As esquerdas socialistas/comunistas, que pretendem superar o capitalismo, vivem um perigoso isolamento político e social imposto pelas relações sociais de produção e reprodução capitalistas, principalmente pós-anos 1990. A crise que dominou todo o leste europeu, com a queda do “muro de Berlim”, propiciou que sobrassem pedras para todas as esquerdas, até mesmo para aquelas que eram críticas ao muro. Posteriormente, o fim da URSS em 1991 deixou o caminho completamente aberto ao capital. Com isso, o capitalismo cresceu como nunca, acumulando e explorando os trabalhadores praticamente sem nenhuma contestação. Além disso, a concentração de renda aumentou ainda mais, criando o hoje conhecido 1% de bilionários, motivo de protestos das classes populares e médias. Mas este novo movimento do capital teve trânsito quase livre pela falta de organizações políticas, sindicais e sociais mais consistentes e menos efêmeras do que as que temos hoje.
Assim, desde o início deste novo século, a esquerda socialista/comunista, que se propõe analisar e transformar a realidade sob a ótica do marxismo, foi cada vez mais perdendo espaços e se abrigando em pequenas legendas, com pouca inserção social e política na sociedade. Já a socialdemocracia, que nasceu revolucionária e passou a defender a chegada ao comunismo por reformas parlamentares (com o crescimento de vitórias eleitorais na Europa), sindicais e cooperativas, abandona a perspectiva marxista ao fim da II Guerra Mundial, aceitando a competência do capitalismo para gerar riquezas e atuando apenas em políticas sociais distributivas, via altas tributações. Mas mesmo esta “socialdemocracia capitalista” entrará em crise a partir dos anos 1980/90 e adotará uma “nova socialdemocracia”, chamando-a de “Terceira Via”. Assim, Tony Blair no PT inglês, Mitterrand, do PS francês, e Felipe González, do PSOE espanhol, assumem a perspectiva “social-democrata-neoliberal”.
Na América Latina, FHC, de tradição socialdemocrata, também assume um governo neoliberal. Mas, pragmaticamente, o sucessor Lula, do PT, também não se dispõe a mudar o modelo político traçado pela tardia e nova socialdemocracia e governa sem atritos com os capitalistas ou com o capital. Seu governo não teve nenhum conflito com os capitalistas, porém, fruto da boa fase da economia mundial e também da competência de bem gerir o capital, propiciou diversas políticas sociais e, ao fim, todas as classes ganharam. Claro que as classes capitalistas ganharam bem mais, como sempre enfatiza o próprio Lula. Estas características de seu governo podem ser nominadas de “Liberalismo-Social”, pois houve incentivo ao mercado, inclusive via BNDES (liberalismo), e políticas sociais (Social). Este foi um quadro que se repetiu nos chamados governos progressistas da América do Sul neste novo século. Podemos excetuar a Venezuela, que, mesmo com limites, aprofundou algumas reformas no período Chávez, até atritando com os EUA e com setores do capital em seu país.
Assim, temos um grande vazio, um vácuo, na esquerda, entre as pequenas organizações socialistas/comunistas e as ainda significativas formas de gerir o estado de forma Liberal-Social (liberalismo de esquerda). Ou seja, o espaço que as organizações anticapitalistas conseguem conquistar é muito limitado, quase um gueto, e não se consegue avançar para organizações de massa neste vácuo deixado pela esquerda. Apesar de todo o mérito e esforço destas organizações, o movimento comunista está em uma crise real e carece ser reconstruído enquanto existe alguma possibilidade. Precisamos avançar neste espaço entre as pequenas organizações socialistas/comunistas e o Liberalismo-Social.
No século XX tivemos diversas formas de enfrentar o capitalismo e diversas formas de tentar construir o socialismo. Tivemos o bolchevismo soviético, o maoísmo com os camponeses, a autogestão Iugoslava, o socialismo/marxismo africano no pós-descolonização, as guerrilhas com Che e Fidel, o “Eurocomunismo” europeu, japonês e chileno de Allende, e muitas outras formas de construir outras sociedades. Os êxitos e fracassos destes socialismos, em suas diferentes modalidades, já foram bastante analisados. Mesmo assim, o socialismo não consegue atualizar-se e reconstruir-se neste o novo século. E, quando se fala em atualizar e reconstruir as lutas atuais, citam-se de imediato as lutas identitárias e ecológicas. Porém, enfrentamos o problema de que a hegemonia destas lutas hoje, apoiadas pela grande imprensa, são lutas liberais e não inseridas nas lutas contra o capital. As lutas identitárias no campo socialista/comunista, assim como as lutas pelo meio ambiente neste campo, existem e são muito valorosas, mas também são bem minoritárias no contexto social e político. Com isso, como já dito, o capitalismo está completamente sozinho, com pequenas oposições reais ao sistema.
Será que devemos esperar o capitalismo cair um dia, em razão de suas contradições, sem sabermos o que o sucederá por não conseguirmos construir as alternativas? Será que a história acabou, como dizia Fukuyama, apoiado na teoria de Hegel? Não podemos desprezar estas opções, mas acredito que nosso dever, o dever de todos que acreditam em sociedades emancipadas, é continuarmos na luta. Não devemos e nem podemos querer ressuscitar as lutas do século XX. Muitas coisas mudaram no capitalismo e devemos sempre atualizar as lutas. Mas podemos aprender com cada uma das revoluções, nos erros e acertos, e construir o novo com as novas contradições colocadas.Em vez de enfatizar apenas os problemas, vamos ver o legado positivo. Em vez de brigarmos e criticarmos, vamos analisar o que podemos fazer de novo, de criativo, olhando para nossas revoluções do século passado e para as novas contradições deste século. O Eurocomunismo era reformista? Sim, mas objetivava o comunismo nos países com bom desenvolvimento capitalista e instituições políticas funcionando na democracia. Visavam a democracia como fim, mas a democracia socialista. A Revolução Russa tem lições? Muitas. Foi a primeira tentativa de enfrentar o capitalismo e, mesmo sem modelo algum, num país periférico e arrasado por guerras, conseguiu muitas vitórias. As derrotas ficam como lição. As fazendas coletivas e as estatais concomitantes ainda podem ser um projeto para o campo? Talvez, se forem instituídas sob controle dos trabalhadores e sob novas demandas de produção. A autogestão iugoslava deixa alguma lição? Possivelmente. Todas as revoluções, mesmo as realizadas em países pobres e periféricos do capitalismo, como a cubana, as africanas e asiáticas, priorizaram as políticas sociais. Quanto às lutas que ganharam força, como as identitárias e ambientais, devemos demarcá-las no campo socialista/comunista, diferenciando-as das lutas apenas liberais. As novas formas de trabalho devem ser incorporadas nas lutas, pois sua essência continua a mesma: a extração de mais-valia. Nesta “salada socialista” vamos tentando plantar o novo. Vamos retomar estas experiências com novas roupagens e costurar novas roupas adequadas aos novos tempos. Vamos buscando caminhos. Sei que os tempos não são fáceis, que talvez estejamos em novos começos, que serão necessários recuos, mas não podemos viver apenas retrocedendo, apenas com receio de defender sociedades socialistas e emancipadas, pois assim iremos definitivamente para o limbo.