O gambito de Ricardo

Eu não sei jogar xadrez, infelizmente. Mas vou aproveitar o entusiasmo recente em torno da série O gambito da Rainha para traçar uma analogia possível com o último movimento da política climática brasileira, encabeçada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles1. Em sua nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) ao Acordo de Paris, enviada à ONU no último dia 8 de dezembro, o Brasil busca juntar-se a um grupo relevante de países que anunciaram compromissos de atingir emissões líquidas nulas de gases de efeito estufa entre 2050 e 2060. Para citar apenas os exemplos marcantes, União Europeia, Japão e Coreia do Sul comprometeram-se a alcançar a dita neutralidade climática em 2050. A China, em 2060.2 Biden, presidente eleito dos EUA, promete assumir compromisso semelhante para 2050. O Brasil agora propõe chegar à neutralidade em, no máximo, 2060. 

A manobra se assemelha à agora famosa jogada do xadrez porque se trata, em primeiro lugar, de uma armadilha. Em segundo lugar, porque entre jogadores experientes, a armadilha é conhecida e claramente percebida. Em terceiro lugar, porque, sendo percebida, cabe à presa decidir se cai na armadilha ou não.3 Vejamos ponto a ponto.

Por que a NDC brasileira é uma armadilha? Bem, hoje é notório, especialmente nos círculos da diplomacia internacional, que a política do governo Bolsonaro para o meio ambiente é destrutiva. O governo vem operando um desmonte da estrutura regulatória, sabotando a atividade de fiscalização e adotando um discurso que estimula (no mínimo indiretamente) práticas ambientais criminosas. A postura negligente, evasiva e desdenhosa diante dos grandes incêndios na Amazônia e no Pantanal, este ano, consolidou o Brasil como uma espécie de pária ambiental.4 O governo parece, em diversas circunstâncias, bastante confortável com esse tipo de isolamento diplomático. Na arena climática, contudo, os impactos econômicos podem ter forçado a reversão encenada de direção. O acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul – que interessa ao necroliberalismo de Guedes – está sob ameaça de não ser ratificado no parlamento europeu especificamente por causa da política ambiental de Bolsonaro.5 Indo mais longe, Joe Biden, enquanto ainda candidato, sinalizou a possibilidade de imposição de sanções econômicas ao Brasil.6 Diante disso, o gambito de Ricardo consistiria em declarar-se falsamente em busca da neutralidade climática e, dessa forma, tentar conter danos a relações econômicas fundamentais para o aprofundamento da agenda de Guedes e companhia.  Ademais, a manobra ainda vem acompanhada da exigência de acesso à polpuda soma de “no mínimo US$10 bilhões por ano para equacionar os diversos desafios que enfrenta, incluindo a conservação de vegetação nativa em seus vários biomas”.7

Naturalmente, como já indicado, a jogada é claramente percebida. Por quê? Mesmo se abstrairmos a conduta antiecológica regular do governo, o próprio documento traz elementos que mostram que o compromisso é vazio, é uma peça diversionista. Um aspecto que recebeu alguma atenção na imprensa tradicional foi o fato de a meta intermediária de redução de 43% nas emissões anuais entre 2005 e 2030 ter sido mantida. Como o dado consolidado para as emissões de 2005 foi corrigido em +33%, esperava-se que o percentual pretendido de abatimento das emissões também fosse elevado nessa revisão da NDC.8 É curioso que justamente isso tenha sido o foco da discussão ao longo dos últimos dias, já que, nesse tipo de prática, que negligencia mudanças na base de referência, o Brasil é acompanhado por todos os demais países e às vezes, inclusive, pelo próprio Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Eu gostaria de chamar a atenção para dois outros aspectos, antes de voltar ao último ponto de nossa analogia.

