A retomada de uma certa popularidade de Bolsonaro – ainda assim inferior às obtidas por Dilma, Lula e FHC em seus governos – configura mais uma evidência do equívoco da narrativa progressista em supor um Brasil fascista, autoritário e conservador instalado a partir do impeachment de 2016 ou das eleições de 2018.
Se assim fosse, como o fascismo tupiniquim, a ditadura bolsonarista e a onda conservadora permitiram a aprovação quase unânime de uma política pública tão importante (apesar de seus problemas) como o Fundeb? Sob a barbárie capitalista que efetivamente vivemos (já desde os anos de crescimento do neodesenvolvimentismo lulista, com o caos urbano, o aumento da violência nas cidades e no campo, o agravamento da guerra aos pobres e negros, o encarceramento em massa), como foi possível, em poucos meses de auxílio emergencial, a diminuição da desigualdade e da pobreza em patamar superior ao obtido em tantos anos de governos petistas (https://bit.ly/35fhe5O)? Se o retrocesso é tão avassalador, porque mais uma vez o projeto Escola sem Partido foi derrotado no STF?
Os dados da realidade desmentem o imaginário lulista sobre o Brasil pós-Dilma, pois as contradições e os conflitos continuam e se aguçam. Os trabalhadores se movimentam, a sociedade civil reage ao milicianismo estatal temporiamente instalado no governo federal, as instituições burguesas imobilizam boa parte das iniciativas extremistas do bolsonarismo.
Ao mesmo tempo, não só governos reacionários, mas também os progressistas prosseguem em seus ataques aos setores populares, como se verifica na implementação do excludente e privatizante ensino remoto na educação básica e nas universidades em vários estados brasileiros. Da mesma forma, a convivência entre conservadorismo cristão e progressismo ilustrado – que parece nunca ter existido entre nós! – foi resgatada pelo episódio envolvendo a cantora evangélica Flordelis: a agora execrável deputada federal bolsonarista foi, nos anos dourados do lulismo, tema de filme estrelado por bem-intencionados (e hoje arrependidos) artistas globais. (https://bit.ly/3mcGpfs)
O amálgama de progresso e atraso, de moderno e tradicional, continua se impondo na formação social brasileira e nos ajudando a entender o desenvolvimento desigual e combinado do nosso capitalismo periférico, apesar de lulistas e bolsonaristas entenderem-se tão diferentes e tão distantes uns dos outros.
A errônea caracterização fascista para a atual política brasileira já foi apontada por autores como Atilio Boron (https://bit.ly/2F1vrc0). A nova versão de Bolsonaro no poder, dependente do fisiologismo do Centrão e mais comedido em suas lacrações direitistas nas redes anti-sociais, possui apoio eleitoral de maior extração popular, deixando desconcertada a intelectualidade lulista que designava a “classe média” como principal sustentáculo do bolsonarismo – a exemplo de Armando Boito Jr. em https://bit.ly/3jVcHJO.
Na verdade, para os governos do PT pertenciam à classe média todos os setores da classe trabalhadora menos precarizada que se opusessem ao lulismo. E compunham o “povo” todos que apoiassem seus políticas públicas, razão pela qual ficam inconformados nossos progressistas atuais com o avanço bolsonarista sobre bases eleitorais que viam, preconceituosamente, como aderentes exclusivas do populismo “de esquerda”: os mais pobres.
Seus esquemas de análise desmoronam junto com o lulismo e acompanham uma política que contrapõe discurso e prática – para ilustrar, dialogam com o Judiciário “golpista” que até hoje denunciam (https://bit.ly/2Zfvurd). Daí, também, ainda acreditarem na essencialidade do caráter militante do bolsonarismo, que muito mal se verifica empiricamente na realidade brasileira e é estratégico para dimensioná-lo como fascista. Em contraste, a cena política europeia traz mobilizações sociais verdadeiramente massivas (https://glo.bo/3haFMPQ), fazendo jus à utilização do conceito.
Entre nós o buraco é mais embaixo, como se diz popularmente. O “fascista” de ontem agora defende o Estado de Direito: https://bit.ly/2GE03k1. Crivella, senador de Lula e ministro de Dilma, veste hoje a fantasia de bolsonarista. O pragmatismo político burguês é antigo, a novidade está no fato de muita gente de esquerda passar a crer na autenticidade dos discursos de extrema-direita de novos e velhos políticos.
Seguindo a narrativa lulista, pintou-se Bolsonaro como o inimigo perfeito, junção do reacionarismo com um liberalismo que sempre lhe foi estranho. Assim, quando o bolsonarismo cai na real, copia os programas sociais lulistas – Bolsa-Família, Minha Casa Minha Vida, entre outros – e finge-se desenvolvimentista (https://bit.ly/3m5pzie), colapsa a interpretação superficial que o lulismo faz do Brasil. Até a CPMF Paulo Guedes tenta ressuscitar – nada como um liberal no poder para se buscar fortalecer a arrecadação do Estado à custa do mercado…
Por conta dessa desorientação do progressismo no Brasil, que colonizou inclusive parte da esquerda, segmentos mais intelectualizados da classe trabalhadora nacional tornam-se presas fáceis da política do pânico vigente nos últimos anos. Muitos são tomados por uma indignação simultaneamente moralista e apassivadora. São facilmente manipulados por fakenews oriundas tanto do bolsonarismo (que ia dar tantos golpes que não deu) como do lulismo (a última é: Bolsonaro promoveu o afastamento de Witzel). E acabam potencializando o status quo além da conta, prolongando a vigência de falsas polarizações e de verborragia extremista sem lastro concreto – veja-se, a respeito: https://bit.ly/327IjFY.
Para compreender o Brasil do século XXI, mais do que nunca é necessária uma análise marxista crítica, que passe longe do enganoso dualismo lulista e examine com rigor as mudanças de hegemonia em nossas instituições burguesas (Ministério Público e Judiciário deixaram de ser parceiros preferenciais do PT após 2002, por exemplo). E, principalmente, que perceba como os trabalhadores na cena pública são incontornáveis para qualquer cálculo político, mesmo de parte da extrema-direita. Ao contrário do que prescrevem as teses do golpe, da onda conservadora e da ameaça fascista, os “de baixo” não foram derrotados. É o que nos ensinam a greve dos Correios, as lutas das torcidas organizadas, os breques dos entregadores de aplicativos, os protestos negros e os panelaços nas grandes cidades.