O Cotidiano Representado em Dois Perdidos Numa Noite Suja

Plínio Marcos concluiu a escrita da peça teatral Dois perdidos numa noite suja em 1966. A peça é inspirada no conto Il terrore di Roma (O terror de Roma), de Alberto Moravia, publicado em 1954. Nas duas obras, dois sujeitos na condição de lumpen proletários assaltam um casal de namorados em uma praça. A princípio, a ideia era não ferir ninguém no ato criminoso, mas acabam acertando violentamente o rapaz com um pedaço de madeira. Enquanto o conto de Moravia é carregado de humor e confusões, a peça de Marcos faz uma densa descrição da vida desses sujeitos e de como estão ambos submetidos a um cotidiano desenhado pela lógica da mercadoria. As personagens são Paco e Tonho, que dividem um quartinho numa pensão barata, cenário rubricado da seguinte forma pelo dramaturgo:

Cenário

Um quarto de hospedaria de última categoria, onde se veem duas camas bem velhas, caixotes improvisando cadeiras, roupas espalhadas etc. Nas paredes estão colados recortes, fotografias de time de futebol e de mulheres nuas. (MARCOS, 2016, p. 44)

Os dois rapazes fazem “biscates” no mercado central como carregadores de mercadorias. Embora a peça não defina em qual mercado fazem tais biscates, pressupõe-se que seja na cidade de Santos, onde o autor nasceu, viveu a maior parte de sua vida e ambientou a maioria de seus textos. Deve-se destacar que Plínio Marcos frequentou as zonas portuárias, bares e prostíbulos que atendiam marinheiros, estivadores, carregadores, pequenos comerciantes, marreteiros, ladrões, batedores de carteiras, prostitutas e afins, uma certa marginália comum ao ambiente portuário naquele período. Assim, as vidas das personagens e de outras citadas na peça giram em torno da circulação das mercadorias, estão submetidas aos seus horários de chegada e de partida, bem como às quantidades e qualidades. Mas a mercadoria está presente também em formas mais sofisticadas e subjetivas: apesar da pobreza em que vivem, Paco possui um par de sapatos elegantes, novos e ainda brilhantes, que ele alega ter ganho em troca de uma flauta que possuía e que tocava bem. Tonho, por sua vez, pede constantemente que Paco lhe empreste os sapatos, diz que veio do interior à procura de trabalho digno, já que em sua cidade não se encontra mais emprego em nenhum lugar, mas que, infelizmente, ainda não encontrou nada adequado e que nem vai conseguir se não tiver um bom par de sapatos para participar de entrevistas e testes de trabalho. Em uma das falas, a personagem Tonho diz:

TONHO: (…) Sabe, às vezes eu penso que, se o seu sapato fosse meu, eu já tinha me livrado dessa vida. E é verdade. Eu só dependo do sapato. Como eu posso chegar em algum lugar com um pisante desses? Todo mundo a primeira coisa que faz é ficar olhando para o pé da gente. (MARCOS, 2016, p. 57)

Há, portanto, dois sentidos no par de sapatos. Primeiramente, seu valor de uso: os sapatos que Tonho usa estão gastos, furados, Paco chega a escarnecer deles dizendo “Daí, um cara joga a bia de cigarro, o trouxão não vê e pisa em cima. O sapato do cavalão é furado, ele queima o pé e cai da panca”. Os sapatos novos, evidentemente, serão confortáveis e protegerão seus pés. Mas há também um valor simbólico: os sapatos novos e brilhantes representam uma condição de vida, o valorizam como pessoa, o distinguem dos demais sujeitos com quem compartilha aquela condição de vida. A todo momento Tonho repete que estudou, que sabe datilografia, que terminou o ginásio e que estar naquela situação é apenas uma contingência da qual logo sairá. Mas, para isso, precisa de sapatos novos. É interessante e representativo que a personagem não alude ao conjunto de suas vestimentas, elas não estão em tela, apenas os sapatos novos, eles se tornaram o seu único objeto de desejo.

