Completamos 60 anos do golpe de Estado que constituiu a ruptura institucional em abril de 1964. Nessa efeméride, diversas questões relevantes se apresentam para o debate político e historiográfico. São questões que remontam ao período de 1945-1964, à crescente ação golpista das forças políticas reacionárias e conservadoras, ao papel das frações burguesas com suas contradições internas e inter-relações com o imperialismo estadunidense, à relevante organização dos militares para agirem no processo, às contradições que foram condensadas e se configuraram como crise política, etc.
Do ponto de vista da esquerda e do bloco popular e proletário, podemos afirmar que, naquele período, avançou a intervenção na luta de classes, com significativo papel dos comunistas, das novas organizações de esquerda, dos trabalhadores organizados em suas entidades, das lutas populares, do nascimento de uma forte presença das ideias do nacional e popular, do florescimento cultural e artístico, do surgimento do nacionalismo reformista, da luta camponesa em defesa da reforma agrária e pela posse da terra, da participação no debate de militares nacionalistas, do interesse em debater o sentido das “reformas de base” e o papel da mulher e do negro na sociedade de classes, entre outras questões.
Contudo, mesmo com essa enorme pauta que nos permite colocar em debate aquela cena política tão rica, optei, neste pequeno artigo, por apresentar algumas balizas interpretativas na perspectiva de tentar caracterizar o golpe e a ditadura de 1964. Talvez, essa trilha explicativa também possa contribuir para combater a explícita impropriedade do revisionismo historiográfico e sua intervenção nesta temática.
O golpe de Estado de 1964 caracteriza-se pela ação articulada de diversas frações da burguesia interna, organizadas por suas representações em entidades como a FIESP e congêneres, com a ativa participação também de entidades representativas dos latifundiários. Essa classe social (burguesia) detinha o controle de blocos de parlamentares para se fazer representar no parlamento e nos partidos da ordem a partir das diferenciadas frações burguesas.
Essas forças da ordem consolidaram no pré-1964 importante ação político-ideológica que foi desenvolvida por aparatos ideológicos, a exemplo do IPES, IBAD, ESG, segmentos reacionários da Igreja Católica e mídia corporativa, em consonância com a liderança dos militares na logística da intervenção. O pacto burguês, com total apoio do imperialismo estadunidense, foi operado e dirigido pelos militares enquanto burocracia de Estado, acima das classes enquanto instituição, de forma bonapartista para preservar os interesses burgueses. Esses militares se orientavam pela ideologia da segurança nacional, cuja centralidade era o extermínio do inimigo interno e a subordinação ao imperialismo.
Essa burocracia de Estado (militares), intervindo de forma bonapartista enquanto instituição, autonomizou-se politicamente durante o processo golpista para comandar e gerenciar (a partir de um perfil tecnocrata) o Estado capitalista em seus diversos governos. Construiu, a partir daí, uma forte intervenção na dinâmica social para controlar e tutelar as relações sociais e políticas. Portanto, esse processo político de ruptura institucional e os governos de exceção que duraram 21 anos configuraram-se como um golpe e uma ditadura burgo-militar.
Ainda no escopo dessa caracterização, faz-se necessário apresentar, mesmo que de forma sumária, as controvérsias político-historiográficas de onde partem diversas caracterizações do golpe. Nesses 60 anos foram apresentadas interpretações que tentam dar conta desse dilema. A definição de que se tratou de um golpe civil-militar perde-se na hiperavaliação da presença de segmentos sociais que teriam estimulado a movimentação militar e, ao mesmo tempo, teriam sido a base do processo golpista.
Não encontramos na pesquisa historiográfica, para além de uma difusa representação de segmentos “civis”, com participação de extratos da Igreja Católica e da “classe média” (em escassa presença), uma consistente representação de setores sociais que qualificasse essa vaga compreensão do que seja a caracterização do vetor “civil” como instrumento determinante do golpe. Além disso, nem precisar argumentar que todos aqueles que não são militares podem ser vulgarmente chamados de civis. Portanto, essa caracterização mais confunde do que desvela o papel de classe do golpe.
