Nota prévia
O texto aqui apresentado é uma tentativa de síntese das reflexões que temos apresentado nesta coluna e em outros textos de análise de conjuntura elaborados desde 2016. O fato de que a crise aqui analisada continua em curso, dificultando o pleno conhecimento e compreensão de determinados fatos e processos, nos permite apenas detectar suas tendências mais gerais e avançar algumas hipóteses explicativas, e este é o sentido do que apresentamos aqui. Este texto foi publicado originalmente pelo site Marxismo21 no dossiê “O Brasil Hoje”, em novembro de 2021, a partir de um conjunto de questões sugerido por sua editoria. Além de alterações pontuais em relação ao texto original acrescentamos aqui um pós-escrito relativo à conjuntura dos últimos 40 dias.
1 – A crise brasileira e sua dinâmica
Podemos caracterizar a crise brasileira como uma crise de hegemonia de grande complexidade e profundidade, desencadeada a partir do colapso da política de conciliação de classes protagonizada pelos governos do PT, baseada na combinação entre neoliberalismo moderado, indutivismo econômico estatal, políticas sociais compensatórias e passivização/cooptação das organizações políticas e movimentos sociais do mundo do trabalho. Durante aproximadamente uma década essa política foi operada a partir do governo federal, mobilizando o apoio não só de variadas frações burguesas, mas principalmente dos trabalhadores, permitindo que a dominação burguesa atingisse níveis de consenso jamais vistos desde a redemocratização, sofisticando e aperfeiçoando a autocracia burguesa e a democracia de cooptação instalada com a Constituição de 1988. A conjuntura econômica internacional favorável e a combinação entre indutivismo econômico estatal e políticas sociais compensatórias favoreceram o aumento dos investimentos, da produção e do consumo e uma melhoria relativa na renda dos trabalhadores, permitindo taxas de crescimento econômico inéditas desde os anos 80 e uma dinâmica econômica expansiva que foi capaz de se manter mesmo depois da crise econômica mundial de 2008. No entanto, tal política não foi capaz de desencadear a passagem para um novo padrão de acumulação capitalista, baseado na retomada da industrialização em novas bases tecnológicas, na ampliação de direitos sociais e trabalhistas, de modo a reduzir a flexibilização do mercado de trabalho, a precarização do trabalho, e garantir um processo efetivo de distribuição de renda, numa inserção mais autônoma na economia internacional diante dos países centrais, particularmente dos EUA. Ao contrário, as tendências históricas dos últimos 30 anos de avanço do capital externo na economia nacional –desindustrialização, reprimarização econômica, flexibilização e precarização dos direitos do trabalho e regressão colonial – foram mantidas, mesmo que num ritmo mais lento em alguns casos e apesar da maior expansão imperialista brasileira na América Latina, África e Oriente Médio e da articulação com os BRICS.
Com o rebatimento da crise econômica mundial no cenário interno e o acirramento da disputa interimperialista, os limites da perspectiva neoliberal moderada e do indutivismo econômico estatal tornaram-se mais evidentes, dificultando a reprodução da política de conciliação de classes, particularmente depois de 2013, ano em que se dá o auge da escalada grevista iniciada em 2008, o maior número de greves desde 1989, e ocorrem as “Jornadas de Junho”. O processo de disputa pela renda entre capital e trabalho se acirra, opondo a perspectiva burguesa de extremização do programa neoliberal à perspectiva antineoliberal dos trabalhadores. Apesar de seu caráter policlassista e da variedade das demandas apresentadas, as “Jornadas de Junho” tiveram um caráter predominantemente proletário, em termos sociais, e antineoliberal, em termos programáticos, com reivindicações como o aumento dos gastos públicos com transporte, saúde, educação, moradia, melhoria da renda salarial, etc. Por outro lado, diante da tendência de queda das taxas de crescimento do PIB e da taxa de lucro, o conjunto do grande capital, particularmente suas frações intermediárias, passou a exigir cada vez mais a redução do chamado “custo Brasil” (direitos trabalhistas, impostos e gastos sociais), um rigoroso ajuste fiscal, com corte de gastos públicos, e aumento da taxa de juros, mesmo com toda a política de isenção fiscal adotada pelo governo Dilma Roussef. No plano externo, desencadeia-se uma ofensiva do governo estadunidense contra a política externa brasileira, visando atingir as chamadas “campeãs nacionais” – empresas brasileiras imperialistas e com forte presença nos setores estratégicos da economia, particularmente petróleo e mineração– e assim enfraquecer a articulação com os BRICS. Em combinação com o Departamento de Justiça dos EUA, setores do Ministério Público e do Judiciário desencadearam a Operação Lava Jato, dando continuidade à perseguição judicial, política e midiática ao PT iniciada com o processo do chamado “Mensalão”, ainda no primeiro mandato de Lula, e procurando desestabilizar o governo.
