“O comum e a não propriedade” que propõem os zapatistas

artista: ‘A Better Hell’

Umas semanas atrás escrevi sobre os dispositivos que nos fazem cúmplices de nossa própria desgraça. Terminei o texto com uma pergunta nada retórica: “como evitar que colonizem nossa cabeça?”. Referia-me à integração dos pequenos às cadeias extrativo-produtivas, fazendo com que integrantes de comunidades tradicionais e pequenos camponeses produzissem insumos para as cadeias de commodities. Já que, cada vez mais, as grandes operadoras tendem a se retirar da ponta extrativa das cadeias, segmento mais arriscado e menos rentável, para apenas controlar o uso da terra na esfera da comercialização. Assim, de alguma maneira, os pequenos se proletarizam no próprio território, e se transformam em agentes das cadeias frente aos seus pares. Indígenas ou camponeses que dão suas terras em arrendamento, agricultores familiares que deixam de produzir alimentos e produzem insumos para a agroindústria e para os exportadores, caiçaras que se empregam na indústria do turismo, indígenas devindos garimpeiros.

Chega pra mim um presente dos Santos Reis que tende a responder à pergunta que me assombra. Nos Encuentros de Resistencia y Rebeldía, em Chiapas, os zapatistas divulgam decisões que vêm tomando sobre “o comum e a não propriedade” e os primeiros passos da sua aplicação. Em 2023, eles lançaram 20 comunicados que arrodeavam o tema, mas que resultavam um tanto herméticos para quem está longe. Nos dias 28, 29 e 30 de dezembro de 2024, realizaram esses encontros em Chiapas, 31 anos depois do alçamento zapatista, nos que descrevem a genealogia das decisões que tomaram mais recentemente. Essas decisões implicam em mudanças significativas, tanto na forma organizativa como na maneira de encarar a vida nos territórios onde vivem. Para quem quiser assistir e/ou ouvir o que foi dito nas mesas desses dias, aqui está o enlace com vídeos e áudios (em espanhol, “castilha”, como eles chamam): https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2024/12/27/transmision-en-vivo-de-las-mesas-de-la-primera-sesion-de-los-encuentros-de-resistencia-y-rebeldia/

Governos de diferentes cores vêm insistindo em favorecer a fragmentação dos territórios comunais e sua transformação em propriedades individuais ou familiares. Já no Peru durante o governo Velazco Alvarado (1968-1975) partia da entrega de terras a famílias individuais, visando a reforma agrária clássica. No México, criaram-se dispositivos legais que dão acesso à propriedade individual da terra dos ejidos (terras comunais), pela fragmentação da mesma. Ao mesmo tempo, e já se antecipando à miséria que a privatização de terras geraria, criaram políticas de distribuição de renda. Assim, os agricultores deixaram de plantar nessa terra fragmentada e, em muitos casos, a malvenderam, dependendo das políticas sociais compensatórias do Estado.

Os zapatistas convivem em seus territórios com aqueles que aceitam essas políticas e que apoiam os partidos eleitorais como o tradicional Partido Revolucionario Institucional (PRI) ou o atual partido governante Movimento de Regeneración Nacional (MoReNa). Chamam os que apoiam os partidos de “partidistas”. Os zapatistas cultivam a terra em comum e agora permitem que os filhos dos que aceitaram a fragmentação da terra em títulos de propriedade plantem junto com os zapatistas. Não podem reivindicar a propriedade dessa terra, que é comum. Os zapatistas agem como “guardiões” da terra, e não como seus proprietários. A condição para plantar com eles é respeitar uma série de princípios, como não usar veneno e respeitar os ciclos biológicos. Podem colher o que plantaram, mas não ficarem com a terra para si.

Os zapatistas vêm longe. Sabem do colapso em cujo cone de sombra já entramos. Eles o chamam de “tormenta”. Então, querem projetar o que fazer “o dia depois da tormenta”. Para alguns, a tormenta já arrasou com todos os planos, como aconteceu com esses que perderam a terra. Para eles, os zapatistas oferecem “o comum e a não propriedade”. E vêm se reorganizando para tomar decisões em comum, não delegando essas decisões em outros, mesmo escolhidos. Porque não são escolhidos para pensar por todos, mais bem são escolhidos para comunicar. As propostas vão e vêm das comunidades para instâncias mais abrangentes, e depois, quando aparecem as diferentes propostas, voltam às comunidades para, então sim, deliberar. As coisas são mais lentas. Mas a autonomia dos territórios é reforçada. As soluções criativas dos zapatistas servem para eles. Nos outros territórios, teremos que inventar outras maneiras. Eles apenas divulgam como vêm fazendo. Acharam um jeito de reverter o sequestro das almas que o Estado e o capital vêm realizando conosco. E propõem, isso sim, que nos preparemos para “o dia depois da tormenta”.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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