Outro ponto a destacar na peça é a relação que as duas personagens estabelecem com a personagem Negrão. Embora não apareça em cena, este se torna um dos principais elementos da peça: Paco avisa Tonho que o Negrão, moço muito alto e forte, está com raiva dele, pois, quando Negrão faltou ao trabalho, Tonho ficou em seu lugar e, agora, Negrão quer que Tonho lhe entregue metade do dinheiro que recebeu pelo serviço. Tentando apaziguar a situação e não entrar em brigas, Tonho lhe entrega a metade do dinheiro recebido. Em reação a isso, Negrão começa a bradar que Tonho é um frouxo e que não vai mais trabalhar, mas sim colocá-lo em seu lugar nos serviços e dele cobrar a metade do dinheiro, como um gigolô faz com uma prostituta. Por isso, Tonho começa a ser chamado de “boneca do Negrão”. A situação aumenta o desespero de Tonho por conseguir sapatos novos para buscar emprego e moradia dignos e condizentes com o que acredita ser sua natureza social. Vendo-o nesse desespero, Paco o convence a ser seu comparsa, assaltando um casal qualquer que vá à praça namorar. 

Dessa maneira, a peça do dramaturgo santista traz à cena um cotidiano já todo determinado pela mercadoria e a lógica de sua circulação. Não se trata apenas de uma sociedade em que mercadorias estão presentes e integradas às dinâmicas da vida das pessoas, como produtos para uso e consumo. São as vidas das pessoas que estão submetidas e condicionadas pelas mercadorias: seus horários, seus corpos e seus desejos giram em torno delas, tanto no que concerne à sua materialidade quanto ao que respeita aos seus significados. Assim, a mercadoria, em suas diversas dimensões, constitui as mediações da vida social. Não há uma vida a ser vivida, mas sim vidas a serem consumidas pela mercadoria, formando, assim, um cotidiano.

Mas, ainda assim, conforme Lefebvre, mantém-se a tensão entre as possibilidades do humano e o cotidiano formado pela lógica da mercadoria. Embora confuso e tomado pelas representações dessa lógica, o desejo de Tonho é poder realizar suas capacidades humanas, escapando assim das dinâmicas do cotidiano formado pela mercadoria. Na peça, esse desejo não se realiza: após realizarem o assalto, Tonho percebe que os sapatos roubados não lhe servem e Paco tenta se aproveitar para ficar com a maior parte dos demais objetos roubados. Depois de discutirem, Tonho termina por matar o comparsa disparando contra sua cabeça. Após o feito, assume uma nova personalidade, deixando para trás o desejo de superar a situação em que se encontram, dizendo:

Se acabou, malandro. Se apagou. Foi pras picas. (Paco vai caindo devagar. Tonho fica algum tempo em silêncio, depois começa a rir e vai pegando as coisas de Paco.) Por que você não ri agora, paspalho? Por que não ri? Eu estou estourando de rir! (Toca a gaita e dança.) Até danço de alegria! Eu sou mau! Eu sou o Tonho Maluco, o Perigoso! Mau pacas!”

De alguma forma, Tonho assume um lugar nesse cotidiano formatado pela lógica da mercadoria. Neste mundo, a posse de uma arma e o desprendimento necessário para ser o “maluco”, o “perigoso”, são ativos que conferem força e valor.

Embora o final da peça traga à cena personagens que não escapam a esse cotidiano, o objetivo de Plínio Marcos é justamente escancarar essa lógica social, desnudá-la, colocando-a em evidência. O cotidiano formado pela lógica do consumo dirigido constitui-se em diversas camadas e construtos, e as dinâmicas e personagens apresentadas pela peça de Marcos constituem alguns de seus níveis mais obscuros e baixos, aqueles que ficam escondidos sob o fetiche que invisibiliza as relações de produção e circulação das mercadorias. Justamente por isso, evidenciar tais relações é parte da estratégia necessária para superar e transformar o cotidiano que formam. Se Lefebvre afirma que o humano só poderá ser atingido pelo cotidiano, a arte, como o teatro de forte cunho de denúncia social de Plínio Marcos, é um dos instrumentos necessários para esse movimento. Neste sentido, podemos ampliar nossa reflexão abarcando agora não apenas o conteúdo da peça teatral Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, mas também o entendimento do esforço do dramaturgo em escrevê-la como uma forma de superar o cotidiano vivido por pessoas concretas submetidas às situações como as vividas pelas personagens Paco e Tonho. Assim, ao mesmo tempo em que a peça descreve o cotidiano formado pela lógica do consumo, ela também é o esforço de subverter essa lógica pelo seu desvelamento e sua denúncia, ações necessárias para a superação da alienação e do fetiche que dão forma e sentido ao cotidiano

Luiz Carlos Checchia

Historiador, doutor em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela FFLCH/USP, dramaturgo e diretor teatral. Co-fundador e integrante da Cia Teatro dos Ventos.

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