O “biennio rosso” de Gramsci (1919 – 1920) para principiantes [II]

  • O jornal socialista L’Ordine Nuovo  (A Nova Ordem) foi criado em abril de 1919, em Turim,  por Antônio Gramsci, Angelo Tasca, Palmiro Togliatti e Umberto Terracini, com a proposta de ser uma “resenha semanal de cultura socialista”. Gramsci seria o editor-chefe do novo jornal. A proposta se encaixava perfeitamente na linha gramsciana de combate cultural e ideológico.
  • Mas já em seu sétimo número, o de 27 de julho de 1919, a orientação original do jornal sofre uma inflexão. A linha “culturalista”, por iniciativa de Gramsci e Togliatti, com o apoio de Terracini, se transforma num sentido voltado para a necessidade de “fazer política”, contra a opinião de Tasca.  “Fazer política” naquelas circunstâncias poderia ser traduzido por “fazer como na Rússia”. 
  • Gramsci chamaria essa mudança na linha editorial do jornal de “golpe de Estado redacional”. Na disputa com Tasca, o sardo o acusaria de entender “por ‘cultura’ não ‘pensar’, mas ‘recordar’; e recordar coisas velhas, desgastadas, o baú do pensamento operário”.
  • A Grande Guerra de 1914-1918 se encerrara, deixando um rastro de destruição e cinco milhões de mortos. A Revolução de 1917 triunfara na Rússia. A Segunda Internacional saíra desprestigiada do conflito mundial devido a suas posições social-patrióticas. O PSI, que se conservara neutro, sai fortalecido da Primeira Guerra e participa da conferência da “esquerda internacionalista” (apoiada por Lênin) na Suíça. Serrati, líder da corrente maximalista (então majoritária no PSI), representa os socialistas italianos nos encontros de articulação da Terceira Internacional.
  • A vitória leninista na Rússia inspirou uma onda de agitações e levantes revolucionários na Europa. O mais importante desses movimentos foi a Revolução Alemã de 1918-1919, que culminou na efêmera República Soviética da Baviera, reprimida pelo governo social-democrata alemão mancomunado ao grupo paramilitar Freikorps,que assassinou Rosa Luxembur e Karl Liebknecht. 
  • Na Hungria, a República Soviética Húngara de 1919 também teve uma existência efêmera (de março a agosto), na qual György Lukács foi Vice-Comissário do Povo para a Cultura e a  Educação Popular.  E houve ainda diversos levantes menores, protestos e greves, que malograram. Nesse cenário europeu, ocorreu o Biênio Vermelho de 1919-1920 na Itália, que deslanchou com a ocupação da fábrica da Fiat em Turim.
  • Em 1919, o ex-socialista Benito Mussolini articulou uma organização paramilitar com ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, o Fascio de combatimento, que, em 1920, transformou-se no Partido Nacional Fascista. Os fascistas disputaram as eleições e tiveram um resultado pífio: elegeram apenas 20 deputados. Para  se ter um termo de comparação, na eleição geral de 1919, o PSI obtivera seu melhor resultado, 32% dos votos, conquistando 156 assentos na Câmara dos Deputados.
  • No artigo Democracia Operária, de 21/06/1919, publicado sem assinatura no número 7 de L’Ordine Nuovo, mas escrito por Gramsci e Togliatti, predica-se sem subterfúgios: “As comissões internas são órgãos de democracia operária que é necessário libertar das limitações impostas pelos empresários e nos quais é preciso infundir vida e energia novas. Hoje, as comissões internas limitam o poder do capitalista na fábrica e desempenham funções de arbitragem e disciplina. Desenvolvidas e enriquecidas, deverão ser amanhã os órgãos do poder proletário que substituirá o capitalista em todas as suas funções úteis de direção e de administração.”
  • Com as comissões de fábrica, tem-se em vista a instauração de uma dualidade de poderes. “O Estado já existe potencialmente nas instituições de vida social características da classe trabalhadora explorada. Articular entre si estas instituições, coordená-las e subordiná-las segundo uma hierarquia de competências  e de poderes, centralizá-las  fortemente significa criar desde já uma verdadeira democracia operária, em eficiente e ativa contraposição ao Estado burguês, preparada desde já para substituir o Estado burguês em todas as suas funções essenciais de gestão e de domínio do patrimônio nacional.”