A incapacidade do governo do PT em mediar essas contradições, abandonando o neoliberalismo e optando claramente pela perspectiva popular, selou seu destino. Ao contrário, antes mesmo do término do primeiro mandato de Dilma Roussef, o governo iniciou uma política de corte de direitos e gastos sociais, que se aprofundou no segundo mandato, tentando assim “acalmar os mercados” e reeditar a tática adotada em 2003-2004 de “ajuste” das contas, controle da inflação e corte de direitos, imaginando criar as condições para a retomada do crescimento a partir de 2016. No entanto, além de o capital exigir um ajuste muito mais draconiano, as condições externas mostraram-se desfavoráveis para uma retomada econômica como a que aconteceu entre 2005 e 2010. Revelando inteiramente sua completa integração passiva à ordem, o PT e seu governo reagiram à ofensiva golpista das burguesias apostando na “solidez” das instituições da democracia de cooptação da Nova República, e não na mobilização popular contra o golpe. Apesar de todo o esforço de partidos de esquerda, principalmente da esquerda socialista, e dos movimentos sociais em resistir ao golpe nas ruas, a classe trabalhadora reagiu timidamente, deixando no ar um governo que lhe retirava direitos após prometer o contrário na campanha eleitoral de 2014. Portanto, diante da pressão “a partir de baixo” pela superação do neoliberalismo, da pressão “a partir de fora” pela restauração plena da dependência tradicional ao imperialismo dos países centrais, particularmente dos EUA, e da pressão “a partir de dentro” representada pela tendência recessiva e de queda nas taxas de lucro, o bloco no poder, principalmente suas frações intermediárias, apelou para um golpe parlamentar-judicial-midiático travestido de processo de impeachment para derrubar o governo petista, no que contou com grande apoio de setores da classe média e do pequeno e médio capital.
O golpe de 2016 significou uma vitória incontestável para o conjunto das burguesias, criando as condições para uma ofensiva econômica, política e ideológica sobre os trabalhadores como não se via desde a Ditadura Militar, mesmo que ao custo do esgarçamento do sistema de representação política e da própria institucionalidade da Nova República, com instituições e setores da burocracia disputando o controle do processo político numa guerra interinstitucional aberta. A partir do golpe se aceleram e intensificam os processos de restrição do espaço político dos trabalhadores, de criminalização e repressão de suas lutas e de radicalização do programa neoliberal extremado. Algumas medidas de perfil autoritário e fascista já vinham se estabelecendo desde antes, como a mobilização das Forças Armadas para operações de segurança pública e controle do conflito político e social por meio das operações de Garantia da Lei e da Ordem; a nova lei eleitoral, que amplia as exigências para acesso dos partidos ao fundo partidário e à propaganda gratuita; a lei antiterrorismo, explicitamente voltada para conter manifestações de massa; e a manipulação política do processo judicial por meio da doutrina do “domínio do fato”, da prisão em segunda instância, do uso das prisões preventivas para forjar delações, etc. como exemplificam os casos do “Mensalão” e da Operação Lava Jato. No entanto, a partir do golpe de 2016 estabeleceu-se, no interior da autocracia burguesa, um processo de transição da democracia de cooptação, vigente desde a Nova República e cujo auge deu-se durante os governos do PT, para uma democracia restrita que, se não aboliu a Constituição de 1988, desfigurou-a de maneira irreversível em muitos aspectos. Enquanto a democracia de cooptação era baseada na “passivização” do mundo do trabalho, tendo o transformismo exercido pelo Estado autocrático e pela institucionalidade política sobre suas organizações e lutas como mecanismo principal no tratamento do conflito social e político, a atual democracia restrita baseia-se na restrição do espaço político dos trabalhadores e suas organizações e na criminalização de suas lutas, reforçando os elementos fascistas e autoritários da institucionalidade política. Tal processo é ainda mais intensificado pelo próprio caráter autocrático do neoliberalismo, uma vez que a eliminação dos controles políticos à movimentação do capital reforça o despotismo burguês não apenas no espaço das empresas, mas também nas próprias relações sociais. A lei do teto de gastos, a lei da terceirização, a reforma trabalhista, a privatização a retalho da Petrobras e o acirramento dos cortes de gastos com funcionalismo e bens sociais complementam um processo de endurecimento do regime político, ressaltado pelo reforço da tutela militar no governo Temer e pela manipulação aberta do processo eleitoral pela Operação Lava Jato. Ao mesmo tempo, no plano ideológico-cultural ocorre o avanço de uma perspectiva conservadora que se apresenta com diversas facetas, como o hiperindividualismo, o empreendedorismo, o fundamentalismo religioso, particularmente de perfil neopentescostal, o culto da violência, o identitarismo liberal e o “presentismo”, ou seja, o sequestro do futuro e a eternização do presente pela cultura da urgência e da efemeridade. Combinadas, estas concepções permitem o ofuscamento do caráter social da desigualdade, a desqualificação das lutas sociais e o deslocamento da noção de pertencimento a coletivos mais amplos como as classes sociais, favorecendo a apatia política, a estatolatria e o paternalismo entre os trabalhadores.
