por Luiz Carlos Checchia1
Até alguns anos atrás, as narrativas dos filmes de guerra traziam para as telas os heroicos feitos de soldados e oficiais envolvidos em missões militares de grande impacto. Alguns eram filmes totalmente fictícios, como o clássico Os Canhões de Navarone (título original: The Guns of Navarone, 1961) e o Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998), outros eram baseados em fatos realmente ocorridos, como o filme Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016), mas todos traziam para as telas homens destemidos e seus feitos quase que insuperáveis. De lá para cá, muitas histórias de guerra têm focado a vida de pessoas comuns, personagens envolvidas em conflitos que invadiram seus cotidianos e mudaram suas vidas. Não são, portanto, filmes de guerra, mas sim filmes sobre pessoas que foram tragadas pelas guerras. Esse é o caso do filme dinamarquês O Bombardeio (Skyggen i mit øje, 2021).
A Gestapo, temida polícia secreta nazista, mantinha uma sede na cidade de Copenhagen, capital da Dinamarca, desde quando os alemães invadiram esse país, em abril de 1940. A sede, conhecida como Shellhus, estava instalada em um imenso prédio, e lá funcionava como centro de coordenação de operações de investigação e repressão, guarda de arquivos e cárcere. Até 1943, os alemães mantiveram certa cautela, evitando exercer demasiada pressão contra o Estado dinamarquês.
A partir desse ano, no entanto, houve uma mudança drástica: as forças aliadas passaram a somar sucessos na luta contra os nazistas. E parte dessas forças eram os grupos de resistência que atuavam em diversos países ocupados pelos alemães. As resistências eram grupos formados por militares e civis que atuavam em missões rápidas de guerrilha urbana, sabotagem, assassinatos de oficiais, espionagem, fuga de prisioneiros e outras ações de alto risco dentro de territórios ocupados. Com o avanço dos aliados, a Gestapo passou a intensificar a repressão contra a resistência dinamarquesa. Seus militantes estavam sendo severa e sistematicamente interrogados, torturados e encarcerados em celas montadas nos andares superiores do prédio, servindo assim como escudo humano.
As investigações da Gestapo estavam obtendo grandes sucessos, chegando perto de definitivamente desbaratar toda a resistência dinamarquesa. Tentando evitar seu fim, as lideranças rebeldes não tiveram outra opção senão solicitar à Força Aérea Real do Reino Unido, a RAF, que bombardeasse o prédio, matando o maior número de investigadores da Gestapo e destruindo todo o arquivo possível, ainda que isso custasse a vida dos prisioneiros. Era a situação de perder alguns resistentes para garantir a sobrevivência de todos os demais.
Assim, a RAF organiza a Operação Cartago, realizada em 21 de março de 1945, formada por dezenas de aeronaves que deveriam atacar a sede da Gestapo em três diferentes ondas, usando bombas incendiárias de alto poder de destruição. No entanto, um acidente com uma das primeiras aeronaves fez com que ela se chocasse no prédio da Escola Francesa Joana D’Arc, que ficava a cerca de um quilômetro e meio do alvo. Alguns dos aviões que vinham atrás da aeronave acidentada confundiram a escola com o prédio da Gestapo e a bombardearam, matando 86 crianças e 18 adultos. Ainda que a sede da repressão nazista tenha sido efetivamente destruída, resultando no fim das atividades contra a resistência, a Operação Cartago é considerada uma das mais lamentáveis tragédias da Segunda Guerra Mundial e uma triste memória daquele período na História da Dinamarca.
Essa é a História e a Memória que o roteirista e diretor Ole Bornedal recupera em O Bombardeio. Há dois grandes valores em seu roteiro: o primeiro é a composição das personagens; o segundo, a trama que elas formam. Não é incomum que bons filmes narrem histórias de uma ou duas boas personagens e que todas as demais apenas girem ao seu redor. Mas não é esse o caso aqui. O Bombardeio traz um conjunto de personagens habilmente elaboradas, como as pequenas Eva e Rigmor (interpretadas por E. J. L. Nilson e E. B. Beck, respectivamente), alunas da escola; o jovem Henry (B. Bisgaard), primo de Rigmor, que passou a morar com a família dela depois que um trauma de guerra fez com que ele perdesse a fala e passasse a temer lugares abertos; a jovem freira Teresa (F. L. Bordenal), assistente da escola e cuja fé estava em crise por ela não conseguir entender como Deus podia permitir as atrocidades daquela guerra, principalmente o genocídio dos judeus. Também faz parte da trama a personagem Frederik (A. H. Andersen), um jovem dinamarquês que colabora com os nazistas, servindo em sua força policial, o que o torna mal visto por todos, inclusive por seus pais. Cada uma dessas personagens lida, à sua maneira, com seus problemas próprios e, ao mesmo tempo, com a experiência de conviver com os invasores nazistas. Isso cria em cada uma delas uma tensão que se reflete tanto em seu ambiente privado quanto em suas relações sociais. Interessante também o fato de as personagens se dividirem entre crianças e adultos com igual importância na trama, criando um balanço dinâmico entre os diferentes momentos da história, com mesmo peso e ênfase tanto para as passagens mais divertidas do cotidiano infantil – como quando Eva, Rigmor e Henry “desafiam” a assustadora vendedora de pães – quanto para os obscuros tormentos da jovem freira Teresa.
Já a trama formada pelas personagens desenvolve-se ao longo das semanas que antecedem o fatídico ataque aéreo realizado pela RAF. Suas histórias se desenrolam em separado e seguindo o mesmo sentido, a Escola Joana D’Arc. Assim, as tramas pessoais vão lentamente se aproximando e se sobrepondo, formando, já perto do bombardeio, uma grande e única História. E esse é um outro inestimável valor do filme: mostrar como a História das nações e de suas guerras é formada pelas vidas de pessoas comuns conectadas em um mesmo cotidiano. E justamente porque Ole Bornedal optou por falar de pessoas e não de heróis, não há nenhuma grandiosidade nas ações e nas opções das personagens. Mesmo nos momentos em que se empenham pela vida das demais pessoas, fazem-no não por heroísmo, mas quase que pela necessidade de superar suas próprias fraquezas: arriscam-se como quem quer se salvar mais do que salvar o outro.
Ole Bornedal acerta também na direção do filme. Desdobrando lentamente as principais sequências em crescente tensão, ele consegue provocar pesadas expectativas no público e imprimir densidade às cenas. Destaca-se o trabalho que realiza em diversos enquadramentos, muitos deles colocando em tela a percepção das crianças sobre algumas das duras situações ocorridas. Também cuida do enquadramento quando traz para a tela as cenas de maior agressividade, como as torturas e assassinatos, optando por ângulos não convencionais. Em outras ocasiões, trabalha os claros e escuros, amplificando a dramaticidade da obra e elevando a tensão do momento a altos níveis.
Enfim, O Bombardeio é um filme a assistir, seja pela qualidade de seu roteiro ou de sua direção, seja, principalmente, por retratar com sensibilidade e profundidade uma das densas páginas da História da Segunda Guerra Mundial, a Operação Cartago. Quaisquer que sejam as motivações, é um filme a assistir.
O filme se encontra disponível na plataforma de filmes Netflix.