  • E, mais adiante.  “A fórmula ‘ditadura do proletariado’ deve deixar de ser apenas uma fórmula, uma ocasião para dar vazão à fraseologia revolucionária.  Quem quer o fim deve também querer os meios. A ditadura do proletariado é a instauração de um novo Estado, tipicamente proletário, no qual confluem as experiências institucionais da classe oprimida, no qual a vida social da classe operária e camponesa se torna sistema difundido e fortemente organizado.”
  • Gramsci explica, num artigo intitulado O Programa de L‘Ordine Nuovo’, de agosto de 1920, o que se pretendia. Começa indagando. “Existe na Itália, como instituição da classe operária, algo que se possa comparar ao soviete, que partilhe sua natureza?  Algo que nos autorize a afirmar que o soviete é a forma universal, não um instituto russo, somente russo?  O soviete é a forma através da qual, em todos os lugares onde existem proletários em luta para conquistar a autonomia industrial, o proletário manifesta essa vontade de se emancipar; o soviete é a forma de autogoverno das massas operárias. Existe um germe, uma veleidade, um esboço tímido de governo operário, um germe de soviete na Itália, em Turim?”
  • E responde afirmativamente. “Sim, existe na Itália, em Turim, um germe de governo operário, um germe de soviete; é a Comissão Interna; estudemos essa instituição operária, façamos uma pesquisa, estudemos também a fábrica, não como organização da produção material” –  diz ele – mas “como forma necessária da classe operária, como organismo político, como ‘território nacional’ do autogoverno operário.” Com essa perspectiva, “o problema do desenvolvimento da Comissão Interna se tornou o problema central, a ideia de L’Ordine Nuovo”.
  • As Comissões Internas não eram uma novidade no movimento operário italiano.  Na verdade surgiram em 1906 e, desde então, vinham sendo rechaçadas  pelo empresariado. Somente com o fim da guerra, a Associação dos Industriais as reconheceram numa negociação coletiva com a Federação dos Metalúrgicos em 1919.
  • No pactuado, as Comissões Internas tinham as funções de defesa, no local de trabalho, dos direitos dos trabalhadores, como a participação nos prêmios de produtividade, a fiscalização da segurança e das condições de trabalho, etc.  E seriam eleitas pelos trabalhadores sindicalizados, nos locais de trabalho. Gramsci queria a transformação das Comissões Internas em Conselhos de Fábrica, com novas caraterísticas e atribuições que extrapolariam sua destinação original.
  • Os Conselhos de Fábrica passariam a ser eleitos por todos os trabalhadores, operários, técnicos ou engenheiros, fossem sindicalizados ou não, agrupados por seção. Desse modo, todos poderiam votar e ser votados. O agrupamento por seção e a organização de comitês diretores formados por representantes das seções possibilitariam a expressão do “trabalhador coletivo”.
  • A antiga função de defesa de direitos, agora seria de controle e direção do processo produtivo. Com isso, Gramsci almeja alcançar a transformação do trabalhador assalariado em produtor. Esta distinção entre assalariado e produtor é fundamental no pensamento gramsciano. Ao assalariado corresponderia a forma de organização sindical; ao produtor,  o Conselho de Fábrica.
  • Em um artigo não assinado em L’Ordine Nuovo, de 12 de junho de 1920, intitulado Sindicatos e Conselhos, Gramsci diz que o sindicato é “o tipo de organização proletária específico do período histórico dominada pelo capital”. Nesse sentido, o sindicato “é parte integrante da sociedade capitalista, e tem uma função que é inerente ao regime da propriedade privada”.
  • O Conselho de Fábrica, por sua vez, seria a forma organizativa adequada à superação da subalternidade. “O operário só pode conceber a si mesmo como produtor se se conceber como parte inseparável de todo o sistema de trabalho que se condensa no objeto fabricado; só pode fazê-lo se vivenciar a unidade do processo industrial, que exige a colaboração do operário, manual e qualificado, do empregado da administração, do engenheiro, do diretor técnico.”
  • A proposta gramsciana encontrou eco no movimento operário, sobretudo em Turim.  Em outubro de 1919, mais de 50 mil trabalhadores já estão organizados em Conselhos, em cerca de trinta fábricas. Mas isso provoca a reação não só dos empresários, mas também dos sindicatos  e da direção do PSI. A Federação dos Metalúrgicos acusa Gramsci e seus camaradas de serem “sindicalistas revolucionários”, “anarco-sindicalistas” e de sabotarem o papel e a ação dos sindicatos tradicionais.