No entanto, apesar da ofensiva, que busca constituir um novo bloco histórico na formação social brasileira, a crise de hegemonia se aprofundou, já que, para criar as condições políticas favoráveis a esta ofensiva, reduzindo o espaço político dos trabalhadores e da esquerda, foi preciso atacar o sistema de representação política criado durante a Nova República, baseado na polarização PT/PSDB, e permitir a autonomia política e operacional de instituições e setores do aparelho de Estado, que passaram a se politizar e partidarizar ainda mais. Ou seja, o ataque à capacidade de resistência política e eleitoral dos trabalhadores, que têm no PT sua principal organização no plano da representação política, abriu a “caixa de pandora”, submetendo também os principais representantes partidários do bloco no poder localizados no centro-direita, como PSDB, MDB e PP, à sanha lavajatista. Isto criou um vácuo de representatividade política não apenas para as frações burguesas, mas também para setores de classe média e mesmo setores proletários, que tenderam a deslocar suas preferências eleitorais para forças políticas menores ou mesmo marginais. Ao mesmo tempo, para aprovar o novo ciclo de reformas neoliberais extremadas passando por cima da Constituição, mas sem aboli-la por completo, foi preciso submeter a própria legalidade ao arbítrio e ao subjetivismo autocrático de tribunais e juízes e ao casuísmo de parlamentares e mandatários, criando-se uma situação de “salve-se quem puder” incontrolável. A politização de setores da burocracia não eleita chegou ao ponto de estes alimentarem perspectivas políticas e eleitorais próprias, caso dos procuradores e juízes envolvidos na Operação Lava Jato e da miríade de candidatos oriundos do aparelho judiciário ou das forças repressivas que se apresentaram nas eleições de 2018.
Paralelamente, ocorre um processo de redefinição da sociedade civil burguesa, com a emergência de novos intelectuais orgânicos da ordem vinculados a uma perspectiva de extrema-direita, que ganham grande audiência em razão da popularização das novas tecnologias de comunicação, como as redes sociais. Isso gera um deslocamento relativo da centralidade dos porta-vozes tradicionais do bloco no poder localizados na grande mídia e identificados com o centro-direita, colocando em xeque sua legitimidade e capacidade persuasória.
A instabilidade política e institucional criada por essa situação chegou ao ponto de favorecer a entrada em cena de atores que até então preferiam atuar nos bastidores, como os militares, e de forças políticas marginais, como Bolsonaro, acirrando ainda mais a guerra interinstitucional e a própria crise de hegemonia. As eleições de 2018 serviram para mostrar que, para o bloco no poder, qualquer restauração da situação pré-golpe de 2016 era impensável, mesmo que numa perspectiva conciliatória e moderada, como propunha a favorita candidatura de Lula. Sua prisão ilegal e a impugnação de sua candidatura, coroando com êxito a manobra política da Lava Jato, com a clara intervenção dos militares na cena política e a anuência do STF, indicavam que, para o bloco no poder, o preço a pagar pela impopularidade de seu programa político e econômico era instabilizar o processo político ainda mais, acelerando a guerra interinstitucional, o derretimento do sistema de representação política e a polifonia da sociedade civil burguesa. Diante da inviabilidade eleitoral de suas candidaturas orgânicas, o bloco no poder correu alegremente para os braços de Bolsonaro, o único capaz de derrotar o PT e manter o curso do golpe.
