O novo, o velho e o retrocesso

Por Marinalva Oliveira e Marino Mondek

Em recente entrevista ao programa Novo Sem Censura1, da TV Brasil, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que alunos com deficiência “não aprendiam” e “atrapalhavam” o aprendizado de outras crianças, uma vez que “a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento para dar a ela atenção especial”.

Primeiro, é importante analisar a fala do ministro, vinculada à dinâmica das políticas sociais e educacionais da hegemonia do modelo societário e suas articulações com interesses antagônicos e os complexos processos sociais que com eles se confrontam. Para Evangelista e Shiroma (2019), compreender o sentido de uma política pública de caráter social e educacional ultrapassaria sua esfera específica e implicaria entender o significado do projeto social do Estado como um todo e as contradições gerais do momento histórico em questão. A política pública é abrangente e não se limita a leis e regras. A política pública é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados. A política pública, embora tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo prazo. 

Em qualquer debate sobre políticas públicas é necessário localizá-las no cenário dos projetos societários em disputa. Segundo Boneti (2011, p.18), as políticas públicas constituem-se no “resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelecem no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil”. Essas relações incidem diretamente no direcionamento das ações que apresentam respostas dos governos às demandas, problemas e conflitos que surgem em um grupo social, sendo esse o produto das negociações entre os diferentes interesses, para manutenção de uma ordem. 

Assim, a fala do Ministro sobre a segregação das pessoas com deficiência não é isolada, pois faz parte do curso da história, onde os direitos das pessoas com deficiência, apesar de existirem em legislações, convenções etc., nunca foram cumpridos e respeitados. Os sucessivos governos não asseguraram as condições necessárias para garantir os direitos das pessoas com deficiência, como a inclusão com acessibilidade e permanência, que não é assegurada na prática, ainda que o seja nas leis. Entretanto, em razão da luta das famílias e do movimento das pessoas com deficiência, algumas questões avançaram timidamente, mas ainda de forma insuficiente. Um desses avanços foi o fim da segregação em escolas especiais e o direito de frequentar escolas regulares. Ocorre que, como em toda política de conciliação de classes, as pessoas com deficiência conquistaram o direito à escola regular, porém os governos não disponibilizaram condições adequadas, como acessibilidade pedagógica, comunicacional, formação de professores, professores de apoio etc., ou seja, na prática, não houve investimento em recursos financeiros e humanos, e ganhamos uma política no papel e não um direito social efetivo. Com isso, surgiu o falso discurso de algumas famílias e também de defensores da escola especial (por vários motivos, inclusive pela disputa do fundo público), de que algumas pessoas com deficiência precisam de escola especial, portanto a política de inclusão na escola regular FALHOU. O que falhou não foi a política, pois sequer foi implantada em sua totalidade. O que falhou foi a proposital ausência de recursos financeiros, melhoria nas condições de trabalho dos docentes, formação inicial e continuada, atendimento educacional especializado com equipe multidisciplinar etc.2

Com este falacioso discurso de que alunos com deficiência “não aprendem na escola regular” e que “os professores e a escola não estão preparados”, em setembro de 2020 o Governo Bolsonaro impôs mais retrocessos na política educacional das pessoas com deficiência, através do Decreto nº 10.502. O Decreto Federal representa um retrocesso político-ideológico e uma violação de direitos humanos na medida em que carrega uma concepção discriminadora e que responsabiliza a pessoa com deficiência pelas dificuldades na inclusão escolar. Além disso, o Decreto nº 10.502/2020 apresenta conceitos retrógrados e nada alinhados ao paradigma da educação inclusiva, que é fundamentada nos princípios de uma sociedade democrática, com justiça social, cujos direitos fundamentais são garantidos para todas as pessoas, sem preconceito de qualquer ordem, seja em razão de deficiência, raça, etnia, gênero, sexualidade ou classe social. A justificativa apresentada para essa nova política foi atender à demanda de familiares de pessoas com deficiência de poder escolher entre a escola especial e a escola comum para matricular os filhos. Ter liberdade de ESCOLHA não é retornar às escolas e classes especiais, mas garantir os direitos da população no processo educacional, inclusive com ampliação de recursos públicos para efetivação da educação inclusiva. Nas possibilidades de “escolha” para as famílias, serão identificados os alunos que “não se beneficiam da inclusão”, e preocupa a definição de critérios para essa seleção, que certamente terá como pressuposto o modelo médico que perpassa de maneira transversal a proposta da Política apresentada neste decreto. 

Na mesma linha e com os mesmos argumentos, foi aprovada a lei nº 14.191/2021 no Congresso Nacional (infelizmente, com apoio de alguns parlamentares do PSOL), sancionada em 3 de agosto pelo Governo Bolsonaro, que prevê a organização e o financiamento, com recursos da União, de classes, escolas e centros exclusivos a estudantes surdos. Esta lei fere direitos, impondo retrocessos, não reconhecendo os benefícios e a potência da educação bilíngue na escola comum, abrindo precedente para outras Leis segregacionistas, com a única intenção de abocanhar o fundo público. O autor da lei, lembre-se, fez sua vida política com a pauta segregacionista das APAES.

Isso nos obriga a rememorar algumas questões fundamentais para a esquerda, em especial para aquela esquerda que entende que o papel central da vanguarda da nossa classe é organizar a nossa classe para o processo político de transformação radical das bases sociais, políticas, econômicas, filosóficas… a chamada revolução. A lei nº 14.191/ 2021 representa um retrocesso político-ideológico, assim como o Decreto, porque legitima a lógica da segregação que manteve pessoas com deficiência à margem da sociedade durante muito tempo. Além do mais, pode representar a transformação do direito à educação pública para um serviço disponível lançado ao mercado livre. Este contexto representa o cinismo que guia teórica e politicamente o modelo societário capitalista: o campo educacional torna-se um espaço privilegiado para a efetivação de uma pedagogia utilitarista e imediatista, que, sob os conceitos de autonomia, descentralização, flexibilidade, individualização, efetiva-se pela forte fragmentação dos sistemas educacionais e dos processos de construção de conhecimento (FRIGOTTO, CIAVATTA, 2001).

