O futuro do bolsonarismo

Jair Bolsonaro foi derrocado da cadeira presidencial, mas o bolsonarismo saiu vitorioso deste pleito

Recém encerrado o pleito eleitoral de 2022, a esquerda brasileira comemora o que tem chamado de vitória sobre o fascismo. No entanto, a histórica militante comunista Clara Zetkin já havia alertado, em documento à Internacional Comunista, publicado em 1923, que o fascismo não se vence apenas militarmente – é preciso vencê-lo também política e ideologicamente. Nos dias de hoje, atualizamos o alerta da camarada Clara Zetkin, dizendo que tão insuficiente quanto a vitória militar é também a eleitoral. Jair Bolsonaro foi derrocado da cadeira presidencial, mas o bolsonarismo saiu vitorioso deste pleito, na mesma medida em que o lulismo foi derrotado, ainda que Lula tenha sido eleito o novo presidente da República.

Vejamos.

O lulismo

O lulismo é uma formulação contraditória, que atua por meio da composição de acordos e arranjos nas distintas pontas dos interesses políticos do país. Assim, por um lado, garante o atendimento da agenda econômica da grande burguesia enquanto, por outro, atende à agenda social mais imediata da população. Com isso, assegura a pacificação das disputas entre as classes, garantindo a manutenção de seus governos e evitando qualquer sorte de ruptura, quer por meio de golpes pelo alto, quer por revoluções por baixo. Seja como for, essa lógica faz do Partido dos Trabalhadores um instrumento político controverso e contraditório, que tenta equilibrar muitos pratos ao mesmo tempo.

Pode-se pensar que se trata de um partido social-democrata tropical, mas não chega a tanto, pois o que é genericamente chamado de social-democracia é uma forma histórica específica, edificada em um contexto único, o pós-Guerra, que surgiu em países com uma sólida sociabilidade burguesa, com classes trabalhadoras politicamente ativas e num processo de reconstrução das nações da Europa ocidental. E, ainda, que contava com os recursos fartos do Plano Marshall, enquanto lutava contra um suposto risco de sovietização daquela região europeia.

Não podemos menosprezar que, naquela ocasião, a União Soviética era reconhecida como o principal ente da coalizão que venceu a máquina nazifascista, e, por isso, atender às demandas da classe trabalhadora, naquele contexto, foi uma necessidade do imperialismo para mantê-la distante de qualquer ímpeto socialista. Tal arranjo permitiu a formação de Estados fortes, atuantes, em condições de mediar com certo sucesso as relações entre o capital e o trabalho, realizando massivos investimentos tanto na infraestrutura quanto na subjetividade coletiva, sobretudo nos campos da educação e da cultura.

A social-democracia, no entanto, encontrou seu fim com a crise do petróleo nos anos de 1990, não resistindo ao colapso dos chamados “30 anos dourados”. Ainda assim, boa parte de seu legado perdurou por muito tempo na forma de direitos assegurados, instituições e arranjos políticos garantidos. Mas, sobretudo, é importante ter consciência de que a social-democracia como a imaginamos não ocorreu em todos os países nem foi isenta de retrocessos e crises.

Quando se sentou à mesa do gabinete presidencial pela primeira vez, Lula não encontrou as mesmas condições econômicas, sociais e culturais que havia na Europa pós-Guerra. Nem baseou seus mandatos, assim como Dilma Rousseff tampouco fez, na constituição de direitos, instituições e arranjos políticos capazes de modernizar a nação, visando formar uma sociedade em que a maioria de seus cidadãos compartilhem uma convivência de classe média. Por isso, em nenhuma hipótese é possível pensar o lulismo como alguma ideia de social-democracia.

Ao contrário disso, os governos do Partido dos Trabalhadores empreenderam esforços em criar uma sociedade assentada no consumismo popular de bens de baixa complexidade e no entretenimento rasteiro. Também se preocuparam em garantir o atendimento dos interesses das burguesias industrial, comercial e financeira por meio de programas de repasse de recursos públicos às empresas privadas, isenção de impostos e endividamento crônico de boa parte da população. Para que tudo isso acontecesse sem sobressaltos foi determinante o momento de extraordinário aquecimento do mercado das commodities, situação que garantiu recursos suficientes para ocultar o monstro que se formava na economia nacional.

