante da necessidade de punir a turba descontrolada financiada e incentivada por empresários e políticos de pouca expressão que queriam manter a qualquer custo um governo Bolsonaro. Como se confirmou pelas investigações, havia de fato a ideia de uma “ruptura institucional”, ainda que sem apoio da cúpula militar ou de setores significativos da burguesia.
Nesses últimos dois anos, se observa que as pretensões de ruptura institucional e a ação da turba descontrolada que depredou os prédios dos três poderes foram o suficiente para unir o conjunto de instituições contra seus agressores. Para burguesias classes dominantes, em seu mandato presidencial, Bolsonaro não passava de um espantalho que se dispunha a cumprir um programa de austeridade defendido pela burguesia, sendo combatido de forma meramente retórica pela esquerda institucional. Esse jogo estaria limitado à disputa no parlamento ou a denúncias na imprensa, sem que partidos como o PT e seus aliados fizessem uma real mobilização na base dos trabalhadores. Portanto, de parte das ações da esquerda, limitada a cumprir o calendário eleitoral, não haveria riscos à democracia burguesa.
Os atos de 8 de janeiro, com incentivo político e apoio logístico de seus apoiadores, mostraram que Bolsonaro poderia ser um incômodo e eventualmente poderia novamente mobilizar sua turba, colocando em risco as instituições. Nos Estados Unidos, Trump havia tentado algo nesse sentido, colocando em risco inclusive a possibilidade de não poder concorrer às eleições presidenciais. O recado que as instituições burguesas procuram deixar foi o de que, por mais que Trump e Bolsonaro estivessem livres para fazer seus discursos extravagantes, não poderiam em hipótese alguma ameaçar a ordem institucional.
No período recente, em outros países, a burguesia mandou recados semelhantes. O caso mais evidente foi na Grécia, em 2020. Depois de cinco anos de julgamento, foram condenados vários dos membros do partido de extrema direita Aurora Dourada por liderarem ou participarem de uma organização, a partir de então, considerada criminosa. A decisão judicial baseou-se em alguns casos, como o do assassinato do rapper e ativista de esquerda Pavlos Fyssas, esfaqueado até a morte na noite de 18 de setembro de 2013. Os réus do julgamento também foram condenados por ataques violentos contra imigrantes e oponentes políticos de esquerda.
O Aurora Dourada chegou a se tornar a terceira maior força política da Grécia, mas, diante de uma nova situação política, a burguesia grega optou por não fazer mais uso dos serviços sujos realizados pelo partido. Isso se assemelha à situação dos Estados Unidos, onde a maior parte da burguesia abandonou Trump e optou pelo Partido Democrata, nas eleições de 2020. Esse tipo de alternativa política mostra força em contextos de polarização e intensas lutas dos trabalhadores, em que a burguesia precisava fazer uso de todos os meios possíveis, seja a cooptação da esquerda reformista, seja a ação de organizações fascistas.
Na Grécia, o Aurora Dourada teve seu crescimento diante da crise do governo do partido reformista Pasok. O Pasok, que durante décadas foi o principal partido de esquerda do país, aplicou, com o apoio ou mesmo em aliança com o partido de direita Nova Democracia, o pacote de austeridade exigido pela União Europeia. Os ataques do governo levaram a um processo de lutas, no qual cresceu o peso político tanto do Syriza e do Partido Comunista Grego, à esquerda, como do Aurora Dourada, à direita.
No Brasil, Bolsonaro cumpriu seus serviços e foi dispensado. Nesse cenário, para a burguesia, ao apostar na ascensão do governo de união nacional encabeçado por Lula, perderam espaço figuras políticas que se postulavam como “demagógicas bonapartistas”, como o caso de Bolsonaro, e o fascismo sequer chegou “a ser uma alternativa vislumbrada pelas classes dominantes”.3 Os seguidores mais alucinados de Bolsonaro insuflaram uma turba descontrolada e colocaram em alerta os defensores da ordem burguesa. Essas instituições precisaram coibir qualquer tentativa de ataque contra sua estabilidade – o que inclui atacar direitos e mobilizações de trabalhadores – e mandar o recado de que, quem não a respeitar, pode ser punido.
Diante dos atos de 8 de janeiro, não se pode deixar de destacar o papel do conjunto das instituições nesse processo, interessadas não nas condições de vida dos trabalhadores ou na garantia de serviços públicos para a população, mas na sua própria defesa. O STF, que há anos assumiu um papel bonapartista, e as próprias Forças Armadas, que veem muitos de seus oficiais cada vez mais afundados em corrupção, são exemplos disso.
O circo midiático montado para denunciar as ações do bolsonaristas não tem outro papel que não o de mandar o recado para qualquer setor da sociedade que queira se insurgir contra as instituições burguesas. Se neste momento são os bolsonaristas, em outro serão os trabalhadores, quando se colocarem em movimento depois de superar as ilusões que ainda possam ter no governo de união nacional encabeçado por Lula.
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.
Referências
- Michel Goulart da Silva. Os riscos da democracia: da “transição lenta e gradual” à “onda conservadora” (Relatório de Pós-Doutorado). Florianópolis: UDESC, 2018, p. 34
- Michel Goulart da Silva. O fascismo do tempo presente no Brasil. Boletim de Conjuntura (BOCA), n. 34, p. 1-5, 2022, p. 3.
- Michel Goulart da Silva. O fascismo do tempo presente no Brasil. Boletim de Conjuntura (BOCA), n. 34, p. 1-5, 2022, p. 3.