Uma segunda caracterização, importante pela densidade da pesquisa, informa que tivemos um golpe empresarial-militar, portanto, um golpe organizado por empresários em articulação com o IPES e os militares. A pesquisa do cientista político uruguaio, Renê Armand Dreifuss, é uma das maiores contribuições ao estudo do golpe como representação burguesa e da consequente tomada do Estado. Embora possamos entender o sentido dessa representação, o uso dessa vaga caracterização de “empresários” para identificar a presença burguesa enquanto agente da ruptura institucional não responde à qualificação classista do processo, ou talvez denote uma presença individual de homens ricos como articuladores dessa ação golpista.
Essa caracterização do golpe, como empresarial-militar, se aproxima muito mais de um tipo ideal weberiano para explicar o fenômeno, talvez pelo uso de uma aproximação com a categoria de ação social, que se baseia na intervenção individual, portanto, afastando-se do debate sobre classe, em contraponto à explicação marxista, que examina o sentido e o papel das classes sociais em disputa dentro da sociedade. Essa conceituação também enfrenta problemas se levarmos em consideração o mérito da qualificação hodierna do que seria empresário, visto hoje como um empreendedor indeterminado e policlassista.
Por fim, a pesquisa histórico-política identifica fartamente uma articulação classista (burguesia e militares) para operar, desestabilizar e romper a ordem da democracia formal. Sendo assim, caracterizo como um golpe burgo-militar o movimento que rompeu a ordem constitucional no dia 1º de abril de 1964 e estabeleceu uma ditadura que durou 21 anos no Brasil (1964-1985).
Para concluir esta reflexão, gostaria de render homenagens ao conjunto de homens e mulheres que tombaram na luta contra a ditadura e em defesa da emancipação humana, em especial aos 43 militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) assassinados pelos governos da ditadura burgo-militar de 1º de abril de 1964 a 24 de setembro de 1979:
Ivan Rocha Aguiar (PE), Antogildo Pascoal Viana (AM), Carlos Schirmer (MG), Pedro Domiense (BA), Manuel Alves de Oliveira (SE), Newton Eduardo de Oliveira (PE), João Alfredo Dias (PB), Pedro Inácio de Araújo (PB), Israel Tavares Roque (BA), Divo Fernandes D’oliveira (SC), Severino Elias de Melo (PB), Inocêncio Pereira Alves (BA), Lucindo Costa (SE), João Roberto Borges de Souza (PB), José Dalmo Guimarães Lins (AL), Francisco da Chagas Pereira (PB), Epaminondas Gomes de Oliveira (MA), Ismael Silva de Jesus (GO), Célio Augusto Guedes (BA), José Mendes de Sá Roriz (CE), Davi Capistrano da Costa (CE – membro do CC), José Roman (SP), João Massena Melo (PE – membro do CC), Luiz Ignácio Maranhão Filho (RN – membro do CC), Walter de Souza Ribeiro (MG – membro do CC), Afonso Henrique Martins Saldanha (PE), Elson Costa (MG – membro do CC), Hiran de Lima Pereira (RN – membro do CC), Jayme Amorin de Miranda (AL – membro do CC), Nestor Veras (SP – membro do CC), Itair José Veloso (MG – membro do CC), Alberto Aleixo (MG), José Ferreira de Almeida (SP), José Maximino de Andrada Netto (MG), Pedro Jerônimo de Souza (CE), José Montenegro de Lima (CE), Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior (ES – membro do CC), Vladimir Herzog (Iugoslávia), Neide Alves Santos (RJ), Manoel Fiel Filho (AL), Feliciano Eugênio Neto (MG), Lourenço Camelo Mesquita (CE) e José Pinheiro Jobim (SP).
Presentes, sempre!