Era uma verdadeira pax petista, cujas raízes mais profundas eram os acordos fechados com o baixo clero do Congresso. Isso porque, para que o PT conseguisse governar, era necessário isolar o PSDB, então seu principal oponente. Optando por não assegurar sua força política na mobilização popular, os governos petistas assentaram-se no apoio parlamentar dos políticos dos partidos do baixo clero, o que foi feito com distribuição de ministérios e cargos de segundo e terceiro escalões, bem como com a concessão nem sempre republicana de verbas públicas para seus líderes e partidos, além da manutenção de muitos mecanismos de corrupção já incorporados na relação entre o Executivo e o Legislativo. As consequências de longo prazo desses acordos foi o fortalecimento político do centrão, que se nacionalizou e estabeleceu uma agenda política própria.

Assim fortalecido, o centrão aguardava apenas uma oportunidade para deixar de ser tutelado pelos governos petistas e tomar, ele próprio, as rédeas da nação. Essa oportunidade apareceu com o clima antigoverno que surgiu a partir dos atos de 2013. Aproveitando-se do discurso legítimo do início daquelas manifestações, as forças golpistas souberam parasitar as pautas das ruas mudando seus sentidos e provocando um clima de forte desconfiança contra o governo. Como consequência, constituiu-se um congresso ainda mais conservador e auto-ativado a partir das eleições de 2014. Esse é parte do contexto que levou à deposição do governo de Dilma Rousseff, à prisão de Luiz Inácio Lula da Silva e à ascensão de Jair Messias Bolsonaro. No geral, esse foi o processo de esgotamento e colapso do lulismo.

O bolsonarismo

Assim como o lulismo, o bolsonarismo é um arranjo esdrúxulo, e em sua origem congregava amplos setores da pequena-burguesia (sobretudo do alto funcionalismo público, como o judiciário e as forças armadas), líderes religiosos cristãos, conservadores, militaristas, policiais, milenaristas, lavajatistas e outros. Por mais que parecesse um amontoado sem muito futuro, esse arranjo soube aproveitar-se do esgotamento do lulismo e do isolamento do PSDB para levar Jair Messias até a presidência da República. Instalado no Palácio da Alvorada, o novo presidente não se satisfez com o arranjo heterodoxo que o levou ao poder: provocou expurgos e promoveu novas lideranças e grupos, dos quais destacamos os caminhoneiros organizados e com poder de parar o abastecimento do país em poucas horas, e os CACs, como são chamados os “caçadores, atiradores esportivos e colecionadores de armas”, que podem se converter em um exército bem armado e sem receios de atirar em público.

Os analistas políticos – e sobretudo a esquerda brasileira – têm sido displicentes em relação ao bolsonarismo.  Quando as pesquisas pré-eleitorais, ainda em 2017, apontavam que não mais que 6% dos eleitores tinham intenção de votar em Bolsonaro, era comum os analistas dizerem que não havia risco de ele passar desse limite. Depois que sua pré-candidatura avançou muito além desse patamar, falaram que ele não poderia chegar ao segundo turno. Após se tornar o concorrente direto de Fernando Haddad, afirmaram que ele não conseguiria se eleger.

Mas, encerrada a contagem de votos, em outubro de 2018, Bolsonaro foi declarado vencedor com 57 milhões, 797 mil e 847 votos. O Brasil acabava de eleger o candidato que proferiu discursos como: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre, hein?”, e também: “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora ou vão para a cadeia”. E ainda, “Não tem essa historinha de Estado laico não. É Estado cristão, e quem for contra que se mude. Vamos fazer o Brasil para as maiorias, as minorias têm que se curvar às maiorias”. Agora, em 2022, até que fossem apurados os votos do primeiro turno, havia uma certeza inconteste de que ele não teria uma votação maior que 25%, que seria a porção “bovina” do eleitorado. Mas a verdade foi outra: Bolsonaro perdeu, mas foi por muito pouco, e, quando deixar o governo, seu principal legado será uma nação praticamente rachada ao meio: o ex-capitão voltará à vida comum levando consigo metade do eleitorado brasileiro.

Poderíamos, ainda assim, pensar que, apesar de ser impressionante, esse capital político poderia se desfazer com certa rapidez; mas não é só isso que Jair Bolsonaro carrega sob o braço. Ele conseguiu a proeza de realizar uma das maiores, senão a maior, transferência de votos de nossa história política. Se considerarmos apenas os dez deputados mais bem votados no estado de São Paulo, maior colégio eleitoral do país, metade está diretamente ligada ao presidente, apenas dois são de esquerda e três são de centro-direita. Ainda que se comemore o pouco mais de 1 milhão de Guilherme Boulos, a votação da segunda colocada, Carla Zambelli, foi superior a 946 mil votos, ou seja, apenas 55 mil e poucos votos a menos que o líder do MTST, algo como o número de habitantes de um pequeno bairro qualquer da capital paulista.

