O que as Fábricas Recuperadas argentinas têm a ensinar à classe trabalhadora latino-americana?

Julio Cortázar, no conto La casa tomada, narra uma casa invadida por seres estranhos. O que será isso senão a melhor metáfora para a Argentina tomada pelo capital financeiro?

Para nós, a Argentina é um dos países emblemáticos do quão destrutiva foi a ofensiva do capital na América Latina. Primeiramente, com um duro golpe em 1976 que aniquilou as lutas sociais, matou ou torturou muita gente e destruiu a economia argentina.

Depois, numa nova fase da destruição, a dupla Menem e Cavallo dolarizou a economia, privatizou empresas públicas e destruiu as camadas intermediárias da sociedade, aumentando ainda mais a dependência econômica do país.

Na grande crise de 2001, que em dezembro completou 20 anos, metade da população foi jogada para abaixo da linha da pobreza, num dos processos mais violentos de expropriação econômica dos últimos tempos. Ali tivemos 5 presidentes em menos de 2 semanas!

Mas foram intensas as lutas dos que resistiram ao desmonte e saqueamento da nação, bem como de acerto de contas com a ditadura. Não são poucas as lutas pelo reconhecimento dos mortos e desaparecidos. Desde 1994 os piqueteiros têm interrompido rodovias e avenidas estratégicas do país, bloqueando a circulação de mercadorias. Ao mesmo tempo, inúmeras fábricas foram ocupadas ante o aumento dos pedidos de falência, a desindustrialização e o avanço do desemprego. Trabalhadores e parte da classe média saíram às ruas contra o corralão e o corralito.

Assim como no Brasil, a reversão neocolonial na Argentina está trazendo consequências nefastas para as trabalhadoras e os trabalhadores argentinos.

As lutas dos trabalhadores recuperados podem ser vistas, por exemplo, no livro de Andrés Ruggeri (2018) “Empresas recuperadas pelos trabalhadores: ocupações e autogestão na Argentina”.

O livro contou com a tradução coletiva e solidária de um grupo de amigos e estudiosos das recuperadas que se empenhou para que o leitor tivesse este belo livro em mãos: Maria Alejandra Paulucci e Flávio Chedid Henriques (do Grupo de Pesquisa Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores – GPERT) foram os tradutores, Gabriel Nemirovsky, Martina Lima, Flávio Chedid Henriques e eu fizemos a revisão.

“Empresas Recuperadas por Trabalhadores: ocupações e autogestão na Argentina” retrata uma das lutas mais importantes da classe trabalhadora latino-americana na Era da Barbárie. O livro é a síntese de um fenômeno bastante complexo que envolve como personagem principal a classe trabalhadora argentina em sua luta pela recuperação dos postos de trabalho, que em muitos casos avançou para a autogestão dentro dos muros das fábricas (e em alguns casos para a autogestão dos bairros).

Dentre os determinantes principais, poderíamos destacar: a) as ocupações em si, b) as tentativas de construção da autogestão no microcosmo produtivo, c) a atuação de sindicatos, dos partidos políticos, d) o debate da consciência de classe nas recuperadas, e) o resgate e a conexão das lutas recentes com as lutas pretéritas no campo da autogestão e do cooperativismo, mostrando a novidade e a continuidade do fenômeno na história argentina; f) a atuação de grupos de intelectuais militantes de universidades (sendo Andrés um de tantos), educadores populares envolvidos com os projetos de reversão do analfabetismo nas próprias fábricas recuperadas (bachilleratos populares), cineastas, documentaristas, artistas, engenheiros, dentre outros (Novaes, 2019); g) o debate da tecnologia, as possibilidades de mudança do processo de trabalho e a “inovação social”; h) as “políticas públicas” que favoreceram o desenvolvimento das ERT; i) o papel do Estado capitalista como órgão de dominação de classe, na defesa da propriedade privada, bem como uma ala de juízes argentinos que deu pareceres favoráveis à expropriação das fábricas. Se é verdade que o sistema de justiça do capital é extremamente injusto, pautado na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do trabalho como elementos da “ordem social”, também é preciso averiguar como foi aberta uma justa brecha para a expropriação de fábricas que não cumpriam sua “função social”.

Lá como cá, o kirchnerismo representou um fio de esperança e de melhoras pontuais para uma classe trabalhadora que foi arrebentada pela ditadura e pelo neoliberalismo dos anos 1990. As práticas políticas kirchneristas obviamente não representaram uma ruptura com o modo de produção capitalista, mas de alguma forma significaram um alívio ante a grande crise de 2001.

Temos hoje mais de 380 Empresas recuperadas pelos trabalhadores (ERTs), vindas de três “safras” de lutas trabalhadoras e dos trabalhadores. Uma “safra” dos anos 1990, uma segunda (mais importante e mais intensa), decorrente da grande crise de 2001, e uma terceira “safra”, mais recente. Como a crise do capital é estrutural e veio para ficar, tudo leva a crer que o fenômeno das ERTs não irá parar nessas três safras.

É sempre importante lembrar o papel decisivo da ditadura de 1976 no estrangulamento da ascensão das lutas dos trabalhadores, como o Cordobazo, o Rosariazo e as comissões de fábrica na região Buenos Aires. A história da Argentina poderia ter sido outra? Certamente.