2 – O governo Bolsonaro e seu papel na crise brasileira
A ascensão de Bolsonaro ao poder é consequência direta do golpe de 2016, pois sua eleição só se tornou possível nos marcos da crise de hegemonia em curso. É fato que Bolsonaro expressa uma perspectiva política de extrema-direita que tem crescido nos últimos anos e atraído desde frações do grande e médio capital até setores da classe média e dos trabalhadores, mas sua eleição foi diretamente beneficiada pelo antipetismo construído pelas forças golpistas e disseminado em larga medida pela grande mídia, por um sentimento de recusa da política motivado pelo derretimento do próprio sistema de representação política e, principalmente, pela intervenção direta dos militares no processo político. A candidatura de Bolsonaro contava com o apoio de determinados setores do agronegócio, do comércio e da indústria interessados em sua pauta antiambientalista, antirreforma agrária, de eliminação de direitos sociais e de combate à esquerda e aos movimentos sociais; mas, quando a disputa ficou entre ele e o candidato petista, as demais frações do capital, em geral identificadas com as forças de centro-direita, aderiram à sua candidatura de maneira aberta ou velada. Na verdade, apostava-se que, apesar da perspectiva fascista presente em seu discurso desde sempre, o novo mandatário seria controlado pelos militares, pelo mercado e pelo Congresso, de modo que a pauta política e econômica do golpe de 2016 pudesse avançar sem riscos à democracia restrita já vigente.
De fato, a pauta neoliberal extremada avançou rapidamente sob o novo governo, mesmo durante a pandemia, retirando ainda mais direitos dos trabalhadores, promovendo o avanço privado sobre recursos naturais e bens públicos e favorecendo taxas de lucro positivas apesar do quadro recessivo. Simultaneamente, avançou um processo de fascistização do aparelho de Estado, de integração dos militares no governo, comprometendo sua autonomia institucional, de politização golpista das forças policiais, de crescimento das forças paramilitares e de contestação, pelo Executivo, das ações dos outros poderes e entes federativos e da própria legalidade. Situação que impediu a consolidação da nova ordem política oriunda do golpe de 2016 e inverteu o papel de legitimação imaginado para a eleição de 2018. Ou seja, se com Bolsonaro o bloco no poder conseguiu derrotar a perspectiva antineoliberal do voto popular e impedir qualquer reversão, mesmo que parcial, da pauta política e econômica do golpe, por outro lado, sua ascensão significou um risco à própria estabilização da nova ordem política e social, na medida em que o projeto político de seu governo demanda a superação da democracia restrita vigente em favor de um regime fascista ou do cesarismo militar, o que implica a instabilização permanente da situação política. Além do mais, sua crescente impopularidade, por conta do descalabro administrativo, do comportamento genocida diante da pandemia da COVID-19, do quadro econômico recessivo e da postura abertamente antipopular de seu governo, alimenta o lulismo/petismo como principal alternativa para o voto oposicionista, recolocando-o assim como força política a ser mantida no jogo político em nome da moderação e da estabilização política.
A base material desta instabilidade política e institucional se localiza no processo de acirramento da disputa intercapitalista causado pela própria dinâmica de transição para um novo padrão de acumulação de capital que agrega às tendências que marcam a economia brasileira nas últimas décadas, e que indicamos anteriormente, o aprofundamento da superexploração do trabalho, o aumento da mais-valia absoluta e o avanço da acumulação primitiva, com impactos altamente negativos na renda dos trabalhadores, na magnitude do mercado interno e no próprio equilíbrio ambiental. Nos últimos anos, esta disputa tem favorecido prioritariamente as frações capitalistas posicionadas nos setores intermediários do grande capital e que se localizam nos ramos do agronegócio, comércio, serviços e extrativismo.
O governo Bolsonaro acirra esta disputa intercapitalista, pois sua perspectiva neoliberal extremada implica não apenas a eliminação do papel regulador/normatizador do Estado na relação entre capital e trabalho por meio da abolição dos direitos sociais e trabalhistas, o que interessa a todas as frações burguesas, mas também o desmonte de sua capacidade de regular a hierarquia entre os capitais e as relações destes com o aparelho estatal. Esta dimensão “liquidacionista” da ação governamental vai muito além da flexibilização do monopólio estatal da violência, presente na liberação do porte de armas e no fortalecimento das milícias e empresas privadas de segurança. Isto porque também flexibiliza/elimina instrumentos legais que regulam a questão ambiental, a ocupação fundiária e a exploração extrativista, desmontando agências e órgãos fiscalizadores, criando o “salve-se quem puder” em diversas atividades, e porque privatiza ou retalha empresas públicas que exercem um papel organizador nos ramos em que atuam, criando uma situação anárquica que é disfuncional em diversos setores econômicos. Esta perspectiva “liquidacionista”, que reverbera o “anarco-capitalismo” de setores da extrema-direita estadunidense, cria contradições importantes entre as diversas frações do bloco no poder, pois tende a favorecer mais determinados setores intermediários e/ou aqueles que atuam na fronteira entre a legalidade e o crime, que buscam ascender na hierarquia dos capitais apelando ainda mais para a mais-valia absoluta, a super-exploração do trabalho e a acumulação primitiva.
