O jogo imitando a vida

“O Futebol é metáfora da própria vida”[1]

“Quando você proíbe jogo de futebol, entre outras coisas, está partindo para um histerismo”. A frase de nosso “excrementíssimo” senhor presidente da república, proferida quando a OMS já havia declarado como “Pandemia” a infecção por covid-19, seria apenas mais uma demonstração de irresponsabilidade, não fosse o futebol um dos vetores de transmissão do coronavírus pela Europa[2]. A frase, portanto, é mais que irresponsável, é criminosa. O jogo entre Atalanta e Valência, ocorrido em Milão em 19 de fevereiro de 2020, levou nada menos que 45 mil apaixonados pelo Atalanta a deixarem Bérgamo, na Lombardia, em direção ao Estádio SanSiro, e esta viagem pode ter decretado o caos posterior na região, que até então não tinha nenhum caso de covid-19. Entre jogadores, 35% do elenco do Valência acabou infectado. Responsáveis ou irresponsáveis à parte, o fato é que a suspensão do futebol nos trouxe (além de insuportáveis reprises em verde e amarelo) a reflexão sobre o jogo e a vida.

O “drama” e a abstinência dos amantes do esporte mais popular do mundo pode ser prolongado. Embora este seja visto, por um lado, como forma de acalmar os ânimos e distrair multidões de solitários em seus sofás, a entidade da ONU para a saúde, a OMS, sugeriu recentemente a paralisação do futebol europeu até final de 2021, sim 2021![3] Estima-se uma perda de algo em torno de 4 bilhões de Euros caso as competições não sejam realizadas. Na América Latina as cifras são evidentemente menores, mas, como é previsível, todos vão sofrer, uns mais outros menos.

Do ponto de vista estritamente desportivo seria uma tremenda injustiça, para citar apenas um exemplo, não ver premiada com a taça da Premier League a histórica campanha do Liverpool. Tanto quanto é uma injustiça que nas discussões sobre as relações entre o vírus e o esporte leve-se em conta tão somente as modalidades masculinas. Apenas para lembrança, a Série A2 do Futebol Feminino Nacional estava apenas em sua segunda rodada, e provavelmente ninguém viu uma matéria na grande mídia a respeito. O que parece preocupar as “entidades” que dirigem o futebol são mesmo as finanças. Não se engane, para essa gente que enriquece com o esporte sem nunca ter calçado uma chuteira, quando se fala em “futuro do futebol” deve-se entender “finanças do futebol”. E a preocupação com isso é total.

Poucos são tão desatinados ao ponto de pedir, simplesmente, que os campeonatos continuem, embora eles existam, e existam até campeonatos que não pararam. Há aqueles que defendem (geralmente torcedores dos times que lideravam os campeonatos ao ponto em que tiveram que ser paralisados) que se encerrem as competições, e que se premiem seus “então” líderes. E quem acompanha a mídia esportiva já viu e ouviu de tudo nesse um mês sem futebol, propostas de mudanças: de formato, reintroduzindo o “mata-mata”, de calendário, igualando-se com o calendário europeu, até de local, fazendo todos os jogos em sequência em uma única cidade “sede”, e, é claro, a redução dos salários de jogadores[4], a supressão dos estaduais, etc.

É bom lembrar que quando se fala em jogador de futebol nossas atenções em geral se voltam para os craques, aqueles que prendem a atenção e a mídia em torno de seu talento e que são por isso muitíssimo bem pagos, mas eles não representam sequer 1% do universo do futebol. A grande maioria dos jogadores de futebol, homens e mulheres, quando recebem, recebem pouco e serão esses os grandes perdedores nessa pandemia. Portanto, quando se pensar em jogadores e clubes de futebol, como ademais na vida, é preciso pensar em que “divisão” eles jogam e dirigir nossa indignação para o lugar correto.

 Os ricos, clubes e jogadores, se dividem entre a ostentação e a “solidariedade[5]”. Tomando a imagem do melhor jogador brasileiro em atividade como exemplo, podemos ver como se comporta esse estrato futebolístico. O Barcelona pode fechar a re-contratação de Neymar e fazer o “maior negócio” da história do futebol, com cifras astronômicas. Barcelona, Real Madrid, Manchester United certamente não terão abalos significativos, apenas diminuição de lucros, são como os ultra milionários que verão a pandemia acomodados confortavelmente em seus iates. São o 1%. Jogadores que podem abrir mão do salário ou convertê-lo em auxílio aos profissionais do clube, como muitas equipes estão fazendo. O exemplo de solidariedade mais intrigante desses tempos vem do México: a MX, liga mexicana, defende que por cinco anos não haja o sistema de rebaixamento e promoção de times, com o argumento de que isso promoveria o futebol na segunda divisão, permitiria seu fortalecimento e infraestrutura, que no caso dessa liga, é critério para que um time dispute a primeira divisão da MX.