  • Serrati considera que a concessão do direito de voto aos trabalhadores não sindicalizados sabota a influência dos sindicatos e do partido no novo organismo operário. E Bordiga considera que a proposta do grupo de L’Ordine Nuovo é “um retorno puro e simples ao gradualismo reformista”. Para Bordiga, “este, chame-se reformismo ou sindicalismo, é definido pelo erro de supor que o proletariado possa se emancipar ganhando terreno nas relações econômicas, enquanto o capitalismo ainda detiver, com o Estado, o poder político.” Bordiga acusa o grupo ordenovista de confundir os conselhos de fábrica, órgãos técnico-econômicos úteis para controlar a produção depois da tomada do poder, com os sovietes, organismos de poder político.
  • A ideia ordenovista da fábrica como “território nacional” é realmente limitada. E é limitada porque a hegemonia da classe operária só pode ser construída num “território nacional” – uma zona de hegemonia sócio-política – que englobe a totalidade das relações sociais. Essa totalidade sobrepassa o espaço fabril, vai além das relações econômicas entre patrões e empregados,  para lá da esfera da produção de bens materiais, incorpora o conjunto das relações sociais de produção e reprodução em escala ampliada, ou seja, inclui as esferas  políticas, culturais e existenciais, vale dizer, uma miríade de instituições – a “sociedade civil” gramsciana – sem as quais as relações de classe não se reproduzem adequadamente na formação social como um todo.  
  • Por outro lado, ao considerar que a função do sindicato “é inerente ao regime da propriedade privada”, a formulação ordenovista  subestima o  papel do sindicato após a revolução. Todavia,  a função do sindicato não se restringe à negociação de melhores condições de venda da força de trabalho sob o regime do capital. Como Lênin deixou claro em 1921 na sua célebre polêmica com Trotsky, o sindicato é importante como organismo de defesa dos trabalhadores sob o socialismo, exatamente contra os desvios burocráticos
  • Vale observar, no entanto, que, ao destacar o “autogoverno das massas operárias”, o grupo ordenovista descarta a concepção do poder socialista como algo próximo a uma ditadura de partido. “É um mito revolucionário” – registra Gramsci no artigo O Partido e a Revolução – “conceber a instauração do poder proletário como uma ditadura do sistema de seções do Partido Socialista”.  E esclarece mais à frente. “No Conselho, encarna-se assim a forma atual da luta de classes tendente ao poder. E desenha-se, desse modo, a rede de instituições nas quais o processo revolucionário se desenvolve: o conselho, o sindicato, o Partido Socialista.”
  • E num outro artigo,  O Problema do Poder, a questão é “a construção de um aparelho estatal que, em seu âmbito interno, funcione democraticamente: ou seja, garanta a todas as tendências anticapitalistas a liberdade e a possibilidade de se tornarem partidos de governo proletário.” Está aí a exigência gramsciana de pluralismo. Não o de um “pluralismo” meramente formal, mas o de um pluralismo enraizado no controle democrático do processo produtivo pelos produtores.
  • Bordiga se colocará claramente contra as concepções ordenovistas. De cara, ele desprezará o que considera “gradualismo reformista”. Nada de objetivos intermediários: “O maximalismo terá sua primeira vitória com a conquista de todo o poder pelo proletariado”. É o tudo ou nada dos ”maximalistas”. E, além disso, afirmará a ditadura do proletariado como ditadura do partido. “Os sovietes de amanhã deverão ter sua gênese nas seções locais do Partido Comunista. Tais seções deverão ter prontos os elementos que, imediatamente após a vitória revolucionária, serão propostos ao voto da massa eleitoral proletária, a fim de constituírem os conselhos de delegados locais.”
  • Em abril de 1920, uma greve geral puxada pelos Conselhos de Fábrica é deflagrada.  A paralização é um sucesso em Turim, mas não se propaga nacionalmente. E, abandonada pelo PSI e pelas direções sindicais, é derrotada em maio. Mas é uma derrota ainda parcial. Em setembro, pressionados pelos Conselhos de Fábrica, o patronato ensaia um lock-out. A classe operária responde com a ocupação das fábricas.