Primeiro, a própria escolha de 2005 como ano-base é reveladora. É verdade que ela vem desde o documento original, de 2015, mas o significado de sua manutenção é mais substantivo que o da anterior. Em 2018, o IPCC publicou seu relatório especial Global Warming of 1.5oC, em que, entre muitas outras coisas, delineava trajetórias de redução das emissões compatíveis com a meta de limitar o aquecimento do planeta a no máximo 1.5oC acima dos níveis ditos pré-industriais.9 Nessas trajetórias, o ano-base é sempre 2010, que vem sendo usado como referência principal desde então. Por que usar 2005, então? Porque 2005 foi nosso pico de emissões. As emissões de 2010 estiveram 23,7% abaixo das de 2005. Logo, uma redução de 43% em relação a 2010 exigiria um patamar consideravelmente menor de emissões em 2030 e, portanto, um esforço maior. Mais que isso, as expressivas reduções obtidas pelo Brasil, ocorridas em grande parte de 2005 para 2006, concentraram-se no setor de “Mudança do uso da terra e florestas”, precisamente o setor em que o governo Bolsonaro mais acelerou o acúmulo de retrocessos. Por isso, o uso de 2005 como ano-base é conveniente porque permite veicular uma meta pouquíssimo ambiciosa como algo comparável aos compromissos mais ambiciosos. Claro, mesmo essas metas mais ambiciosas são insuficientes. Mas esse não é o tema desta coluna. O ponto aqui é: o truque é perceptível.

Segundo, a metodologia adotada para o inventário de emissões é baseada nas Diretrizes do IPCC de 2006. No entanto, tais diretrizes sofreram duas suplementações em 2013, foram objeto de extenso debate entre 2014 e 2018 e, enfim, foram atualizadas em 2019.10 Convido o(a) leitor(a) a adivinhar qual foi um dos setores que mais sofreu alterações de metodologia. Sim, o de “Mudança do uso da terra e florestas”. De novo, por mais que a NDC brasileira diga que os valores podem ser atualizados a partir de avanços na metodologia de inventário, o gambito é perceptível, uma vez que já existe um acúmulo considerável de avanços que está sendo intencionalmente ignorado.Agora podemos encerrar com o ponto final de nossa analogia enxadrista, o de que cabe à presa decidir se cai na armadilha ou não. No dia 12 de dezembro, foi realizado o Climate Ambition Summit, reunião preparatória para a Conferência das Partes da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima, a ser realizada em 2021. Como o próprio nome indica, o evento reuniu exatamente o conjunto de países com as metas climáticas mais ambiciosas. Claramente, a negativa para a participação do Brasil sinaliza que a comunidade internacional não aceitou o gambito de Ricardo. Curiosamente, a palavra “gambito” tem o sentido coloquial de “perninha” em alguns lugares do Brasil; sentido que parece também muito apropriado para o caso aqui tratado, já que a mentira de Ricardo teve, efetivamente, perna curta. 

Referências

  1. O documento que será discutido na coluna é produto do Comitê Interministerial de Mudança do Clima, em que Ricardo Salles ocupa a Secretaria Executiva.
  2.  Cf.: <https://www4.unfccc.int/sites/NDCStaging/Pages/Party.aspx?party=BRA>.
  3. Cf.: <https://super.abril.com.br/cultura/o-que-e-o-gambito-da-rainha-entenda-o-lance-de-xadrez-que-batiza-a-serie/>.
  4. O jornalista brasileiro Jamil Chade, radicado em Genebra e com escritório na sede da ONU, tem algumas colunas escritas sobre o tema: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/>.
  5. Cf.: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/07/parlamento-europeu-indica-que-acordo-ue-mercosul-nao-deve-ser-ratificado-sem-mudancas-na-agenda-ambiental.ghtml>.
  6.  Cf.: <https://congressoemfoco.uol.com.br/meio-ambiente/joe-biden-ameaca-o-brasil-com-sancoes-economicas-por-desmatamento/>
  7. Cf.: <https://www4.unfccc.int/sites/ndcstaging/PublishedDocuments/Brazil%20First/Brazil%20First%20NDC%20(Updated%20submission).pdf>
  8.  Cf.: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/12/10/brasil-fica-fora-de-evento-da-onu-que-reune-paises-que-anunciaram-metas-ambiciosas-para-reducao-de-gases-de-efeito-estufa.ghtml>.
  9. Cf.: <https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/2/2019/05/SR15_SPM_version_report_LR.pdf>.
  10. Cf.: <https://www.ipcc.ch/2019/05/13/ipcc-2019-refinement/>.

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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