Quais ensinamentos as fábricas recuperadas argentinas trouxeram? No nosso entendimento, a possibilidade e a urgente necessidade de construção de novas relações sociais de produção.

As lutas anticapital educam a classe trabalhadora – ainda que de forma embrionária – para novas relações sociais. Os trabalhadores associados passam a administrar as fábricas com outras práticas sociais e valores, mesmo dentro dos limites do mercado capitalista. “Brota” uma consciência de classe bastante específica, que não pode ser resumida de forma simplista a um antes e depois das ocupações, pois os trabalhadores resgatam experiências anteriores de luta. Também não é possível dizer que depois das ocupações, em geral muito dolorosas, surge uma consciência revolucionária sobre a necessidade de superação do sociometabolismo do capital.

De uma “simples” luta pela manutenção dos postos de trabalho surgiram, com a criatividade típica das trabalhadoras e trabalhadores argentinos, outras práticas, princípios e fundamentos, que guiam o nascente trabalho associado nas ERT.

O critério número um passa a ser a produção e reprodução da vida, e não mais a acumulação de capital e a exploração do trabalho. A assembleia dos trabalhadores é o momento do exercício da democracia radical, e são criadas comissões para tocar o dia a dia da fábrica, em geral rotativas. O excedente passa a ser usado para outros fins, inclusive para estímulo ao surgimento de outras experiências de trabalho autogerido.

Mas não é possível ignorar que as Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores estão imersas num mercado concorrencial ou oligopólico, que determina preços e cria inúmeros obstáculos para o desenvolvimento de novas relações sociais.

Com o avançar da luta, surgem associações das ERT, gerando uma trama política bastante complicada e complexa, típica da sociedade argentina. A relação que se estabelece entre essas associações e federações com os sindicatos, com o Estado e com os Governos, bem como os “rachas” e distintas táticas no campo da política, não é muito fácil de ser percebida (Nemirovsky, 2020).

A sociedade argentina, assim como a brasileira, está dividida. O kirchnerismo enfrentou enormes dificuldades em sua tentativa de domar o capital (se é que isto é possível), mas em alguma medida conseguiu “tirar o país do buraco”, melhorando o emprego e a renda de parcelas dos trabalhadores e da classe média. O governo de Fernandez procura rearticular as demandas populares, mas não procura romper com o capital, e acaba de assinar um acordo com o FMI. A ilusão de que o governo pode controlar a reprodução do capital “atrasa” as possibilidades de superação deste bárbaro modo de produção. Bandeiras moralistas como a da corrupção e ilegalidade da interrupção da gravidez reapareceram. Bolsonaristas argentinos começam a surgir.

O governo Macri não conseguiu frear a inflação e a miséria argentina. Multiplicação dos mendigos e cartoneros, fechamento de pequenas indústrias, pequenas gráficas e livrarias, favelização, multiplicação do trabalho malpago e do desemprego, destruição planejada dos serviços públicos e pedidos recorrentes de empréstimos ao FMI são reflexos da ditadura do capital financeiro no governo Macri.

É verdade que as ERTs ainda estão diante de um grande “moinho de vento”, isto é, a mão visível do mercado capitalista determinando a produção, a compra e a venda de mercadorias. É verdade também que o Estado capitalista – como órgão de dominação de classe – coloca-se como outro “moinho de vento” que os quixotes trabalhadores teremos que enfrentar. É verdade também que as corporações transnacionais, certamente o maior “moinho de vento”, estão nadando de braçada na Argentina de hoje.

Mas também é verdade que os trabalhadores argentinos nos ensinaram que os patrões são dispensáveis, que a exploração do trabalho pode ser superada pelo trabalho associado universalizado, que o Estado e sua burocracia podem ser superados, que o excedente pode ser usado para outros fins que não a acumulação de capital, que a propriedade comunal pode superar a propriedade privada e a propriedade estatal, e que a produção de valores de uso pode superar a produção de valores de troca. Ao invés da casa tomada pelo capital financeiro, a toma/conquista e controle dos meios de produção da vida pelas maiorias trabalhadoras, tendo em vista a construção de um novo modo de produção que dê outro sentido ao trabalho e à vida.

Como conseguiremos isso? Por meio de uma revolução política, social, educacional, de gênero e ambiental conduzida pelas maiorias: trabalhadoras e trabalhadores da América Latina.

As ERTs isoladamente não conseguem fazer muita coisa. Elas dependem do avanço das lutas sociais, da unificação dessas lutas e daquilo que temos chamado de um programa para além do capital que oriente a superação das relações de produção capitalistas, dando sentido à vida no trabalho e fora dele. Na falta disso, as ERTs seguirão sobrevivendo aos trancos e barrancos na sociedade capitalista.

Referências

NEMIROVSKY, Gabriel. O Sísifo moderno: trabalho e educação na recuperação de fábricas argentinas. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, 2020.

NOVAES, H. T. Reatando um fio interrompido: a relação universidade- movimentos sociais na América Latina. 2. ed. Marília: Lutas anticapital, 2019.

RUGGERI, Andrés. Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores: ocupações e autogestão na Argentina. Marília: Lutas anticapital, 2018.

Henrique Tahan Novaes

Professor da FFC e do PPGE Unesp, autor de “O fetiche da tecnologia - a experiência das fábricas recuperadas” entre outros títulos, pesquisado da área produção destrutiva, cooperação, autogestão, agroecologia e escolas de agroecologia.

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