Neste sentido, o governo Bolsonaro exerce uma função contraditória para as frações dominantes do bloco no poder no atual período, pois, ao mesmo tempo em que permite o avanço da pauta econômica e política do golpe de 2016, aprofunda a crise de hegemonia, acirrando a guerra interinstitucional, atacando o sistema de representação política e radicalizando a disputa de narrativas com o centro-direita, o que mantém aberta a disputa pela direção política do bloco no poder. Assim, expressa o núcleo da contradição histórica vivenciada pelo capitalismo brasileiro desde o golpe de 2016: levar a cabo o maior ataque ao mundo do trabalho e a maior pilhagem aos bens sociais e recursos públicos desde a Ditadura Militar por meio do aprofundamento do caráter autocrático burguês do Estado –portanto, aprofundando a repressão, a coerção, a superexploração do trabalho e o exclusivismo burguês –sem abrir mão da carapaça “democrática” herdada da Nova República e de seus efeitos passivizadores sobre as massas populares, mas tendo que recorrer, para isso, a um governo cujo projeto político é a instituição do fascismo e a eliminação de qualquer instrumento de mediação política. Esta contradição se expressa no comportamento ao mesmo tempo crítico e condescendente das frações dominantes do bloco no poder e de seus representantes políticos no centro-direita diante de Bolsonaro, manifesto na estratégia de “morde e assopra” e nas tentativas de estabelecer com ele uma “guerra de posição” que permita a estabilização política. Isto explica porque, apesar dos n crimes contra a humanidade, de lesa-pátria e de responsabilidade cometidos pelo presidente desde a posse, prevalece o “Fica Bolsonaro”, permitindo que ele não apenas termine o mandato, mas também se candidate à reeleição no ano que vem, avance na fascistização do aparelho de Estado e tente o golpe fascista de novo.
Porque, então, as principais frações do bloco no poder não partem logo para o fechamento definitivo do regime, seja na forma fascista, seja na forma cesarista militar ou numa combinação entre ambas, já que a restrição do espaço político dos trabalhadores e da esquerda e a repressão/criminalização dos movimentos e lutas sociais são cruciais para a aplicação da pauta política e econômica do golpe de 2016? Em nossa avaliação, trabalhamos com a hipótese de que o grande capital associado não o faz não só por não ser necessário, mas principalmente porque sua viabilização é muito difícil. Em primeiro lugar, é preciso destacar o fato de que, no atual período da luta de classes, o mundo do trabalho está longe de apresentar uma perspectiva revolucionária de superação da ordem do capital em termos práticos e programáticos, não só por conta dos efeitos transformistas exercidos pela autocracia burguesa sobre suas organizações e formas de luta ao longo da Nova República, ainda muito sentidos, mas também porque predomina entre as massas trabalhadoras uma perspectiva ideológica que combina em graus variados empreendedorismo neoliberal, fundamentalismo religioso, estatolatria e paternalismo.
No entanto, apesar disso, o caráter atual da formação social brasileira torna o fechamento definitivo do regime uma empreitada bastante difícil e de resultados incertos por algumas razões. Em primeiro lugar, décadas de urbanização acelerada concentraram nas cidades brasileiras 85% da população; deste montante, a metade habita as dez maiores cidades, tornando muito difícil e oneroso o estabelecimento de um sistema restrito de controle social e político. Em segundo lugar, o conjunto das forças repressivas do Estado é proporcionalmente pouco numeroso – diante do montante populacional e em comparação com o que havia na Ditadura Militar– para efetuar um processo de repressão ostensiva. O envolvimento das forças paramilitares num mesmo aparato repressivo, mesmo que numericamente maiores do que as forças estatais, também seria insuficiente, além dos problemas institucionais que traria à questão do monopólio legítimo da violência. Em terceiro lugar, apesar de todo o transformismo e da passivização exercida sobre suas práticas e lutas, o mundo do trabalho, bem ou mal, criou ao longo das últimas décadas uma sociedade civil relativamente robusta, composta de grande variedade de atores sociais e milhares de entidades, organizações, movimentos e aparatos, grande parte deles de caráter nacional, com potencial significativo de ação e resistência unificada em caso de fechamento do regime. É preciso ainda destacar que a perspectiva política de fechamento do regime é, no atual momento, representada por forças que se identificam com uma pauta cultural e de costumes de perfil abertamente machista, racista, homofóbico e obscurantista, que fere diversos interesses empresariais, vinculados a determinados segmentos de mercado “customizados” para mulheres, negros, LGBTQIA+, etc. Finalmente, na atual conjuntura, as condições internacionais são desfavoráveis a uma empreitada deste tipo, que colocaria o país numa situação ainda mais delicada em termos econômicos e diplomáticos.