Os times mais ricos do continente sul-americano certamente sofrerão interrupções em seus lucros, alguns terão que deixar de pagar os salários milionários de seus atletas mais bem pagos, talvez reduzir os muitos componentes de suas comissões técnicas, mas o que seria urgente é uma discussão sobre os superssalários, não tanto o de jogadores, mas de dirigentes. Apenas para citar um exemplo premiado, o Cruzeiro, gigante mineiro rebaixado para a Série B na última edição do brasileiro, tinha “gerentes” com salário na casa dos milhões, e em que isso ajudou o clube? E se forem reveladas as folhas de pagamento de dirigentes ao invés de jogadores, a onda de indignação pode ter algum resultado positivo.

Entre os times “médios” (por mais que no Brasil ninguém goste de ser chamado assim) a crise já assume dimensões de catástrofe. O atual líder do campeonato paulista, o Santo André F.C., para dar outro exemplo, teme não conseguir voltar a jogar essa temporada[6] e já dispensou atletas. E esse não é um caso isolado. A grande maioria das agremiações tem uma disputa por ano, os estaduais, na outra parte do ano vivem de suas categorias de base, que estão também extremamente ameaçadas de descontinuidade, muito mais impactante para os jogadores em formação. Mas novamente, como em geral no capitalismo, a questão que se coloca como urgente em “mesas de debate” é: como salvar os “grandes demais para quebrar”? Os “médios” estão entregues à sua própria sorte[7].

Mas de longe a situação mais preocupante é a dos times pequenos ou muito pequenos. Para esses o risco é a extinção! Mesmo sem pandemia a sua situação em nada comove a CBF e a emissora que “cuida” do futebol nacional[8]. Com a situação ainda mais agravada pela pandemia e pela inevitável suspensão dos jogos, o temor é de um desaparecimento em série de clubes que, embora tradicionais, estão quebrados. Esses clubes dependem quase que totalmente da formação de atletas e toda a cadeia de formação e descoberta de talentos que sempre marcou o futebol nos interiores pode estar definitivamente ameaçada.

            A maior ameaça, além da extinção de times, é a ampliação do poder da Rede Globo sobre as equipes. Os “cenários” estudados para a volta do futebol em sua maioria preveem jogos sem público, por motivos óbvios, o que traz como consequência a ampliação da importância das “cotas de tv” para a sobrevivência financeira dos clubes, grande e médios, uma vez que os pequenos já se encontram delas excluídos. O que piora o caso brasileiro é a inexistência de uma liga, que poderia lutar e promover uma proteção aos clubes, pelo bem do futebol. No salve-se quem puder da crise, o que deve imperar é o darwinismo esportivo, com os times do Sul e do Sudeste ampliando ainda mais a sua fatia do bolo. Pior para o futebol nacional. A falta de uma liga que defenda todos os clubes (e não apenas uma minoria) ampliará ainda mais a assimetria regional e financeira. Nenhuma novidade no país em que o Governo Federal libera em segundos alguns trilhões para banqueiros e segue “analisando e analisando” semanas a fio antes da liberação de 600 reais para sua população, que espera… Bola pra frente!


[1] Roberto Damatta

[2] https://www.goal.com/br/not%C3%ADcias/atalanta-x-valencia-jogo-da-champions-pode-ter-ajudado-na/1h9w4l9x0uk4n1gs97hebb3to7

[3] https://veja.abril.com.br/placar/exclusivo-oms-sugere-paralisacao-do-futebol-europeu-ate-o-final-de-2021/

[4] https://veja.abril.com.br/placar/coronavirus-atletas-aceitam-ferias-em-abril-mas-rejeitam-reduzir-salario/

[5] https://trivela.com.br/barcelona-vendera-naming-rights-do-camp-nou-e-doara-o-dinheiro-a-pesquisas-sobre-o-coronavirus/

[6] https://globoesporte.globo.com/futebol/times/santo-andre/noticia/santo-andre-considera-nao-jogar-mais-o-paulistao-caso-torneio-demore-a-voltar-seria-injusto.ghtml

[7] https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/6876538/sao-caetano-que-ja-foi-vice-do-brasil-e-da-libertadores-agora-desiste-da-serie-d-para-sobreviver-financeiramente

[8] https://rodrigomattos.blogosfera.uol.com.br/2018/01/22/futebol-brasileiro-tem-desaparecimento-de-44-clubes-em-2017/

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia, lateral do Ponta Firme FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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