  • A autogestão operária consegue assegurar o nível da produção sem o concurso dos proprietários, por mais de 15 dias. Fica evidente, contudo, que a fábrica como “território nacional” é um espaço estreito, e o movimento – isolado nacionalmente e hostilizado não só pelos industriais mas também pelas direções sindicais e do PSI – se desgasta. A construção da hegemonia se coloca.  A necessidade de aliança com o campesinato fica clara. No chão italiano, isso se apresenta como a questão meridional.
  • Em 20 de julho, Gramsci sofreu sua primeira prisão, que foi breve.  Sobre essa ocasião, ficou o testemunho de um jovem operário, Mario Montagnana, que também estava preso. “Vi que pelo menos uns 12 guardas carcerários cercavam e ouviam religiosamente um homenzinho, vestido de escuro, que lhes falava sorrindo. Era Gramsci. Em 36 horas, encerrado na cela, conseguira conquistar, e fascinar, numerosos carcereiros, sardos como ele, dirigindo-se a eles no dialeto natal, com aquele seu modo de falar simples, popular, mas ao mesmo tempo riquíssimo  de sentimentos, de fatos e de ideias. A notícia se espalhava de um guarda a outro: ‘Você sabe que na cela número tal tem um sardo, um político… Vai lá falar com ele.’ E apesar da severa disciplina, muitos foram… E agora alguns deles – todos aqueles que podiam fazê-lo – o acompanhavam, também para desfrutar ainda um pouco da sua conversa, até a sala de registro dos presos, orgulhosos daquele sardo tão inteligente, tão instruído, tão simpático.”
  • Após o fracasso da primeira greve, em maio, a questão do partido revolucionário começa a ganhar destaque entre os ordinovistas. No princípio, almeja-se  uma renovação do PSI, só possível com o expurgo dos reformistas. Gramsci e seus camaradas estimulam a criação de grupos comunistas nas fábricas.
  • Em outubro, Gramsci publica o artigo O Partido Comunista, no qual estabelece “uma comparação valorativa entre os militantes pela Cidade de Deus e os militantes pela Cidade do Homem: o comunista, certamente, não é inferior ao cristão das catacumbas.” Para Gramsci, “o Partido Comunista é o instrumento e a forma histórica do processo de libertação interior pelo qual o operário passa de executor a iniciador, deixa de ser massa para tornar-se líder e guia, deixa de ser braço para se converter em cérebro e vontade.”
  • O sardo observa que “o capitalismo cria forças que depois não consegue dominar”. Após indicar que “os partidos se desagregaram numa multiplicidade de clientelas pessoais”, opina que “o Partido Comunista, surgindo das cinzas dos partidos socialistas, repudia suas origens democráticas e parlamentares”.  Vale precisar que o repúdio aqui a “suas origens democráticas” faz referência à democracia liberal.
  • Ele considera que “os partidos políticos são o reflexo e a nomenclatura das classes sociais” e postula que “o Partido Socialista Italiano – em função de suas tradições, das origens históricas das várias corrente que o constituem, do pacto com a Confederação Geral do Trabalho […], da autonomia ilimitada concedida ao grupo parlamentar” – é “revolucionário apenas nas afirmações gerais contidas em seu programa. […] Na verdade, este Partido Socialista […] não é mais do que um pobre tabelião que registra as operações já realizadas espontaneamente”. 
  • A conclusão é imperativa. “Os comunistas – que na luta dos metalúrgicos, com sua energia e seu espírito de iniciativa, salvaram a classe operária de um desastre – devem chegar até as últimas consequências de sua atitude e de sua ação: devem salvar, reconstruindo-a, a coesão básica do partido da classe operária, dando ao proletariado italiano o Partido Comunista capaz de organizar o Estado operário e condições para o advento da sociedade comunista.”
  • Em novembro, Gramsci participa do congresso socialista de Ímola, no qual organiza com seus camaradas uma fração comunista no interior do PSI. Em 24 de dezembro é publicado o derradeiro número de L’Ordine Nuovo semanal, que passa a ser órgão dos comunistas e de publicação diária. Gramsci continua a ser o diretor do jornal em sua nova fase.

Biibliografia:

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

COUTINHO, Carlos Nelson (org.). O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2011.

FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci; tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LAJOLO, Laurana. Antonio Gramsci: uma vida; tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

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