O panóptico digital e a precariedade do ensino remoto

Inúmeros estudos foram produzidos sobre a ascensão das corporações no século XX. São bastante conhecidos os estudos de Lenin (1870-1924) no livro “Imperialismo fase superior do capitalismo”, onde ele mostra a ascensão do capital monopolista. Corporações como General Eletric, Ford, dentre tantas outras filhas da 2ª revolução industrial, que criou carros, ônibus, aviões, tanques de guerra, sistemas elétricos para as cidades e fábricas, máquinas de lavar roupa, utensílios domésticos, cinemas, etc.

No século XIX Karl Marx (1818-1883) narrou as positividades e negatividades da 1ª revolução industrial na Inglaterra na época do capitalismo concorrencial. A Inglaterra foi o primeiro país a revolucionar a indústria têxtil. O brilhante Charles Dickens nos mostra em seus livros fábricas sujas, escuras, mulheres trabalhando 16 horas por dia, crianças trabalhando 14 horas por dia, e homens totalmente entregues ao trabalho por um mísero salário.

Jeremy Bentham (1748-1832) é um dos idealizadores do panóptico, um sistema visual que permite ao chefe da prisão ou da fábrica ver todos os pontos do espaço e assim tentar controlar o que está acontecendo.  Charlie Chaplin é certamente o comediante de maior genialidade do século XX. Conseguiu explorar os dramas da humanidade com uma habilidade rara, nos fazendo rir onde devíamos chorar.

Numa das cenas do filme Tempos Modernos, Chaplin não teve direito nem sequer a fumar tranquilamente um cigarro no banheiro. Seu chefe estava vendo – ao mesmo tempo – várias câmeras e abriu a do banheiro. Mandou Chaplin voltar a trabalhar imediatamente! Prenúncio do panóptico digital muito em moda na arquitetura e sistemas de controle das fábricas chinesas nos dias de hoje?

A implementação da maquinaria na 1ª revolução industrial não se deu sem resistência por parte da classe trabalhadora. O movimento luddita ou luddista, como preferem alguns teve papel fundamental na resistência a introdução da maquinaria. Eles atuaram num momento onde os sindicatos ainda eram efêmeros e pouco eficientes. Quebravam máquinas, no termo francês, sabotavam, ao jogar o tamanco (sabot/madeira) nas máquinas.

Nos anos 1960 o mundo passou por uma nova revolução industrial, que deu novo impulso às corporações, cada vez mais transnacionais e financeirizadas. Poderíamos destacar aqui a revolução computacional, a Máquina Ferramenta de Controle Numérico e a crescente automação dos sistemas fabris. São conhecidas as lutas do movimento sindical para controlar o desenvolvimento e uso destas tecnologias em países como Suécia, Noruega e Dinamarca e as lutas dos trabalhadores japoneses para impedir a introdução total e irrestrita das máquinas de controle numérico e seus sistemas de trabalho em equipe, just in time, polivalente, com autocontrole do trabalhador, com estoques mínimos, etc.

As lutas contra a energia nuclear, contra os automóveis, agrotóxicos e transgênicos passaram a fazer parte da história das lutas da classe trabalhadora e das camadas intermediárias contra a introdução destas novas tecnologias.  

Uma rápida busca na internet com o termo luddismo moderno vai permitir ao leitor verificar que dificilmente alguém quebra o computador, mas há formas de resistir ao desenvolvimento e controle absoluto das novas tecnologias digitais. Campanhas contra o Big Brother nas cidades com câmeras por todos os lados, lutas de movimentos sociais contra viveiros de sementes transgênicas, lutas pelo software livre, dentre outras fazem parte do “novo luddismo”.

Lembremos que os primeiros computadores fizeram tremer o sistema elétrico da Califórnia. Eles ocupavam um quarteirão. Os primeiros correios eletrônicos eram de uso militar. Para os padrões de hoje os computadores eram lentíssimos, grandes e pouco eficientes. Nos anos 1990 a internet deu uma grande oportunidade aos EUA, ao gerar um gigantesco mercado pelas redes. Internet, fibra ótica, microcomputadores, celulares integrados a câmeras, e-mails vídeos, deram origem a um sistema tecnológico bastante lucrativo. Acabaram com o cartão de ponto, onde você para de trabalhar e esquece o seu trabalho. Acabaram com a fronteira entre trabalho e tempo livre. Agora trabalhamos 24 horas.  

Nos anos 2000, com Facebook, Instagram, Whatsapp, Amazon, estavam dadas todas as condições para o surgimento de um perfeito panóptico digital. A diferença para as primeiras estruturas panópticas é que agora não há um chefe ou patrão que olha tudo, os computadores se encarregam disso e obviamente fornecem dados para as agências de inteligência. Não é preciso muito esforço para saber que tudo que fazemos vem sendo vigiado. O “camarada” Google sabe mais que nossa família sobre hábitos de consumo, preferências políticas, preferências alimentares, etc. Corporações capturam tudo o que você faz e como faz.