Diante disso, o papel passivizador exercido pela democracia restrita vigente é mais funcional, na medida em que restringe o espaço político dos trabalhadores, mas preserva os instrumentos político-partidários e corporativos de mediação com o mundo do trabalho, permitindo-lhes, inclusive, funcionar como elementos de legitimação da nova ordem política e social.
3 – Tarefas da esquerda brasileira, particularmente a esquerda socialista, no atual período da luta de classes
Diante deste quadro, é urgente para os trabalhadores e suas organizações lutar para derrotar o governo Bolsonaro, o bolsonarismo e sua perspectiva fascista, pois ela representa a face mais repressiva, recessiva e antipopular do golpe de 2016. Isto exige fortalecer a mobilização de massas pelo “Fora Bolsonaro e Mourão”, pela aceleração radical do programa de vacinação contra a COVID-19 e por um programa econômico emergencial que garanta emprego, aumento salarial, auxílio emergencial e o controle dos preços dos produtos essenciais. A experiência recente tem demonstrado que apenas as manifestações de rua, a disputa político-ideológica no plano das redes sociais e a luta institucional nos planos parlamentar e jurídico não têm tido sucesso diante do “Fica Bolsonaro” patrocinado pelas classes dominantes. É preciso combinar as manifestações de rua com a retomada das greves, ocupações, e com as iniciativas de auto-organização solidária contra a COVID-19 desenvolvidas pelo país afora, de modo a fortalecer a mobilização cotidiana e a organização. A acomodação com a manutenção de Bolsonaro e seu governo pelo resto do mandato com base na expectativa de que ele seja derrotado eleitoralmente daqui a um ano é um erro político de enorme envergadura, pois isso significará o aprofundamento e radicalização de todos os ataques contra os trabalhadores, o avanço do processo de fascistização do aparelho de Estado e a permanência da ameaça de golpe fascista e de fechamento do regime. Além disso, permite-lhe sobreviver politicamente e se apresentar como uma opção eleitoral para o conjunto do bloco no poder caso reste como a única candidatura viável para derrotar a perspectiva antineoliberal do voto popular.
Contudo, o golpe de 2016 parece carregar uma dimensão histórica da envergadura do que representaram os golpes de 1930 e 1964 para a história nacional, pois abriu um novo período da luta de classes no país, com as classes dominantes atuando para reconfigurar o capitalismo brasileiro no sentido da constituição de um novo bloco histórico ainda mais opressivo, exploratório e alienante para os trabalhadores, apesar da crise de hegemonia em curso. Isto significa que é preciso lutar tenazmente contra a combinação vigente entre democracia restrita e neoliberalismo extremado, ou seja, contra a pauta política e econômica do golpe, e sua estabilização política, seja na forma de um segundo governo Bolsonaro, na forma de um governo do centro-direita ou ainda na forma de um governo de centro-esquerda devidamente manietado por acordos e compromissos com as classes dominantes para conduzir uma versão mais flexível da pauta do golpe que permita sua legitimação política e eleitoral.
Neste aspecto, e a questão das alianças eleitorais em 2022 passa por isto, é preciso garantir a todo custo a formação de uma frente ampla de sindicatos, movimentos sociais, entidades civis e forças de esquerda (centro-esquerda e esquerda socialista) que se pautam pelo combate ao golpe de 2016, sua autonomia política diante das forças do campo golpista que compõem a oposição de direita ao governo e ao bolsonarismo e sua capacidade de executar um programa antineoliberal que não apenas restaure os direitos políticos, sociais e trabalhistas que haviam antes, mas que os amplie e aprofunde com vistas à abolição da autocracia burguesa e ao avanço do controle social sobre a produção e distribuição de bens sociais públicos por meio das organizações dos trabalhadores. Esta é uma dimensão que precisa ser defendida, e com especial ênfase pela esquerda socialista, como única possibilidade efetiva de derrotar o golpe e garantir melhorias substantivas nas condições de vida e trabalho da massa trabalhadora, diante de uma economia altamente monopolizada e de um Estado autocrático que tende a capturar toda e qualquer perspectiva de reforma dentro da ordem, e numa situação em que o próprio modo de produção capitalista encontra-se numa crise estrutural em nível internacional que impede a emergência de um novo Welfare State ou algo parecido. Ao contrário, a tendência é de aprofundamento da exploração do trabalho, da opressão política e da destruição ambiental.
