O que fazer com as ruinas do capitalismo?

…quedamos los que puedan sonreír
en medio de la muerte, en plena luz…1
Silvio Rodríguez

O que fazer com as tecnologias que são utilizadas para esse avanço cada vez mais desenfreado em direção ao abismo? É melhor desconfiar dessa crença na possibilidade de fazer um uso bárbaro dessa sucata e mudar sua finalidade e sentido. Assim como costumamos recolher os cartazes de propaganda para armar as barracas nas ocupações. E os invertemos, com a intenção de conjurar seu poder sedutor, para evitar que a mensagem propagandeada invada nossa paisagem.

Casa com gramado na frente

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa
Acampamento “Alexandra Kollontai”, em Serra Azul. Fonte: autora desta coluna.

Parece simples. No entanto, há tecnologias muito complexas, cujo mecanismo interno desconhecemos. Suspeitamos que na “(des)alma” dos objetos que alguma vez foram mercadoria exista ainda, renitente, algum dispositivo que eletriza e subjuga. Tememos que se imponha resistindo de maneira sub-reptícia à finalidade que lhe queremos dar. De que pode servir a tecnologia do agronegócio ou a da mineração industrial? E a da cibernética? E, mais no geral, de que pode servir o conhecimento atesourado por instituições hierárquicas como as universidades? E, se alguma coisa servir, como desmontar o pacote em que essa coisa está integrada?

Talvez essa preocupação seja também resultado de nossa arrogância. Acreditamos, afinal, que tudo depende de nós, humanos, e que, fora de nossas iniciativas, não encontraremos caminhos reparadores.

Conversando com Karin Chilca e Mauricio Palamilla, dois brigadistas de “Sólo el Pueblo ayuda al pueblo” (“apenas o povo ajuda o povo”) que atuaram durante os incêndios de 2017 na Araucania2, eles me contaram dos morchela (Morchella esculenta): depois que as brasas dos pinhos queimados esfriaram, esses deliciosos cogumelos comestíveis se propagaram, alimentando-se dos restos do desastre. Justo estava lendo Los hongos del fin del mundo, de Anna Tsing3. A autora segue os rastros de outros cogumelos, os matsutake4 (Tricholoma matsutake), que frutificam em grande escala nos bosques do Oregon, nos Estados Unidos, a partir da madeira dos pinhos concorta, que ocupam o espaço dos pinos ponderosa, depois que a indústria madeireira os retira.

Segundo a autora, os matsutake foram “descobertos” por migrantes asiáticos no Oregon, que fizeram de sua recolecção uma prática que, ainda que de venda e obtenção da renda com sua venda, nesse primeiro segmento da extração não opera segundo a lógica industrial. O achado dos cogumelos é imprevisível e aventuroso demais. Porém, pouco depois, os cogumelos entram numa cadeia de fornecimento que, sim, opera segundo as regras do mercado e se destina à exportação para o Japão, onde é apreciado como presente de luxo. Essas características do início e do final da cadeia são apresentadas por Anna Tsing como um paradoxo: uma mercadoria que não o é nem em sua extração, nem em seu consumo final.

O mais paradoxal, parece-me, é a cultura que foi se condensando nas práticas dos coletores, que não empenhariam sua energia vital impulsionados pela procura de renda. Muitas cadeias de commodities articulam segmentos que não operam segundo o modo de produção capitalista, e sim por espoliação, submetendo os trabalhadores pelo terror, pela ameaça, e inclusive pela sedução de pertencer a uma cadeia como empreendedores. No caso dos matsutakes, não houve, parece, uma ação intencional para fazer os coletores trabalharem para a cadeia. As coisas apenas foram se acomodando feito abóboras no carro em movimento.

Outra surpresa que compartilha Tsing conosco (talvez a mais interessante para nós) é que da destruição surge um alimento inesperado. Ainda que depois o capital o transforme em mercadoria. Afortunadamente, não aconteceu a mesma coisa com os morchela. Isso ativa nossa imaginação. Descobrimos que, mesmo em situações adversas, a terra pode nos dar outra oportunidade. 

Cogumelo no chão

Descrição gerada automaticamente
Morchela. Fonte: http://ohapbio12.pbworks.com/w/page/52112710/Morchella%20esculenta

A terra vai sobreviver. A dúvida é se a espécie humana o fará. A terra se recompõe, encontra caminhos depois do desastre capitalista, ainda que muitas espécies se extingam. Os tempos da terra, seus ritmos, não satisfazem, necessariamente, as necessidades de nossa espécie. Ou, como diria minha tia Emilia, “não temos a vida comprada”. A destruição de biomas que requerem milênios para se recompor, ou que se transformarão em outro bioma, não necessariamente habitável por nossa espécie, faz-nos temer (ou nos resignar à) a extinção. Não bastará arrancar os territórios do controle do capital. É preciso se perguntar em quais condições poderemos fazer acordos para nos manter vivos dentro deles, refazer os acordos com a terra, violados faz 6.500 anos, por exemplo.

Com essa dúvida, os “chapeuzinhos” de morchela, espiando entre os restos dos incêndios provocados pela cadeia de celulose, estendem-nos a mão. Não desperdicemos a oportunidade que a terra nos oferece na forma de alimento. Não deixemos que, novamente, o capital o transforme em mercadoria.


Nota sobre o título: Um dos temas de conversa com Jean Tible, a propósito de seu livro Política selvagem. Ver: TIBLE, Jean. Política selvagem. San Pablo: Glac e N-1, 2022.

Referências

  1. Escutar: https://www.youtube.com/watch?v=Ut-HgKV3mE8
  2. Ver: https://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/5256
  3. TSING, Anna. Los hongos del fin del mundo. Sobre la posibilidad de vida en las ruinas capitalistas. Traductor Francisco Ramos Mena. Espanha: Caja Negra, 2023.
  4. Tricholoma matsutake é um fungo micorriza (simbiótico com as raízes de certas árvores) próspera na China, Coreia, Finlândia, Suécia. No Japão, cresce junto aos pinhos vermelhos japoneses. No noroeste Pacífico de América do Norte, prospera em bosques de abetos de Douglas, pinhos de açúcar, pinhos ponderosa e pinhos contorta. Na Califórnia, prosperam em bosques de Tanoak e madronho.

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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