O enigma Queiroz

O silêncio é decisivo para qualquer miliciano. Segredos são levados para o túmulo, caso contrário, se revelados, levam ao túmulo. O silêncio é igualmente essencial para os que vivem sob o jugo da milícia. Assassinatos, desaparecimentos forçados, extorsões, subornos, construção de imóveis com dinheiro de gabinetes parlamentares, repasse de salários de assessores para terceiros investirem em negócios ilegais se sustentam pelo silêncio. O corpo desaparecido após confronto com milicianos pode ser encontrado, preso a um tronco, dentro do rio. Será solto para seguir a correnteza por aqueles que não querem ter o mesmo destino. O silêncio é o grande companheiro do medo.

Esse silêncio é mais forte quando não existe, mas se impõe a todos. De tal forma que todos sabem do ocultado, mas ninguém o explicita. Um miliciano anda tranquilo pelas ruas onde mata, desaparece com pessoas e achaca seus moradores. Todos o cumprimentam e sabem quem ele é. Paira naquele lugar a nítida névoa da farsa. Uma encenação humilhante ensejada pela necessidade de sobreviver. É a tortura emocional cotidiana dos totalitariamente mantidos nos campos de concentração sem arames farpados das favelas, periferias e bairros dominados pela milícia. O ato miliciano é invisível, protegido por todo poder que emana da sua posição dentro do Estado, da autoridade investida, da relação com a estrutura política, do seu acento entre os pares nas Câmaras de Vereadores, nas Assembleias Legislativas, no Congresso Nacional e nos executivos.

A intimidade partilhada entre Fabrício Queiroz, Flávio Bolsonaro e Jair Bolsonaro comporta segredos. Préstimos, empréstimos, pagamentos e movimentações financeiras fazem parte do convívio discreto. Tão público que se torna um segredo de Estado, cuja revelação lesaria os interesses ou brio da Nação, mantido pelos seus guardiões: o judiciário e as forças armadas, defensores da moral, dos bons costumes, da família e de Deus contra o degenerado mal dos esquerdistas, comunistas, indígenas, quilombolas, movimentos antirracistas, antilgbtifóbicos, de posseiros, de comunidades periféricas e faveladas, de sindicatos de trabalhadores e de partidos de esquerda.

Desse modo, um golpe midiático-parlamentar-jurídico se transforma em impeachment, a fraudulenta condução de um processo judicial vira a grande bandeira de uma nação contra a corrupção, o alijamento ilegal de direitos políticos eleitorais se torna pleito democrático, a intervenção em órgãos de controle, entre eles a Polícia Federal, em proteção dos amigos, o esconderijo de um criminoso em hospedagem fraterna e o estar no âmago da milícia em partilha entre homens de bem.

O enigma Queiroz está no fato de ser quem é e não fazer a menor diferença, pois o segredo de milícia e o segredo de Estado se tornaram um só. Claro que isso não é uma novidade na história da grande Nação. A aliança entre os notáveis e a canalha assassina sempre existiu. Caçadores e assassinos de indígenas e negros viraram heróis nacionais, grupos de extermínio, torturadores e matadores da ditadura empresarial militar de 1964 foram homenageados com nomes em lugares públicos, com sucesso econômico, vitórias eleitorais e prestígio social. Logo, Queiroz é a atualização moderna dessa tradição. Ele é a confissão dos donos do país sobre a sombra que ilumina suas almas bem intencionadas na busca pela salvação da pátria. O enigma Queiroz nada mais é que o enigma Brasil.

Não se pode esperar dos “salvadores da pátria” qualquer atitude para além do silêncio, pois eles o construíram. O enigma que devora a Nação não pode ser desvelado pelos que se alimentam dele. A carne negra, indígena, pobre, lésbica, gay, transexual, intergênero, feminina, infantil de corpos estraçalhados pelos carniceiros no extermínio legal de operações policiais e da ação ilegal dos grupos de extermínio, pavimentam a estrada do sucesso político eleitoral e da manutenção dos grandes grupos econômicos. Eles não estão nem aí para os 50 mil ou 100 mil mortos pela pandemia, dos que estão entregues à própria sorte pela ausência de políticas públicas de saúde. Contanto que a economia continue funcionando e dando lucro e contanto que as emendas parlamentares e verbas federais de saúde contemplem os currais eleitorais dos sustentadores do governo robôs permanecerão disparando fake News no gerenciamento da ignorância humana que o conservadorismo, fanatismo e charlatanismo financiam.

A única saída é mergulharmos no cerne do silêncio. Este lugar oculto de nós mesmos. No mundo em que vivemos assassinos, torturadores, jagunços, matadores e milicianos desde sempre, e mais recentemente, desde os anos 1960, convivem desenvoltamente entre nós como benfeitores, personalidades políticas e homens de bem. Não é possível aceitar que a autoproclamada esquerda, que uma vez ocupou o governo central do país e os abraçou amistosamente como companheiros em busca de sucesso eleitoral e, por incrível que pareça, apresentam-se hoje ainda como alternativa, não faça qualquer autocrítica, como se uma volta a essa convivência fizesse tudo ser resolvido. Quanto mais próximo do sol mais intensa é a sombra, quanto mais próximo da verdade, mais dolorosa se faz a mentira. A verdade, entretanto, mora no íntimo da sombra, logo, não há saída, só atravessando-a se consegue superá-la. Uma Nação assassina não pode ser uma Nação salvadora, sem mergulhar no sangue dos que morrem a cada dia e olhar-se nos próprios olhos diante do espelho do seu passado. Nesse movimento, só há um guia, aqueles que sentem na carne, mente e espírito o sofrimento da brutalidade dos que se alimentam de suas vidas. Eles são a força criativa que deveriam mover a política, mas que foram silenciados. Ouvi-los, ter intimidade com eles, confessar-se e ouvir suas confissões, recolher pelo chão em que andam os segredos que os fazem viver é a grande tarefa de uma Nação que ainda não nasceu. Que apenas balbucia os nomes dos que a construíram e hoje germinam do ventre da terra para a colheita de outra sociedade, dessa vez igualitária, solidária e humana, enfim.

José Cláudio Souza Alves

Professor Universitário, doutor em Sociologia. Autor do livro: "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense"

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