É preciso ainda constituir um poderoso movimento em torno desta perspectiva política que, não se limitando à luta institucional, seja capaz de articular as diversas lutas sociais que ocorrem no país e atrair os trabalhadores para formas de mobilização e organização correspondentes às novas configurações do proletariado e do mundo do trabalho. Para tanto, é preciso abandonar resolutamente práticas que ainda dificultam o cumprimento destas tarefas, como o corporativismo, o aparelhismo, o burocratismo, a estatolatria, o paternalismo e o eleitoralismo, em favor de práticas efetivamente democráticas, participativas e autônomas. Para a esquerda socialista, é crucial constituir no seio do movimento dos trabalhadores e da frente ampla das forças antigolpistas uma frente de esquerda, ou seja, um polo político comprometido com a perspectiva socialista tanto em termos de pregação ideológica quanto da mediação prática entre as tarefas de enfrentamento da autocracia burguesa e do neoliberalismo extremado e as tarefas relacionadas ao avanço do controle social sobre bens sociais, políticas públicas e empresas. Em especial, é preciso deixar claro que não há saída para a humanidade nos marcos da ordem burguesa, particularmente tendo diante dos olhos a tragédia representada pelas políticas do capital e de seus governos no trato da pandemia, e afirmar os vínculos necessários entre a perspectiva socialista, a emancipação humana e a superação da atual crise econômica, sanitária, política, ambiental, civilizacional.
Pós-escrito – 18/12/2021.
No momento em que escrevemos este pós-escrito é forçoso constatar que a campanha popular pelo “Fora Bolsonaro” foi devidamente derrotada (temporariamente?), apesar de obrigar o governo a iniciar a vacinação em massa, mesmo que lentamente, e prorrogar o auxílio emergencial, mesmo que pela metade do tempo e do valor. Iniciada em maio, a maior campanha de mobilização de massa desde o início da pandemia desidratou melancolicamente após o engavetamento do relatório da CPI da Covid 19 pela PGR, sob o peso combinado da tática de “morde e assopra” com Bolsonaro adotada pelo bloco no poder e pelas forças de centro-direita, com vistas à estabilização da situação politica para continuar “passando a boiada”, e do oportunismo eleitoreiro das forças de centro-esquerda, também interessadas na estabilização política para garantir o cumprimento do calendário eleitoral. Esta derrota do campo popular e antigolpista é plena de significados e desdobramentos, pois altera a correlação de forças ainda mais em favor da perspectiva burguesa de consolidação e legitimação da pauta política e econômica do golpe de 2016.
A vitória do “Fica Bolsonaro” significou não apenas que o governo mais criminoso desde a Ditadura Militar continua até o final do mandato executando seu programa neoliberal extremado, sua política econômica recessiva, sua política genocida diante da pandemia e seu projeto de fascistização do Estado; mas que seu mandatário pode e deve disputar a eleição de 2022 e de maneira competitiva. Para além da elevação continuada da taxa de juros, da política de desvalorização cambial, da escalada inflacionária e do desemprego nas alturas, a aprovação, mesmo que parcial, da PEC dos Precatórios, a manobra contábil que flexibiliza a Lei do Teto de Gastos, a legalização do “orçamento secreto” e a nomeação de André Mendonça para o STF indicam que para o bloco no poder e as forças de oposição à direita e à esquerda é preciso que Bolsonaro esteja na corrida presidencial do ano que vem.