Nessa concepção posta tanto no Decreto quanto na Lei, a deficiência se encontra exclusivamente no sujeito, culpabilizado pela falha em seu processo inclusivo. Isso leva a crer que, se a inclusão não está sendo eficaz, deve-se retirar o aluno com deficiência do ambiente inclusivo para uma classe especial. Se o estudante não se beneficia da escola regular, a responsabilidade não é dele, mas sim da falta de mais recursos para a escola, de fortalecimento da formação continuada, de um segundo professor etc. E mais, a escolha como moeda de troca mostra a liberdade liberal e a coloca, sem levar em consideração qualquer contexto, como grande elemento da democracia. Então, este tipo de política que esvazia um projeto público e coloca a opção individual no centro do debate só fortalece o pensamento individualista e liberalizador, com alinhamento aos princípios neoliberais da individualização do direito à educação e ao conservadorismo retrógrado de segregação da educação de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. 

Liberdade de escolha não é retornar às escolas e classes especiais, mas garantir os direitos da população no processo educacional, inclusive com ampliação de recursos públicos para efetivação da educação inclusiva. Com a garantia de condições de acessibilidade e permanência adequadas nas escolas, não haverá necessidade de escolas e classes especiais para as pessoas com deficiência.

O direito à educação, pelo atual Decreto e Lei, na perspectiva da educação inclusiva, deixa de ser um direito social e passa a ser visto de uma perspectiva individualista, que provavelmente será assumida por Instituições assistenciais de filantropia, como as APAES, para abocanhar o fundo público. É importante relembrar que durante anos a verba para a educação de estudantes com deficiência foi transferida do poder público para instituições privadas. 

A nossa luta é para avançar a partir das legislações existentes e forçar os governos a criar condições de acessibilidade e permanência, para que as pessoas com deficiência tenham possibilidade de se apropriar da educação. Nenhuma pessoa com deficiência, se tiver condições adequadas, necessita de escolas e classes especiais. Portanto, se o aluno não se beneficia da escola regular, é necessário preparar a escola e professores para receber da melhor forma possível o aluno.

Esta nova política, ou melhor, este aprofundamento da política vigente, é empurrada como um novo marco na educação, em especial para as pessoas com deficiência, mas não só. Tirar as pessoas com deficiência da escola é uma perda para a sociedade como um todo. Os reais beneficiários desta política, além dos que encherão seus bolsos com ONGs e entidades filantrópicas, são aqueles que defendem uma escola meramente conteudista, que serve exclusivamente de espaço de capacitação da força de trabalho para maximizar lucros.

É preciso avançar para uma educação integral como projeto estrutural que compreende a formação humana omnilateral, unindo trabalho intelectual e trabalho manual, compreendendo os sujeitos da educação em sua inteireza e integralidade, envolvendo a dimensão da formação estética e corporal, politécnica e pluricultural, ambiental, promotora da igualdade, da democracia, da superação de toda forma de preconceito e exclusão. 

Está posto um verdadeiro retrocesso na história de luta dos movimentos sociais pela educação pública, laica, gratuita, inclusiva e de qualidade social para todas e todos. No dia 21 de setembro, dia nacional de luta das pessoas com deficiência, não iremos recuar ou mediar. Precisamos reforçar nosso projeto de educação. Por isso, é mais que imperativo reforçarmos o lema: “Ninguém fica para trás e nem volta atrás”.


Referências:

BONETI, Lindomar. Políticas públicas por dentro. 3.ed. Ijuí: UNIJUÍ, 2011.

BRASIL. Decreto nº 10.502, assinado em 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Disponível em:  https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.502-de-30-de-setembro-de-2020-280529948. Acesso em: 24 março de 2021. 

BRASIL. Lei Nº 14.191, de 3 de agosto de 2021. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.191-de-3-de-agosto-de-2021-336083749

EVANGELISTA, Olinda e SHIROMA, Eneida. Subsídios teóricos-metodológicos para o trabalho com documentos de política educacional: contribuições do marxismo. Em Trabalho e educação: interlocuções marxistas. Editado por Georgia Cêa, Sonia Maria Rummert e Leonardo Gonçalves. Rio Grande, RS: FURG. 2018. 87-124.

FRIGOTTO. Gaudêncio; CIAVATTA, Maria. Teoria e Educação no Labirinto do Capital. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

Referências

  1.  Se tiver estômago, assista aqui: https://youtu.be/6JyH4faRwpY?t=1220
  2. Se formos investigar a fundo, a falha é a precarização educacional como um todo. A falta de estrutura para a escola inclusiva é o estouro em uma das partes da corda. Lembramos que parte da esquerda brasileira comemora grandemente o novo FUNDEB em razão de que, em 2024, todas as escolas terão saneamento básico, ignorando todos os outros debates essenciais para o financiamento de uma educação em outros marcos sociais.

Marinalva Oliveira

Professora; pesquisadora na área de Aprendizagem e desenvolvimento de pessoas com síndrome de Down; Ex Presidente do ANDES-SN; Militante do Coletivo Rosa de Luxemburgo no ANDES-SN; Militante na base do ANDES-SN e dos Direitos das pessoas com deficiência.

Marino Mondek

Pedagogo, pesquisa orçamento e dívida pública, editor do Contrapoder

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