Além disso, pertence ao bolsonarismo o deputado federal com maior votação no país, o mineiro Nikolas Ferreira, que obteve 1 milhão, 492 mil e 47 votos, muito à frente do segundo colocado daquele estado, o lulista de última hora, André Janones, que obteve a confiança de 238 mil e 964 eleitores. Também foram imensamente expressivos os resultados conseguidos no Senado, onde o bolsonarismo conquistou 20 das 27 vagas em disputa, elegendo surpreendentemente figuras como o astronauta Marcos Pontes, sem qualquer experiência política até então.

Há ainda outro fator de grande importância para a manutenção do bolsonarismo, este muito mais sensível. Logo após o anúncio do resultado final do segundo turno do pleito de 2022, Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal, sigla que Bolsonaro integra atualmente, ofereceu-lhe salário, moradia e um escritório político em Brasília, esperando assim que o ex-capitão exerça, de imediato, a liderança da oposição ao governo lulista. Esse é um acordo delicado, visto que significa a tutela dos interesses do presidente do PL pelo bolsonarismo. 

Ainda assim, se realizado por completo, garantirá a manutenção material da força bolsonarista, assegurando a estrutura material e operacional necessária para manter a coesão desse grande ajuntado de políticos, grupos e partidos sob a liderança de Jair Bolsonaro, e evitando qualquer tipo de fragmentação mais profunda ou de disputas entre possíveis interessados em assumir a liderança do legado bolsonarista.

Claro que é possível que parte desse patrimônio se perca com o novo governo. É certo que Lula lançará suas iscas no coração do baixo clero, fisgando todos os que se deixarem seduzir pelas benesses oferecidas, e provavelmente um bom número de deputados salte do barco bolsonarista. Ainda assim, quem restar constituirá um núcleo coeso e organizado capaz de fazer um barulho estrondoso. Lembremos que o bolsonarismo não opera apenas na lógica institucional: muito de sua força vem da capacidade de mobilização popular, e esse núcleo que restar, caso seja desidratada a rede bolsonarista, terá plenas condições de manter seus seguidores excitados e dispostos.

À guisa de conclusão

No geral, tudo isso assegura que o bolsonarismo continuará a ser uma força política tão atuante e mobilizada quanto foi durante o governo Jair Bolsonaro, muito além do que consegue perceber o campo progressista brasileiro. Infelizmente, uma certa ingenuidade dos progressistas brasileiros os têm impedido de ver os sinais claros de que a vitória eleitoral de Lula foi apenas um pequeno passo. Lembremos que, enquanto comemorava a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, o campo progressista pouco notou a bomba-relógio que se formou no congresso eleito naquele mesmo pleito, bem como as ganas golpistas de seu vice-presidente e os instintos pelo poder aflorados de Renan Calheiros e Eduardo Cunha, presidentes do Senado e da Câmara Federal, respectivamente, àquela época.

Talvez Geraldo Alckmin não tenha tais ganas golpistas, mas o cenário atual não é muito seguro, dado o conjunto de forças díspares que chega ao novo governo, reunindo desde a pragmática Gleisi Hoffmann, o austero legalista Aloizio Mercadante, o ex-tucano (mas sempre tucano) Geraldo Alckmin, o “caçador de cliques” André Janones, a latifundiária Simone Tebet e, ainda, setores da grande burguesia, partidos de esquerda, ativistas wokes, acadêmicos, artistas e até o elenco dos filmes da Marvel. Enfim, muitos interesses que poucas vezes caminham lado a lado, seguindo os passos de um presidente já com seus 77 anos de idade. Não deveria nos provocar surpresa até mesmo a consecução de um golpe de novo tipo, sem a derrubada do presidente, mas restringindo-o à condição de um chefe de Estado decorativo, fiador do governo e seu representante no exterior, enquanto o vice seria o responsável, de fato, pelo governo.

Aconteça o que acontecer, o que fica aparente é que o campo progressista brasileiro, destacando-se o Partido dos Trabalhadores, ainda não entendeu que há no país uma força política popular ultraconservadora, com forte penetração nas forças policiais, capilarizada entre a imensa população evangélica, com uma massa civil armada – os CACs – e disposta a atuar de forma hostil e mesmo assassina. Enfim, uma força fascista mobilizada, que controla dezenas de gabinetes de parlamentares e tem influência relativa sobre outros tantos.

Se não nos atentarmos aos alertas feitos pela camarada Clara Zetkin, certamente o bolsonarismo será um problema com o qual ainda teremos que lidar por muito tempo, com possibilidades reais de retomar o comando político do país.

Luiz Carlos Checchia

Historiador, doutor em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela FFLCH/USP, dramaturgo e diretor teatral. Co-fundador e integrante da Cia Teatro dos Ventos.

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