Para a oposição de centro-direita a presença de Bolsonaro permite-lhe brandir a bandeira da moderação diante dos “extremismos” e obnubilar seu papel dirigente no golpe de 2016, na transição autoritária em curso desde então e nos ataques aos direitos dos trabalhadores, mobilizando o antibolsonarismo e o que resta do antipetismo. A tentativa de construir uma candidatura unificada da chamada “terceira via”, agregando de Moro à Dória e Mandetta, esbarra nas ambições pessoais dos principais postulantes e na própria crise do sistema partidário, abrindo uma disputa acirrada no campo da oposição de direita. No entanto, a perspectiva de estabilização política, consolidação e legitimação eleitoral do golpe de 2016, que interessa às frações dominantes do bloco no poder, opera não apenas em torno da criação de uma candidatura viável em 2022, mas também condicionando o processo político de modo a viabilizar em 2023 o terceiro governo do golpe, seja ele qual for. Além do esforço para constitucionalizar o mais rápido possível o programa neoliberal extremado e a democracia restrita vigorante, de modo a dificultar ou mesmo impedir sua reversão por um futuro governo Lula, o próprio processo eleitoral passou a ser tutelado pelo “partido militar”, sustentáculo do governo Bolsonaro e uma das principais forças políticas que operam a transição autoritária. A indicação para a diretoria do TSE de ninguém menos que o general Azevedo e Silva, um dos principais articuladores do “partido militar”, revela que a tutela militar se impõe não só o governo, mas à própria institucionalidade política.
Ao invés de constituir um polo político francamente antigolpista, comprometido com a reversão do neoliberalismo extremado e da democracia restrita, a oposição de centro-esquerda se acomoda a esta situação, buscando colocar-se como uma alternativa “da ordem” para a superação da atual crise. O pouco esforço dedicado à mobilização para a campanha pelo “Fora Bolsonaro”, principalmente após o fracasso da tentativa de golpe do 7 de setembro, revela mais do que seu institucionalismo atávico, mas uma estratégia eleitoral que busca mostrar-se confiável para o bloco no poder. A aproximação do PT com forças do campo golpista, expressa na proposta de constituição de uma chapa Lula/Alckmin, pouco tem a ver com os improváveis novos votos que o ex-tucano possa atrair, mas com uma perspectiva de composição com os interesses do bloco no poder que vai além da simples anulação de um novo golpe contra a candidatura Lula. A conversão de Lula ao centro e a aliança com Alckmin carrega para dentro da própria candidatura, do programa e do futuro governo o veto a determinadas ações cruciais para combater a crise econômico-social, abolir o binômio neoliberalismo extremado/democracia restrita e reverter a transição autoritária, mas que ferem os interesses estratégicos do capital, particularmente no tocante à precarização do trabalho e ao controle estrito do conflito político e social. Daí que para além de todo o constrangimento político e institucional imposto pelo bloco no poder e pelo campo golpista a qualquer perspectiva afinada com os interesses dos trabalhadores, a própria candidatura que se apresenta como seu principal representante coloca sobre sua própria cabeça uma “espada de Dâmocles” que lhe impede de realizar a vontade popular manifesta pelo voto. A persistir este curso um futuro governo Lula poderá se transformar em nada mais do que o terceiro governo do golpe, frustrando dramaticamente as expectativas dos trabalhadores e agravando a crise política.
A centro-esquerda aposta exclusivamente na saída eleitoral por que é a única que tem, pois se ajudasse a derrubar o governo Bolsonaro nas ruas teria que alterar a estratégia de disputa calculada na polaridade entre um Bolsonaro desgastado e derretendo e um Lula pai dos pobres/vítima do sistema. O problema é que enquanto a disputa não vem a COVID campeia, o bolsonarismo ocupa espaços no STF, na PF, no IPHAN e alhures, a tutela militar invade o processo eleitoral e a especulação financeira ganha proteção na hecatombe da crise, do desemprego e da fome. Nesta situação a própria hipótese de vitória política pela via eleitoral é uma incógnita por que com Bolsonaro com um cheque de mais de 100 bilhões nas mãos para gastar com políticas eleitoreiras, o TSE sob tutela do “partido militar” e a terceira via atuando na PF (veja-se a perseguição a Ciro Gomes), na mídia e na própria aliança Lula/Alckmin a possibilidade do voto popular antineoliberal e antigolpista ser fraudado ou sofrer outro estelionato é enorme. Ou seja, hoje apostar exclusivamente na via institucional é mais arriscado que tomar água de privada! O que torna urgente a retomada das mobilizações de massa contra o governo Bolsonaro e contra a pauta econômica e política do golpe, até mesmo para garantir que a vontade popular manifesta nas urnas seja respeitada.
Esta foi a melhor análise politica que li nos últimos tempos. O que reforça o meu temor pelo futuro do Brasil. Nas atuais conjunturas não creio creio no restabelecimento da Democracia no Brasil. Infelizmente a Burguesia Escravocrata e Fascista ancorada pelos Banqueiros, Agronegócio, Empresários, Militares e Milicianos já dominaram
a situação. Passaram a perna sobre o lombo do burro. Já dominaram. Somente um grande líder popular conseguiria reverter a situação, m as, onde encontrá-lo.