Mas daí veio a pandemia, que permitiu o crescimento exponencial de um mercado já existente, o mercado das videoconferências, da educação à distância, do ensino remoto, etc., aquecendo a compra de câmeras, computadores, redes de internet, etc. etc. No que se refere aos sistemas educacionais, lembremos que as classes possuidoras, através do Estado capitalista, tiveram uma enorme dificuldade de se apropriar do conhecimento dos trabalhadores-professores no século XX, seja nos sistemas públicos ou privados. A chamada liberdade de cátedra ou controle total da aula pelo professor foi um dos poucos campos que o capital não conseguiu penetrar e expropriar conhecimento. Porém as câmeras, os sistemas computacionais e as inúmeras investidas do neoliberalismo têm levado ao descobrimento das rotinas das salas de aula, que durante muito tempo foram consideradas um “mistério” pelo Estado e pelas corporações, em geral em função da baixa permeabilidade ou dificuldade de controle do que se ensina, como se ensina e como se avalia.

Num país como o Brasil, rasgado por inúmeras contradições como analfabetismo e analfabetismo funcional, falta de saneamento básico, multiplicação de favelas e casebres por todos os cantos do país, mas acima de tudo, instabilidade de renda e trabalho pelo povo, não é preciso muito esforço para perceber que o ensino remoto vai agravar nosso abismo educacional, gerar experiência-aprendizado para as corporações expelirem professores das universidades privadas, “otimizarem” e terem acesso ao valioso conhecimento da sala de aula nas universidades públicas.

Inúmeros secretários de educação já declararam publicamente que menos de 20% dos alunos estão “frequentando” as aulas virtuais, ou seja, um pequeno desastre! Em Universidades como a UNESP, concentradas no interior e com alunos muito humildes, a tragédia educacional do ensino remoto será visível. Se os reitores das Universidades Federais e Estaduais tivessem bom senso, o ano deveria ter sido cancelado. Atividades de extensão sobre a pandemia e vinculadas à compreensão da barbárie deveriam ser o foco.

As lutas contra a implementação desses novos sistemas tecnológicos educacionais em geral têm sido travadas nas universidades públicas de forma espontânea, individual, desorganizada, tal como no movimento luddita, numa fase anterior ao surgimento dos sindicatos. Nas universidades privadas, robôs passam a substituir professores. Aulas são trocadas por palestras de autoajuda. Num contexto de crescimento do exército industrial de reserva de professores, não há muito a fazer. São muitos e podem ser rapidamente substituídos por alguém que pode ganhar menos.

A luta sindical nas universidades públicas contra o ensino remoto tem surtido algum efeito. Poderíamos citar aqui o ANDES com suas inúmeras denúncias sobre a precariedade do ensino remoto, sobre o papel das corporações no controle dos sistemas educacionais e mercantilização da educação, a necessidade de suspensão do calendário, o fosso educacional entre ricos e pobres, etc.

No entanto, a maior parte dos professores, em geral céticos, acreditam que devemos enquadrar um ano anormal dentro da “normalidade”, e tocar o barco, tentar fazer o melhor possível para não prejudicar ainda mais nossos alunos. Dizem que de qualquer forma vai haver prejuízos, temos que escolher o “mal menor” que seria tentar dar aulas e não perder o ano.

A classe trabalhadora docente tem mais de 2 milhões de pessoas. É muita gente! São professores do ensino fundamental, médio e superior, estão em escolas públicas e privadas, universidades públicas e privadas, escolas profissionalizantes, ONGs, Fundações e Institutos. Estão em sistemas municipais, estaduais, federais, e sistemas privados, travando lutas individuais e coletivas, planejadas para serem fragmentadas ou divididas por setores, ramos, entes da federação, do Estado capitalista e das corporações transnacionais. Fazem parte da classe trabalhadora precarizada, seja vendendo sua força de trabalho pro Estado, pra uma corporação educacional, e mais recentemente pra uma Fundação, ONG e em breve para uma falsa cooperativa. Num contexto de nova avalanche neoliberal, é pouco provável que crianças e jovens trabalhadores de um país como o Brasil aprendam algo via ensino remoto. Ao contrário, o panóptico digital vai aprender como controlar melhor os sistemas educacionais, automatizar os sistemas de ensino e obviamente, ganhar rios de dinheiro reais num mundo virtual.

Henrique Tahan Novaes

Professor da FFC e do PPGE Unesp, autor de “O fetiche da tecnologia - a experiência das fábricas recuperadas” entre outros títulos, pesquisado da área produção destrutiva, cooperação, autogestão, agroecologia e escolas de agroecologia.

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